Entendemos que nós seres humanos não nascemos nem éticos e nem competentes para as nossas funções sociais, pois tanto uma como outra serão incorporadas no processo de humanização por meio da elaboração do pacto edípico. Entendemos, também, que exercer a eticidade seja a possibilidade de pensar a ética e a moral. Esse pensamento não deve conter apenas os conflitos entre a emoção e a razão mas, também, permitir que o indivíduo se relacione com os mundos interno e externo. Lidar com tais conflitos causa-nos um mal estar, que é inerente à inserção na cultura e ao desenvolvimento humano.
O ser bioético deve lidar com o outro, devendo integrar sua biologia com sua biografia, que o tornará competente para exercer sua cidadania.
A bioética da vida cotidiana visa pensar as questões mais simples do nosso dia a dia, ou seja, uma reflexão ética das relações, para não ter que pensar apenas nas grandes questões da bioética que implicam em mudança de valores, como por exemplo a eutanásia, fertilização in vitro, os transgênicos, alocação de recursos em saúde etc.
DESENVOLVIMENTO HUMANO
A humanidade tende a repetir suas experiências, porém delas o ser humano aprende muito pouco. Para exemplificar, retomaremos o movimento artístico e científico conhecido como Renascimento dos séculos XV e XVI que pode ser caracterizado pelo renascer da cultura grega clássica. Essa cultura caracterizou-se pela sua visão antropocêntrica do mundo, ou seja, ela entendia que o ser humano era o fator central ou, pelo menos, o mais significativo do universo.
Com o renascer dessa compreensão humanista, existe a retomada de uma ética orientada para o ser humano, para o desenvolvimento das suas faculdades criadoras e para o máximo proveito dos recursos naturais.
Devido ao salto qualitativo proveniente do atual conhecimento em espaço, tempo e cultura, entendo que estamos experimentando um período revolucionário, que posso compará-lo ao período renascentista. Porém, como no passado, os conflitos éticos que esse tipo de conhecimento nos traz são inúmeros, e é por este motivo que entendo que devamos retomar uma ética que esteja vinculada a valores humanistas, pois foi ela quem ajudou a lidar com estes conflitos, durante o período do Renascimento.
O novo conhecimento científico coloca uma questão ética central: o que é a "vida"?. A questão pode ser subdividida em o que deva a ser considerado "estar vivo", como, por exemplo, os embriões congelados ou o genoma mínimo, e o que venha a ser considerado "ser vivo", por exemplo, o que fazer com os seres e plantas transgênicas.
O ressurgimento desse pensamento renascentista pode ser observado através de certas equivalências históricas, como o que ocorreu na divulgação do conhecimento. Gutemberg, inventor do tipógrafo, em 1440 imprimiu o primeiro livro, a Bíblia, permitindo que as pessoas comuns pudessem ter acesso a esse conhecimento humano. Mantidas as proporções, é fácil de se observar a semelhança existente no que o Bill Gates nos oferece com seus softwares ou na velocidade da divulgação do conhecimento que a internet nos proporciona.
Se pensarmos nos espaços geográficos, em 1492, Cristóvão Colombo, graças ao patrocínio da rainha da Espanha, descobre as Américas. Atualmente, graças ao patrocínio dos Estados Unidos, o ser humano pisou na Lua, chegamos a Marte e se for confirmada a presença de água lá, seguramente ela poderá ser colonizada por nós, terráqueos. Espero que, dessa vez, possamos utilizar as experiências passadas e não cometer, novamente, as mesmas imprudências que os antigos colonizadores realizaram com suas colônias.
Também existe uma certa analogia frente ao conhecimento biológico que temos atualmente, ao do período renascentista: a descoberta da anatomia do corpo humano, realizada por Leonardo da Vinci (1452-1519), foi obtida através da dissecação de cadáveres e considerada antiética; o atual mapeamento do genoma humano também está sendo encarado por algumas pessoas de forma similar aos métodos do gênio renascentista. Essa desconfiança surge da idéia de que iremos fazer um mau uso do nosso conhecimento, pois estamos prontos a modificar a seleção natural, o que poderá ter conseqüências catastróficas. Posso dizer que as descobertas renascentistas não trouxeram.
Finalmente, podemos observar o fio condutor desse pensamento humanista através de nossa história, em Sófocles (cultura grega clássica) que escreve a tragédia de Édipo, em Shakespeare (renascentista) que retoma essa tragédia edipiana em Hamlet. Sendo revisto por Freud (contemporâneo) quando identifica a universalidade desse desejo nas pessoas, e o denomina de Complexo de Édipo.
Atualmente, será a bioética, a ética da vida, quem irá se ocupar do que venha ser certo ou errado frente aos conflitos provocados pela nossa evolução científica, pois será esta ética que nos permitirá pensar certos conceitos propostos pela ciência como, por exemplo, o que é morte. A ciência nos trouxe o conceito de morte cerebral, que foi internacionalmente aceito, mas que surgiu como uma necessidade para poder realizar os transplantes.
