Sumário: 1. Introdução; 2. Visão geral sobre responsabilidade civil; 3. Responsabilidade extracontratual; 4.A tutela jurídica do nascituro; 4.1. Considerações gerais; 4.2. Correntes doutrinárias; 5. Dano moral e a questão do nascituro: possibilidades; 5.1. Fundamentos do dano moral; 5.2. Dano moral causado ao nascituro; 6. Entendimento jurisprudencial; 7. Conclusões; 8.Notas; 9.Referências bibliográficas.
1.Introdução
Este trabalho tem por objetivo analisar a questão do dano moral causado ao nascituro, investigando sob que formas e em que casos este poderia ser indenizado. Não seria completo, no entanto, sem um estudo, ainda que breve, sobre a personalidade jurídica do nascituro. Dependendo da posição doutrinária adotada, a aplicação dos princípios da responsabilidade civil toma rumos díspares, variando entre pólos extremos.
Ao unir dois temas tão palpitantes, nos deparamos ora com o conservadorismo, ora com as interpretações leigas e não-jurídicas. A realidade jurisprudencial, ao invés de apontar caminhos seguros, também mostra uma série de contradições.
Enquanto a questão da reparabilidade do dano moral demorou anos para ser pacificada, a tutela dos direitos do nascituro no Brasil ainda esbarra em dificuldades criadas pela própria ordem jurídica. Embora surjam a cada dia novas idéias acerca da personalidade do nascituro e os avanços tecnológicos sejam crescentes, os tribunais brasileiros demonstram pouca flexibilidade para a mudança de seus entendimentos.
Havendo dano moral ao ainda não nascido, as incertezas aumentam assustadoramente. Não há qualquer intenção clara dos juízes em definir posicionamentos sobre a matéria, o que leva Silmara Chinelato e Almeida a afirmar que, "pelo menos no Brasil, a jurisprudência nega a indenização pela morte do nascituro, embora reconheça que a morte de animais, por culpa extracontratual ou culpa contratual, deva ser indenizada".(1)
Além de mostrar o atual pensamento doutrinário sobre o início da personalidade e a questão do nascituro, buscamos relacionar este tema com a possibilidade de indenização por dano moral no direito brasileiro, exemplificando o entendimento jurisprudencial dominante no país.
2.Visão geral sobre a responsabilidade civil
As ordens jurídicas, em todas as épocas, e em grande parte das civilizações, depararam-se com a árdua missão de regular os fatos mais importantes da vida das coletividades. Pode-se dizer que, inicialmente, o Direito surge nas sociedades humanas como instrumento de coercitividade e poder, ainda que sob a égide de supostas influências divinas.As condutas humanas, valorizadas positiva ou negativamente pelo corpo social, são objeto de julgamento pelos órgãos coercitivos, mesmo dispersos e não-organizados. Vemos que, na grande maioria das culturas, a vida sempre foi elevada ao status de bem jurídico máximo. Para sua proteção, foram criados regimes que, de forma essencialmente retributiva, puniam o homicídio com o banimento, suplícios ou a própria vida do ofensor.
Com a intensificação das relações privadas de comércio e a crescente valorização da propriedade, esta tornou-se também objeto de proteção jurídica. O dano a bens materiais, mesmo não atacando pessoalmente o dono, deveria ser punido. Daí advém, v.g. os ancestrais crimes de furto, usurpação e dano.
Desde legislações antiquíssimas como o Código de Hamurabi, e com maior intensidade no Direito Romano, construiu-se um princípio que orienta para a preservação tanto do outro como de seu patrimônio: o neminem laedere, ou seja, "não prejudicar a ninguém".(2) Sobre esta orientação, quase universal nos dias de hoje, fundamenta-se o instituto da responsabilidade civil.
Etimologicamente, o termo "responsabilidade" se origina do latim respondere, responder a alguma coisa.(3) Significa imputar a alguém as consequências de certos atos por ele praticados. Quando estão de acordo com a ordem jurídica não há questionamento mas, estando em oposição às normas, adquirem outra dimensão. É justamente a verificação de responsabilidade por atos ilícitos (ou defesos por convenção das partes) o tema principal do instituto em análise.
