É da redação do caput do artigo 610 do CPP, que, distribuído o processo para a Turma julgadora, os autos irão imediatamente com vista ao procurador-geral pelo prazo de cinco dias. Para que? Entende-se, e é a praxe de longa data, que vão com vista para que o Procurador de Justiça (ou Procurador Regional da República, em se tratando da Justiça Federal) lance parecer nos autos. O estranho é que o artigo 610 nada refere quanto a parecer. Diz apenas que vão com vista.
A Lei n. 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do MP) dispõe em seu artigo 25, inciso V, que incumbe ao MP manifestar-se nos processos em que sua presença seja obrigatória por lei e, ainda, sempre que cabível a intervenção, para assegurar o exercício de suas funções institucionais, não importando a fase ou grau de jurisdição em que se encontrem os processos. Segundo o artigo 41, inciso III, deste mesmo texto legal, constitui prerrogativa dos membros do MP "ter vista dos autos após distribuição às Turmas ou Câmaras e intervir nas sessões de julgamento, para sustentação oral ou esclarecimento de matéria de fato". Já a Lei Complementar 75/1993, que dispõe sobre o Ministério Público da União, em seu artigo 6o., inciso XV, diz que compete ao MP manifestar-se em qualquer fase dos processos, acolhendo solicitação do juiz ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse em causa que justifique a intervenção.
Pode o MP, portanto, intervir, manifestar-se e ter vista dos autos após distribuição às Turmas ou Câmaras e intervir nas sessões de julgamento, para sustentação oral. Como se observa, nenhum texto legal determina que o MP apresente parecer ou razões escritas quando o processo se encontra no Tribunal. Ao contrário, segundo o artigo 41, inciso III, da Lei n. 8.625/93, possui a prerrogativa de ter vista dos autos após a distribuição às Turmas e intervir nas sessões de julgamento para sustentação oral. Esse parecer, se lançado nos autos, além de não estar previsto em lei, implica em inconstitucionalidade em face de violação da ampla defesa e do contraditório. Se o recurso for da defesa, após as contrarrazões do promotor público em 1ª. instância, com o parecer haverá uma segunda manifestação da MP. É quebra da regra da igualdade. Em sendo o recurso da acusação, as contrarrazões serão da defesa e após estas será o MP que se manifestará por último com o parecer, o que é mais grave ainda, na medida em que poderá contraditar argumentos da defesa que ficarão sem réplica. Logo, há nulidade do julgamento na apresentação do parecer ministerial. Só não haverá nulidade se, após o parecer, for oportunizado à defesa a se manifestar sobre ele por escrito. Mas são procedimentos que devem ser evitados, eis que, além de defesa e acusação já terem se manifestado por ocasião do recurso, novas manifestações vêm em prejuízo do princípio da celeridade.
A esta altura cabe a indagação: por que o artigo 610 determina que o processo vá com vista ao MP? Para qual fim se não for para dar-se parecer? A resposta é simples. O Procurador de Justiça ou da República possui o direito de ter a palavra e manifestar-se oralmente na sessão de julgamento. Como faria isso se, ao contrário do que se verifica com a defesa, nunca antes teve qualquer contato com o processo, suas particularidades, teses e provas? Evidentemente não se pode pretender que o MP esteja preparado para sustentar o que quer que seja no julgamento se previamente não tiver conhecimento da lide. Portanto, a intenção da lei concedendo vista ao Procurador é a de que ele tome conhecimento das questões debatidas no processo, possibilitando, assim, caso entenda necessário, fazer sustentação oral durante o julgamento.
Importante o registro de que a jurisprudência não tem reconhecido a nulidade da apresentação de parecer pelo MP em 2ª. instância. O principal argumento utilizado, e que absolutamente não convence, é de que o Procurador que atua perante o Tribunal o faz como custos legis. A concepção de membro do MP como custos legis no processo penal constitui tese das mais esfarrapadas da dogmática processual penal. É ficção criada pela doutrina e pela jurisprudência. A prática confirma nosso entendimento, já que a imensa maioria dos pareceres do MP em 2ª. instância são no sentido de confirmar e/ou reforçar a tese acusatória apresentada nas razões ou contrarrazões da acusação. Além do mais, o Procurador de Justiça ou Procurador Regional da República que atuam perante o Tribunal continuam sendo membros do Ministério Público, mesma instituição a que pertencem os colegas que firmam as razões recursais. Essa posição, a de pertencer ao MP, instituição encarregada da persecução de delitos, acrescida do fato de quem oferece razões ou contrarrazões ao recurso ser um colega, retiram do Procurador qualquer possibilidade de ser imparcial. Desenvolvemos esse assunto de forma detalhada no título Ministério Público. Parte ou fiscal de lei em comentários ao artigo 257.
