A controvérsia, indubitavelmente, é um traço marcante no Direito. Nesta seara, raro encontrar posições unânimes e unívocas. Vale aquiescer, sem embargo, que divergências, discussões e pontos de vista diferentes, longe de serem obstáculos e impedimentos, são, na imensa maioria das vezes, salutares e bem-vindos para da elucidação de contendas, bem como são relevantes para o progresso das estruturas sociais.
Deveras, a questão que se apresenta, pois, visa discutir, data maxima venia, se o entendimento formulado pelo STF acerca dos chamados fatos geradores pendentes, conforme dicção do art. 105, do CTN, solidificado na Súmula 584 ("Ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.") e no RE 183.119-7/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão ("o fato gerador da obrigação tributária relativa ao Imposto de Renda e, pela mesma razão à contribuição social sobre o lucro, surge no último dia do exercício social quando se dá o levantamento do balanço social das empresas alusivo ao período encerrado, não contrariando o princípio da irretroatividade a exigência do tributo calculado com base em lei editada no curso do ano-base."), é, realmente, compatível com os princípios da irretroatividade e da anterioridade expressos, respectivamente, nas alíneas a, b e c, do inc. III, do art. 150, da Carta Magna de 1988.
No dizer de AMÉRICO FÜHRER (2002:50), "Fato gerador é o fato ou situação que gera ou cria a obrigação tributária. Do francês, fait générateur. O fato gerador, de acordo com a doutrina tradicional, tem dois aspectos. Primeiramente, temos o fato gerador no sentido da concepção abstrata, de descrição em tese, feita pela lei, de um fato ou situação que fará surgir a obrigação tributária (se ocorrer o fato X, incidirá o tributo Y). Em segundo lugar, temos o fato gerador no sentido da ocorrência concreta, existente no mundo real, conforme foi descrito na lei (o fato X ocorreu; deu-se, portanto, a incidência do tributo Y)."
Neste diapasão, LUCIANO AMARO (2002:257) leciona que "O fato gerador do tributo é dito instantâneo quando sua realização se dá num momento do tempo, sendo configurado por um ato ou negócio jurídico singular que, a cada vez que se põe no mundo, implica a realização de um fato gerador e, por conseqüência, o nascimento de uma obrigação de pagar tributo. [...] O fato gerador do tributo designa-se periódico quando sua realização se põe ao longo de um espaço de tempo. Não ocorrem hoje ou amanhã, mas sim ao longo de um período de tempo, ao término do qual se valorizam ‘n’ fatos isolados que, somados, aperfeiçoam o fato gerador do tributo. É tipicamente o caso do imposto sobre a renda periodicamente apurada, à vista de fatos (ingressos financeiros, despesas, etc.) que, no seu conjunto, realizam o fato gerador."
No que concerne à aplicação da legislação tributária, na abalizada doutrina de FERREIRA JARDIM (2000: 22), é correto afirmar que se trata de "Ponto terminal de positivação do direito, cujo início repousa na norma fundamental e que por meio de um desdobramento verticalizado culmina por incidir num caso particular." Vale dizer, num primeiro momento, evidentemente que respeitados os trâmites pertinentes, deve restar a lei válida, vigente e apta a produzir os respectivos efeitos a que se destina. Ultrapassada esta fase, emergindo, numa segunda etapa, um ‘fato da vida real’ ou, como de costume na doutrina, um ‘caso concreto’, a partir daí, sim, a situação de fato suscitada pode ser ‘amoldada’ à situação hipotética descrita e/ou prescrita pela norma. É o que comumente se denomina de subsunção.
CELSO BASTOS (2002:84) corrobora a acepção supra delineada, haja vista que, "Na verdade os casos concretos estão sempre a demandar a sua inclusão no ordenamento jurídico. É dizer, procura-se dentro do próprio ordenamento jurídico selecionar quais as normas capazes de abarcar, ou melhor, regular aquela situação concreta. Faz-se o caminho inverso do da criação do Direito, qual seja, de uma hipótese ampla e genérica vai-se ao caso concreto com a finalidade de disciplinar uma situação existente no mundo fático. Trata-se de uma concreção."