Todavia, a responsabilidade civil não se resume a imputar deveres jurídicos sucessivos, oriundos da violação da ordem(4), mas também a regular a indenização dos prejuízos advindos destas condutas. Logo, seus pressupostos máximos, tanto da modalidade subjetiva como da objetiva, são a ação ou omissão ilícita (ou contrária a acordo das partes), o dano a ser reparado e o nexo de causalidade entre ambos.
Note-se que sem a ocorrência do dano não há que se falar em responsabilidade civil do agente pois, segundo Vedel, esta consiste "na obrigação imposta, em certas condições, ao autor de um prejuízo, de repará-lo, quer in natura, quer em algo equivalente"(5)
Segundo a doutrina brasileira mais respeitada (Sílvio Rodrigues, Serpa Lopes, José de Aguiar Dias), a responsabilidade civil é, a grosso modo, o dever obrigacional de reparar o prejuízo causado. É uma forma de restabelecer, quando possível, o status quo antem. Quando não, a indenização tem caráter reparatório ou até mesmo compensatório, no caso de dano moral.
É importante salientar que a responsabilidade civil não se confunde com a penal. Esta considera o dano causado a outrem como agressão à paz social, sendo a sanção imposta em nome de toda a coletividade, sem caráter de reparação imediata. Já aquela é essencialmente privada, tendo a consequência do ilícito pouquíssima relevância para os que não estão diretamente envolvidos. As duas formas, penal e civil, podem se reunir num só caso (v.g. dano à propriedade alheia, erro médico que acarreta graves sequelas), mas não se fundem, como prevê textualmente o Código Civil, em seu art. 1.525. Pode, no entanto, o autor ser obrigado a reparar os prejuízos e, além disso, ser penalizado criminalmente.
Também relevante é a distinção entre responsabilidade civil subjetiva e objetiva. Funda-se na consideração ou não da culpa lato sensu como elemento essencial para a configuração do dever de restituir.
Num primeiro momento, grande parte dos doutrinadores consideraram que, para a formação da obligatio decorrente, o ato deveria ser doloso ou culposo. Todavia, o desenvolvimento industrial e tecnológico criou situações que, mesmo acarretando prejuízos, não tinham amparo no conceito tradicional de culpa. A reação doutrinária a este dilema veio com a teoria revisionista da responsabilidade, que desconsiderava a visão subjetiva (incluindo a consideração da culpa). As noções objetivas de risco e perigo substituiriam a culpabilidade do agente, valorizando mais o nexo causal e o próprio dano.(6)
Não houve, no entanto, a substituição plena. Hoje a responsabilidade objetiva convive com a subjetiva, sendo aplicada em casos determinados, dada a impossibilidade ou deficiência da utilização da culpa como dado caracterizador da responsabilidade.
O Código Civil não fugiu a esta idéia, consolidando a teoria subjetiva em seu art. 159. O ponto de vista objetivo, ainda que não dominante, é utilizado em casos previstos por lei. Como exemplo, temos a responsabilidade objetiva em relação aos direitos do consumidor ( Lei nº 8.070/90, art. 12), e do Estado pelos danos causados por seus agentes (CF, art. 37, §6º).
3. Responsabilidade extracontratual
Ao conceituar e classificar a responsabilidade civil, uma distinção torna-se fundamental, pela série de implicações jurídicas que gera: a da responsabilidade contratual e extracontratual. Esta última é, e nisso procede a afirmação de Orlando Gomes, "o aspecto mais interessante da teoria dos atos ilícitos".(7)
A responsabilidade contratual está alicerçada, sem dúvida, no inadimplemento, na "quebra" de um acordo feito previamente. Preexiste neste caso um vínculo obrigacional, do qual o dever de indenizar surge como consequência do não-cumprimento. O ilícito tem uma dimensão restrita: é negocial, sendo o contrato a fonte do dever jurídico sucessivo.