Assim sendo, devemos pensar nas questões bioéticas provocadas pela biotecnologia, como a clonagem de seres humanos ou outros avanços genômicos, e as questões bioéticas provocadas pela "bioeconomia", tais como o patenteamento de genes ou do genoma e a sua possível comercialização.
O físico italiano Galileu Galilei (1564-1642), iniciador do método científico, também foi considerado herético por defender o sistema Copérnico, que afirmava ser a Terra quem girava em torno do Sol. Atualmente, devemos entender que Galileu foi tão revolucionário quanto Einstein, com sua teoria da relatividade, ou tão transformador quanto a descoberta da mecânica quântica para a física.
Os cientistas que estão pesquisando o genoma humano poderão ser considerados heréticos por algumas pessoas, mas também poderão ser vistos como renascentistas por outras. A ciência não deve se tornar a nova religião dizendo o que venha ser herético ou não. Será a sociedade, como um todo e de forma democrática, quem deverá discutir essas questões bioéticas.
Gostaríamos de salientar que o conhecimento da anatomia humana não nos permitiu localizar qual é a parte do corpo onde se localiza a nossa alma. Do mesmo modo, não será o mapeamento do genoma que nos transformará em diabos ou deuses, pois estas questões humanas são muito complexas pela sua subjetividade. Dificilmente qualquer método científico dará conta da subjetividade humana.
BIOÉTICA DAS RELAÇÕES
Seguramente, a ética é anterior aos gregos, mas devemos a este povo a sua denominação enquanto uma filosofia do bem e do mal. Acreditamos, porém, que, desde os primeiros ancestrais humanos, já existia uma ética para as relações humanas, assim como já existiam leis para regulamentar o comportamento humano antes da criação de códigos.
Nós, seres humanos, criamos os problemas éticos, pois eles emergem justamente das relações psicossociais, ou seja, da percepção dos conflitos causados pela inserção do indivíduo na cultura.
Notamos que a bioética, teoria com princípios (autonomia, beneficência e justiça), acaba sendo uma ética moralista, pois tenta encaixar os indivíduos em pressupostos sociais, que nem sempre abarcam os valores individuais.
Enquanto a ciência traz o conhecimento, a bioética traz a reflexão sobre a utilização do conhecimento na prática. O que propomos neste trabalho é justamente a prática da bioética, que denominaremos de bioética das relações.
Embora, diferentemente da moral, a ética seja individual, na perspectiva da bioética das relações, ela só pode surgir no confronto e no reconhecimento do outro. Dentro dessa perspectiva, a autonomia do indivíduo só pode ser pensada na relação, ou seja, nenhum indivíduo é totalmente autônomo, pois o limite de sua liberdade se dará no contexto das relações com os mundos externo e interno.
Por outro lado, a autonomia do indivíduo traz uma outra angústia: a liberdade de poder decidir por sua própria vida. Com o suporte de uma ética moralista (paternalista) ou moral religiosa, o indivíduo não tinha que lidar com os conflitos frente à própria vida; as questões eram sempre decididas por terceiros, como Deus ou a sociedade.
Assim, acreditamos que a Declaração Universal dos Direitos do Homem traz esta nova percepção ética das relações humanas, que é o reconhecimento da dignidade inerente a todos os indivíduos.
BIOÉTICA E PSICANÁLISE
A bioética tem se ocupado de questões fundamentais da humanidade que, seguramente, modificaram nossa sociedade e o seu futuro, e que influenciam o comportamento do indivíduo. Por exemplo, como lidar eticamente com as novas definições de início e de fim da vida humana ou da qualidade de vida humana, o que pode ser realizado do ponto de vista ético em experimentos científicos, como lidar eticamente com o meio ambiente. Porém, entendo que a bioética dá pouca atenção ao cotidiano da vida.
A psicanálise, por sua vez, também lida com questões fundamentais da humanidade só que desde o vértice do indivíduo, mas que seguramente modificaram a sociedade. Por exemplo, a definição de inconsciente, do conceito de pulsões diferenciando-as dos instintos ou do conceito de pulsão de morte. Considero, no entanto, que a psicanálise dedicou pouca atenção a questões sociais.
Tanto a bioética quanto a psicanálise revolucionaram a humanidade; a primeira partindo de uma percepção externa do ser humano e a outra, de sua percepção interna. O que tentaremos elaborar neste artigo é uma integração da bioética com a psicanálise, pois seguramente ambas tem em comum a preocupação ética das relações humanas e são valorizadas a partir do vértice subjetivo.
Neste esforço, poderá se pensar o indivíduo e a sociedade de uma forma única, desde seu componente externo ou moral e de seu componente interno ou ético.
A psicanálise surgiu como uma possibilidade de se entender o indivíduo, com suas características comuns, mas também com suas características próprias. O indivíduo em seu eterno conflito, entre o retorno do reprimido e a sua necessidade de elaboração das pulsões para o convívio social, deverá processar esse mal-estar da cultura.