Da grafia inequívoca do doutrinador, exsurge a idéia de ordem, ordenamento ou, melhor dizendo, de sistema, especificamente o jurídico. Nesta linha, ANDRÉ RAMOS TAVARES (2002:86) enfatiza que "o conjunto de normas constitucionais forma um sistema, que no caso é, necessariamente, harmônico, ordenado, coeso, por força da supremacia constitucional, que impede o intérprete de admitir qualquer contradição interna." Em relação às infraconstitucionais, então, a incompatibilidade torna-se inconcebível.
Supremacia e/ou supremo, segundo o DICIONÁRIO AURÉLIO (1999:1907) significam, respectivamente, "Superioridade, preeminência, hegemonia e poder supremo" e "Que está acima de tudo, último, extremo, superior, sumo, [...]". À evidência, tem-se, pois, um silogismo, uma dedução formal, qual seja, se se está acima, logo, há uma relação de hierarquia em face ao que está sob esse ‘teto’. E, havendo um conjunto de leis superiores, vale frisar, então, há um sistema jurídico-normativo com imposição hierárquica destes elementos constitucionais sobre todos os outros diplomas normativos.
Sistema, portanto, nas palavras de ROQUE ANTONIO CARRAZZA (2001:31) "é a reunião ordenada da várias partes que formam um todo, de tal sorte que elas se sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas primeiras. As que dão razão às outras chamam-se princípios, [...]."
Na esteira, segundo o mesmo ROQUE ANTONIO CARRAZZA (2001:33), "princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com elas se conectam."
Neste sentido, CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (2001:771) denota que princípio é, "por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo."
E, BANDEIRA DE MELLO (2001:772) complementa, dizendo que, "Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a forma mais grave de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra."
Não há dúvidas de que, em sentido lato e emitindo um juízo de valor clássico, a Constituição tem uma importância e um peso sobremaneira superior às demais subdivisões do sistema, sem evidentemente, entender como insignificantes todas as leis complementares, ordinárias, delegadas e todos os outros atos normativos. Ao contrário, reitera-se, devem ser considerados como relevantes, no sentido de tornam possível a operacionalização, justamente, das linhas mestras do Documento Maior.
No entanto, como visto, estando os princípios na base do sistema e havendo afronta aos mesmos, logo, todas as normas infraconstitucionais incompatíveis e que não se coadunam com o Texto Magno são ‘natimortas’ e/ou tornam-se inválidas perante um novo sistema implantado por uma nova Constituição.
É o que ocorreu, ao ver, com o art. 105, do CTN, em face aos princípios da irretroatividade e da anterioridade insculpidos na Lei Suprema de 1988. Por uma notória questão temporal, a Carta veio depois do CTN e a este, por conseguinte, foi aplicado o fenômeno da recepção pelo novo ordenamento. A grande maioria das normas do CTN foi, sem embargo, recepcionada, mas, nesta situação, é certo firmar posição no sentido de que os princípios constitucionais suplantam os dispositivos que estão abaixo deles, a prescrição do art. 105, do CTN, principalmente.
Na seqüência das assertivas conclusivas, quanto à Súmula nº 584, deve-se proceder a uma remissão à data em que a lei entrou em vigor e há que se ponderar duas situações na aplicação da aludida Súmula: a) se a publicação ocorreu no ano anterior ao ano-base, não há problemas, porque estará, logicamente, pela obviedade, em consonância com os princípios da irretroatividade e da anterioridade; b) se a publicação se deu no ano-base, ou, pior, no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração – após, pasmem, a própria ocorrência dos fatos geradores –, então, ressaltando o imenso respeito que se devota aos eminentes Ministros do Pretório Excelso, o que dispõe a Súmula não pode prevalecer.
E, como corolário, diante de todo o exposto, no que concerne ao julgamento do Recurso Extraordinário em tela, então, com a devida reverência aos membros do STF, só há que se cogitar de uma possibilidade plausível, qual seja, a de que a deliberação precisa ser revista. Ora, sendo editada uma lei onerando o contribuinte no decorrer do ano-base em que se consigna os fatos geradores e a mesma passando a produzir efeitos no mesmo ano de sua publicação, não há dúvidas em afirmar que os princípios da irretroatividade e da anterioridade foram desrespeitados e afrontados.
Destarte, são considerações e observações que merecem meditações e reflexões.
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