Já na responsabilidade extracontratual, não há qualquer vínculo anterior que una o causador do dano (ou o responsável) à vítima. Há tipicamente a responsabilidade por ato ilícito, sem pré-constituição de fonte negocial. Como precisamente afirma Ricardo Pereira Lira, "ilícito extracontratual é, assim, a transgressão de um dever jurídico imposto pela lei, enquanto que ilícito contratual é violação de dever jurídico criado pelas partes no contrato.(8)
Embora haja, de forma discreta, uma teoria monista quanto à origem do dever de indenizar, predomina a tese dualista ou clássica, adotada pelo Código Civil brasileiro. Este reserva à modalidade extracontratual o art. 159, enquanto o art. 1.056 trata da responsabilidade oriunda dos contratos. Note-se que o primeiro situa-se em Título referente aos atos ilícitos, enquanto o segundo tem sua sede em Capítulo que trata da inexecução das obrigações. Não há, portanto, que se falar em identidade das duas categorias, embora teoricamente o estudo possa ser unificado.
4. A tutela jurídica do nascituro
4.1. Considerações gerais
A disciplina jurídica das pessoas (naturais ou jurídicas) sempre ocupou lugar de destaque na teoria geral do Direito Civil. É assunto que desde a Roma antiga atrai discussão e polêmicas, por seu caráter essencial na ordem jurídica. E, dentro deste campo de estudo, situa-se um tema dos mais árduos, com posições divergentes ao extremo e nenhuma perspectiva de solução: a personalidade (ou não) do nascituro.Ao abordar a questão sob o viés da responsabilidade civil, diminuem substancialmente as possibilidades de obtenção de uma resposta segura. Unem-se dois grandes problemas: definir quando surge a personalidade jurídica do ser humano e, num segundo momento, avaliar as hipóteses de reparação de eventuais danos causados.
De início, é preciso conceituar o que seria o nascituro. Etimologicamente significa "o que está por nascer". Para Pontes de Miranda, seria "o concebido ao tempo em que se apura se alguém é titular de um direito, pretensão, ação ou exceção, dependendo a existência de que nasça com vida".(9) Silmara Chinelato e Almeida o define como "pessoa por nascer, já concebida no ventre materno (in anima nobile), a qual são conferidos todos os direitos compatíveis com sua condição especial de estar concebido no ventre materno e ainda não ter sido dado à luz.".(10)
Com o grande avanço experimentado na Biologia e principalmente na Engenharia Genética, vemos que hoje o conceito de nascituro é bem mais técnico. Engloba o feto, o embrião e, para alguns, o próprio zigoto.(11)
Dentre este leque de possibilidades, destaca-se o entendimento da Prof. Silmara Chinelato. Pare ela, o nascituro surge com o fenômeno da nidação, ou seja, da fixação do ovo na parede do útero materno. Com isso sua viabilidade estaria garantida, num estágio de sobrevida. Vale também salientar que esta posição não confere ao embrião fertilizado in vitro, mas ainda não implantado no organismo materno caráter de nascituro, já que a gravidez é elemento essencial para a configuração da viabilidade.(12)
Mais importante que definir o que seja nascituro é analisar sua proteção jurídica no decorrer da história. No Direito Romano, o início da personalidade jurídica se dava com o nascimento, não se considerando o não-nascido como sujeito de direitos. Era antes parte do corpo da mãe, portio mulieris vel viscerum.(13)
No campo do direito comparado, destacam-se alguns exemplos antigos e modernos de tutela jurídica do nascituro. Interessante, por exemplo, é a opção feita pelo Código Espanhol que, em seu art. 30, afirma que a personalidade só tem início se o recém-nascido tiver "forma humana" e viver por 24 horas (art. 30). Em certos casos não há que se falar em nascituro ou pessoa, mas em monstro, um ser aberrante e defeituoso. Esta exigência de "normalidade" vem sendo combatida veementemente, por criar situações absurdas (v.g. deficiente físico sem personalidade) e não aceitar os avanços da medicina no tratamento de malformações congênitas.