É parte no processo quem dele participa interessadamente, ou seja, com interesse, pouco importando se o interesse é próprio ou de terceiro. O interesse provoca a parcialidade e esta é inerente ao conceito de parte. Incumbe, no processo penal, à acusação, velar pelo interesse social de punição dos culpados, e, à defesa, o encargo de proteger o interesse social de absolvição dos inocentes. Assim, o MP não é fiscal de lei nem age no processo como custos legis, já que, representando interesse, não é imparcial. A função de ser imparcial é do juiz, não do Ministério Público, e não pode esse órgão tentar usurpar essa função jurisdicional. O MP não é nem pode ser imparcial, do contrário, não haveria o indispensável contraditório no processo penal. A ação penal, o processo penal, funda-se na dúvida quanto à relação jurídica de direito penal que vincula o Estado ao acusado (a dúvida é se o Estado detém o direito de punir ou se acusado possui o direito de liberdade). Havendo essa dúvida, é pacífico e é da sistemática da legislação processual penal, o MP deve acusar. Diante da prova duvidosa, deve denunciar. Na dúvida, deve realizar a perseguição do delito. O MP só seria imparcial se diante da dúvida, estivesse obrigado a pedir a absolvição ou a recorrer em favor do réu, o que não se verifica. Excepcionalmente, quando as provas com um bom grau de certeza indicam a inocência do réu, o MP pode pedir a absolvição. Pode até mesmo recorrer em favor do réu pleiteando sua inocência. Mas essas faculdades não constituem fundamentos para considerar o MP como fiscal da lei, já que não são conseqüência da lei processual, mas sim, derivam do fato de que ninguém pode ser obrigado a fazer algo que viole a sua própria consciência. O MP é tão fiscal da lei quanto a defesa. Um fiscaliza a lei que manda punir os culpados e outro que a determina absolver os inocentes. Ambos são xerifes da lei penal. O MP é fiscal das tipicidades da lei penal e a defesa dos vácuos existentes entre as tipicidades e das normas excludentes de tipicidade, de antijuridicidade, de culpabilidade e extintivas de punibilidade. Das tipicidades nasce o direito de punir. Dos vácuos situados entre as tipicidades brota o direito de liberdade. A propósito, se for para estabelecer comparações dá para sustentar que a defesa é mais fiscal da lei que o MP. O que é mais grave? O que viola com maior intensidade a ordem jurídica? Um culpado inocentado ou um inocente condenado e cumprindo pena por algo que não fez? Da resposta dá para extrair a conclusão que o bem jurídico fiscalizado pela defesa (a liberdade do inocente) constitui bem maior do que o fiscalizado pela acusação (a punição do culpado). É uma conclusão que pode provocar estranheza em alguns, o que é explicável tendo em consideração que vive-se em uma cultura repressiva e punitiva, o que, de certa forma, produz conseqüências na dogmática penal.
De onde surgiu essa praxe processual do MP de oferecer parecer quando lhe é dada vista dos autos pelo relator? Talvez um Procurador de Justiça tenha no passado, por ter entendido útil ou por ter imaginado tratar-se de uma obrigação processual, atravessado intempestivamente uma petição dando a ele a designação de parecer e a ilegalidade de tal conduta tenha passado desapercebida pelo Tribunal e com o tempo essa conduta acabou por tornar-se um costume e, como sabido, a força do costume forense é tamanha que chega a cegar aos olhos sua ilegitimidade. Como disse Erasmo de Rotterdan, não há nada de tão absurdo que o hábito não torne aceitável e que o Padre Antonio Vieira completou ao afirmar que a pior coisa que têm os maus costumes é serem costumes: ainda é pior que serem maus.