A psicanálise mostra-nos a importância das funções familiares (pai, mãe) na estruturação psicossocial do indivíduo, mostrando o quanto tais funções psíquicas permeiam as funções biológicas. Assim, o desejo incestuoso, presente em todo ser humano, tem a função, através da mãe, de erotizar a criança. O limite a esta erotização deve ser dado através da função do pai, que, no âmbito mental, é o representante da Lei (proibição do incesto). Será graças a esta primeira proibição social que a criança irá apreender o significado de limites, possibilitando estruturar seu funcionamento mental e seu ingresso ético na cultura.
Como o indivíduo pode apreender a cultura e as pulsões para se conhecer e lidar com os limites sociais? A proibição do incesto funciona como o organizador mental e social quando propõe limites às pulsões, permitindo que o indivíduo se relacione de outra forma frente ao mundo, deixando de ser dominado por seus impulsos e passando a ser um sujeito capaz de organizar suas próprias ações. Desse modo, a repressão das pulsões incestuosas permite a formação de uma estrutura mental com id, ego e superego, que possibilita a introjeção de funções psicossociais e o respeito ao outro, que são os fundamentos da bioética.
Tendo este conflito entre as instâncias do aparelho mental como base do desenvolvimento e do funcionamento humanizado, pensamos na reflexão bioética como a extensão deste conflito para as relações sociais.
Esse processo, que se repetirá em cada indivíduo e deverá ser elaborado durante toda a vida, é o desafio da bioética.
Sabemos que a compreensão do funcionamento mental do ser humano surgiu a partir da tentativa de identificação e compreensão do funcionamento psicopatológico. Assim, Freud elaborou uma teoria e uma prática do funcionamento humano; através do melhor conhecimento dos sintomas de perturbações mentais, ele pode compreender os "comportamentos sintomáticos" presentes na vida cotidiana, como os lapsos de memória, os sonhos, atos falhos, desenvolvimento da sexualidade etc...
Percebemos que a bioética surgiu da necessidade de compreender e repensar os "sintomas" da sociedade moderna. A reflexão bioética surgiu através da percepção das mudanças das relações psicossociais ocasionadas pelos grandes avanços científicos e tecnológicos, fazendo renascer o conflito entre ciências biológicas e as ciências humanas.
Isto pode ser observado, atualmente, quando se relaciona a bioética à reflexão sobre temas como eutanásia, abortamento, reprodução assistida, clonagem e terapias gênicas. Tais temas provocam conflitos em valores pré-estabelecidos socialmente, com mudanças bruscas, como por exemplo, nas definições de vida, saúde e morte. Tais valores, por serem novos, necessitam da criação de parâmetros para serem incorporados na vida social e uma elaboração individual.
Podemos pensar que tais temas são equivalentes aos sintomas das doenças mentais e que, da mesma forma, a discussão e a reflexão sobre estes podem trazer luz à discussão bioética das situações do cotidiano.
Muitas pessoas nunca terão um contato próximo com situações como eutanásia, clonagem e transfusão de sangue em testemunhas de Jeová, e as discussões sobre esses temas passam a ter para tais pessoas um cunho extremamente teórico. Mas, com certeza, os aspectos bioéticos centrais dos temas estarão presentes em todas as relações humanas, como o reconhecimento e o respeito à autonomia do outro e a noção dos limites e funções humanas e sociais.
A bioética da vida cotidiana visa este tipo de reflexão, a reflexão dos conflitos envolvidos nas relações humanas do cotidiano. Tais conflitos aparecem desde procedimentos comuns na prática dos profissionais de saúde, até nos valores sociais contidos em discussões como, por exemplo, a da redefinição da maioridade penal ou das funções familiares, proposta pelo novo Código Civil.
Outro exemplo próximo e recente que pode ser pensado é a epidemia de Sars. Esta epidemia refletiu, assim como outras doenças infecto-contagiosas como a aids, a fragilidade da saúde mundial e do indivíduo diante de questões políticas, sociais ou econômicas. Os avanços científicos permitiram um rápido conhecimento sobre o vírus, formas de contágio e proteção, porém os meios pelos quais estes atos foram realizados demonstraram a ausência de uma reflexão bioética sobre as conseqüências dessa doença frente às relações humanas.
O valor real da percepção bioética da vida cotidiana é a não existência de leis universais, mas sim situações novas a serem pensadas de uma forma bioética coerente com pluralismo moral da humanidade. E, por outro lado, a prática bioética deve estar sustentada na diferenciação dos limites, tanto internos quanto externos, o que permite o respeito a si próprio e ao outro.
Nesse tipo de compreensão, o antiético seria não perceber as funções psicossociais, que são necessárias para o processo de individualização. A onipotência do pensamento, decorrente da incapacidade do reconhecimento do outro, caracteriza a permanência no estado narcísico e de relações de objeto, impossibilitando o desenvolvimento bioético. A elaboração desse estado é necessária, mas não suficiente, para o pensamento bioético, pois a falta de possibilidade de pensar, que consideramos como representante da pulsão de morte, também é antiética.
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