Já o Código Civil argentino, de forma extremamente progressista, afirma em seu art. 70 que a personalidade jurídica da pessoa humana se inicia com a concepção. No entanto, em outros dispositivos deste Código, percebe-se que o legislador não concedeu plenitude à "pessoa por nascer", vinculando sua existência ao nascimento com vida. Há, portanto, a aquisição condicional de direitos, sob a dependência do nascimento.(14)
4.2.Correntes doutrinárias
Para explicar a natureza jurídica do nascituro, surgiram diversos posicionamentos, variando entre pólos opostos. Tradicionalmente, a doutrina divide-se em três grandes grupos: natalista (defende que a personalidade tem início a partir do nascimento com vida), concepcionista (personalidade a partir da concepção) e da personalidade condicional (a personalidade começa com a concepção, sob a condição do nascimento com vida). Esta última é erroneamente chamada de concepcionista. Todas as correntes aqui citadas entram num conflito de hermenêutica, já que entendem de formas diversas o art. 4º do Código Civil brasileiro, de redação aparentemente contraditória.
A primeira, considerada conservadora, fundamenta-se na idéia de impossibilidade de "direitos sem sujeito", negando ao nascituro caráter de ser humano já formado. Hoje em desuso, esta posição teve em Bernard Windscheid seu maior representante.
A teoria da personalidade condicional, por seu caráter eclético e intermediário, acaba por atrair parte considerável da doutrina. É a posição de Clóvis Beviláqua, embora este aproxime-se bastante da teoria concepcionista.(15) Seus defensores sustentam que o nascituro tem personalidade, sob a condição de que nasça com vida. Sem este evento, aquela não se concretizaria. A grosso modo, esta vem sendo a orientação jurisprudencial dominante no direito brasileiro, principalmente em relação a direitos patrimoniais e ações de reparação.
Já a corrente concepcionista é bem mais radical. Seguida inicialmente por Teixeira de Freitas, Planiol e Rubens Limongi França, defende que, desde a vida intra-uterina (entenda-se vida viável, a partir da nidação) o nascituro é pessoa, sendo portanto titular de direitos. Para Silmara Chinelato, defensora desta idéia, a personalidade do nascituro é incondicional, não dependendo de nenhum evento subsequente, estando seus direitos personalíssimos (vida, liberdade, saúde) garantidos. No entanto, certos efeitos de certos direitos (como os patrimoniais) dependem do nascimento com vida. A titularidade dos direitos não seria discutida, havendo apenas incapacidade. Já em relação aos direitos patrimoniais, o nascimento sem vida funcionaria tão só como condição resolutiva.(16)
Baseado nesta linha de argumentação, o professor Sílvio Neves Baptista aponta os direitos a receber doação e herança como existentes desde a concepção, mas dependentes do nascimento com vida para a produção de efeitos. Além disso, o professor defende que o nascituro tem direito a alimentos, uma vez que é ser humano e necessita de refeições adequadas, tratamento pré-natal e assistência médica.(17)
Também neste grupo está Maria Helena Diniz. Para ela, "tem o nascituro personalidade jurídica formal, no que se refere aos direitos personalíssimos, passando a ter personalidade jurídica material, adquirindo os direitos patrimoniais, somente, quando do nascimento com vida. Portanto, se nascer com vida, adquire personalidade jurídica material, mas, se tal não ocorrer, nenhum direito patrimonial terá".(18)
Como argumento final dos concepcionistas, há o recurso ao Código Penal, que em seus arts. 124 a 126 considera crime o aborto. Neste caso, haveria uma ofensa à vida, bem jurídico do qual o titular é o nascituro. Vê-se aí, para os que defendem o concepcionismo, uma clara manifestação legal em prol da personalidade anterior ao nascimento.
5. Dano moral e a questão do nascituro: possibilidades
5.1. Fundamentos do dano moral
Como diz o professor Sérgio Cavalieri Filho, "o dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil".(19) É elemento essencial, e principal caracterizador do dever jurídico sucessivo de indenizar (tornar indene). Podemos conceituá-lo como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza. Este conceito compreende as duas maiores formas de dano: patrimonial e moral.
O primeiro abrange os casos em que o bem atingido faz parte do patrimônio da vítima, tendo valor econômico definível. Via de regra, o dano patrimonial pode ser reparado através de prestação pecuniária. Esta modalidade pode ser dividida em dois grupos: o dano emergente e o lucro cessante.
Há dano emergente quando a diminuição do patrimônio é imediata e completa. É o desfalque propriamente dito, a lesão a um bem já determinado. Nestes casos o quantum debeatur é de fácil avaliação: corresponde ao valor econômico, à perda ou à quantia necessária para reparar os estragos causados ao bem.
Já os lucros cessantes correspondem a frustração da expectativa de ganhos futuros, rendimentos ou salários pela vítima. É necessário que esta previsão tenha o mínimo de certeza e razoabilidade, evitando assim a consideração de lucros imaginários e danos remotos. A mensuração pecuniária desta espécie depende essencialmente do prudente arbítrio do juiz, uma vez que não há dados empíricos que provem o "dano futuro". A fixação do quantum, de modo geral, é feita com a utilização de parâmetros (v.g. salário da vítima, média de faturamento diário, período médio de vida e trabalho), que orientam o arbitramento judicial.(20)
O dano moral, no entanto, difere enormemente do patrimonial. Refere-se a esfera pessoal da vítima, que é lesada em direito de valor inestimável. A ausência de determinação pecuniária do dano é o principal traço característico desta espécie. Além disso, atinge valores fundamentais da vida humana (integridade física, saúde, paz, alegria, reputação e a própria vida, entre outros).(21)
O conceito de dano moral extrapola os limites do mero subjetivismo, que considera apenas os prejuízos de ordem sentimental do homem. Hoje abrange os danos estéticos (lesões corporais, erros médicos), sociais (acusações injustas, difamação, ataques públicos à honra) e todos os direitos da personalidade, incluindo os fundamentais. Essa amplitude levou alguns doutrinadores a preferirem a expressão "dano não-patrimonial". José de Aguiar Dias resumiu esta questão afirmando: "Quando ao dano não correspondem as características de dano patrimonial, dizemos que estamos em presença do dano moral".(22)
A natureza jurídica da indenização, nestes casos, não é verdadeiramente reparatória, e sim compensatória. Afinal, a dor, o sofrimento e a humilhação provocados por uma deformação corporal, trauma psicológico ou pela perda de um filho são insuscetíveis de avaliação pecuniária. Todavia, não há que se falar em pretium doloris, mas de uma real compensação ao mal injustamente provocado à vítima. Para alguns, a reparação, além de compensar de alguma forma o dano, sanciona o agente, tendo caráter também punitivo.
A jurisprudência brasileira anterior à Constituição de 1988 rejeitava veementemente a possibilidade de indenização por dano moral. Acolhia a tese de sua irreparabilidade, já que não haveria formas de avaliar economicamente os prejuízos causados. Apenas em alguns acórdãos isolados e dissonantes foram arbitradas indenizações reconhecendo a tese da reparabilidade. Na década de 80 esta postura, outrora minoritária, foi ganhando relevo, e o arbitramento do dano moral passou a ser objeto de diversos julgados. Com o advento da Constituição Cidadã, a proteção foi definitivamente assegurada (art. 5º, X). Hoje vemos que o dano moral pode e deve ser indenizado, orientado pelo princípio da razoabilidade e pela prudência judicial.
Pode-se resumir esta questão de maneira enfática: o dano moral, que atinge a esfera não-patrimonial do indivíduo ou até mesmo da pessoa jurídica, é susceptível de reparação (ou compensação), devendo esta ser arbitrada razoavelmente pelo livre convencimento judicial.
5.2. Dano moral causado ao nascituro
Após esta breve introdução à matéria, atingimos uma grande discussão doutrinária e jurisprudencial: a possibilidade de consideração dos danos morais causados ao nascituro. Para isso, é fundamental que se adote uma das teses quanto a sua personalidade e, dependendo da opção, diversos entendimentos podem ser obtidos.
Caso a teoria natalista fosse adotada, seria criado um quadro interessante. O nascituro não poderia receber qualquer indenização, já que não é pessoa nem sujeito de direito. Se sua genitora viesse a falecer e este sobrevivesse, o dano moral (dor, sofrimentos futuros, desamparo) seria causado ao filho por nascer. Nesta hipótese, a ausência de personalidade quando do falecimento da mãe impediria, numa interpretação lógica, a pretensão do filho em obter qualquer indenização do que causou o dano.
O mesmo problema ocorreria se o nascituro fosse vítima de medicamento ministrado à mãe durante a gravidez, resultando em sequelas físicas terríveis (v.g. o famoso caso dos "filhos da talidomida"). O dano moral a ele causado dificilmente seria indenizado, já que à época do eventus damni não detinha a titularidade do direito à integridade física. Poderia ser tentada a indenização à mãe, que resultaria numa compensação reflexa e seguramente de menor valor pecuniário.
Adotando a teoria da personalidade condicional, a possibilidade de reparação estaria situada no mesmo patamar da personalidade: para que exista, deve haver o nascimento com vida. Caso este ocorra, o nascituro é considerado pessoa, e os danos morais a ele causados são passíveis de indenização. Todavia, sendo o nascimento frustrado, o agora natimorto seria juridicamente inexistente, sem nunca ter sido pessoa.
Como nos exemplos anteriores, a saída seria uma "reparação reflexa", exigível por seus ascendentes. Embora o natimorto não pudesse de forma alguma postular a reparação em nome próprio, vale salientar que o quantum debeatur certamente não será o mesmo. A indenização por um filho morto seguramente seria maior que pela morte de um feto que jamais teve o status de ser humano.
Se, de forma oposta, o nascituro for considerado pessoa em sua plenitude (teoria concepcionista), pode ele ser indenizado por danos morais ou, caso tenha falecido, seus ascendentes podem exigir a dita reparação. Nesta última hipótese, considerar-se-ia que o dano foi causado a filho menor, ampliando as possibilidades de indenização e, ainda que de forma indireta, do quantum indenizatório.
Para Benedita Inêz Lopes Chaves e Silmara Chinelato, ambas da corrente concepcionista, a indenização por dano moral causado ao nascituro é plenamente justificável, uma vez que este seria pessoa e titular de direitos. Nestes casos, o fundamento legal da responsabilidade, seja ela contratual ou extracontratual, seria exatamente o mesmo usado para os já nascidos.(23)
Chinelato leva o problema às ultimas consequências, ao afirmar que "no dano moral, sua reparação que visa a uma compensação e não a um ressarcimento faz-se pelos mesmos critérios que norteiam a indenização pela morte de filho menor."(24)
Este último exemplo provoca uma discussão ainda sem resposta. A Súmula 491 do STF, editada antes de 1988, consolidou uma posição jurisprudencial dominante à época, afirmando que "é indenizável o acidente que causa a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado". Nestes casos, parte dos tribunais confere aos pais da vítima uma pensão mensal, ainda que não haja perspectivas concretas de que o filho morto ajudaria financeiramente nas despesas do lar.(25) Sendo o menor nascituro, não haveria empecilhos legais para a concessão de pensão aos pais, uma vez que a matéria foi sumulada pelo Pretório Excelso.
Todavia, a referida pensão é uma indenização por dano patrimonial (perda de uma fonte de renda), e não moral. Além disso, a mesma professora Silmara afirma, no já citado artigo, que os direitos patrimoniais materiais dependem do nascimento com vida. Este último argumento nos leva a crer impossível a concessão, embora considerando o nascituro como filho menor. Infelizmente, a jurisprudência brasileira ainda não consolidou posicionamento quanto à relação entre a Súmula 491 do STF e o problema da personalidade do nascituro, sendo desconhecidos quaisquer julgados que versem sobre este tema.