Princípios da lei de execução penal frente aos tratados internacionais.

Análise dos casos Carandiru e Urso Branco

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A violação aos direitos humanos no sistema prisional brasileiro, em especial na Casa de Detenção do Estado de São Paulo (Carandiru) e no Presídio Urso Branco. Relatórios da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

RESUMO

A consagração dos direitos humanos fundamentais na Lei de Execução Penal frente aos tratados internacionais. Positivação dos direitos fundamentais nos tratados internacionais: Declaração Universal dos Direitos dos Homens, Convenção Americana de Direitos Humanos. Direitos Humanos do preso na Constituição Federal de 1988: dignidade da pessoa humana. Penas privativas de liberdade e o caráter ressocializante da pena. A violação aos direitos humanos no sistema prisional brasileiro, em especial na Casa de Detenção do Estado de São Paulo (Carandiru) e no Presídio Urso Branco. Relatórios da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Palavras-Chave: Direito Processual Penal. Tratados Internacionais. Lei de Execução Penal. Direitos Humanos. Sistema Carcerário. Carandiru. Presídio Urso Branco.

PRINCIPLES OF THE EXECUTION PENAL LAW: analysis of Carandiru and Urso Branco cases.

ABSTRACT

The consecration of human rights in the Law of Penal Execution based on international treaties: Universal Declaration of Human Rights, American Convention on Human Rights, Costa Rica. Prisoner human rights in the 1988 Federal Constitution: human dignity. Custodial sentences and the resocializing character of the sentence. Human rights violation in the brazilian prison system, especially in Carandiru and Urso Branco Prison. Reports of the Inter-American Court of Human Rights.

Keywords: Law of Penal Process. International Traties. Law of Penal Execution. Human Rights. Prison System. Carandiru. Urso Branco Prison.

1 INTRODUÇÃO

 Os direitos humanos, da forma como conhecemos hoje, são fruto de uma longa jornada intelectual ao longo dos séculos. O inicio desta historia encontra-se atrelada ao Cristianismo, durante a Idade Média, onde se afirmava a defesa da igualdade de todos os homens numa mesma dignidade.

O momento mais simbólico, na história dos Direitos do Homem, é o período compreendido entre 1945 e 1948. Em 1945, os Estados se dão conta das atrocidades vividas durante a 2ª Guerra Mundial, o que os levou a criar a Organização das Nações Unidas (ONU) em prol de estabelecer e manter a paz no mundo. Foi através da Carta das Nações Unidas, assinada a 20 de Junho de 1945, que os povos exprimiram a sua determinação.

Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo realizar análise relativa aos direitos e garantias que tem um preso segundo o ordenamento jurídico brasileiro, em relação aos principais tratados e convenções internacionais das quais o Brasil é signatário e, portanto, se obrigou a cumprir.

Faz-se importante abordagem dos mencionados Tratados Internacionais, e como estes fazem a proteção dos direitos humanos de forma ampla, podendo inclusive, caso aconteça violação grave, que o caso seja levado a julgamento pela Corte Internacional, órgão de última instância para violações deste tipo, demonstrando como podem ser visualizados em território brasileiro, pela Constituição Federal de 1988 e, principalmente, pela Lei de Execução Penal (LEP), que, embora ofereçam mecanismos de proteção aos direitos fundamentais dos presos, não são devidamente aplicados na prática.

Como resultado, percebem-se massacres em presídios e vários presos vivendo em condições subumanas e sujeitos a situações inaceitáveis em um país que adota o Estado Democrático de Direito. Alguns destes casos são relatados no presente trabalho, como o massacre no Carandiru e as rebeliões no presídio Urso Branco.

2 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

            Na gradativa evolução dos Direitos humanos, ao longo da história, surgem as gerações de Direitos fundamentais, que representam a positivação dos direitos consagrados pelos povos, para todos os povos, em cada ordenamento jurídico.

            A primeira geração de direitos fundamentais diz respeito aos direitos individuais, entre eles, à vida, à liberdade, à expressão, dentre outros. Uadi Lammêgo Bulos cita, sobre o nascedouro destas liberdades:

No século XVIII, com as revoluções Americana e Francesa, representaram o instrumento de luta política da burguesia contra o Estado absolutista centralizador e os resquícios do feudalismo. Conclamavam a democracia, a educação, a liberdade, a igualdade e a fraternidade. (BULOS, p. 524).

            Com o amadurecimento destes ideais, houve espaço, bem como a necessidade, de lutas alçadas a patamares cada vez mais elevados, na busca por direitos fundamentais que abrangessem as demasiadas classes e interesses humanos: direitos de segunda geração, que visam assegurar o bem estar e a igualdade, como preleciona Bulos, “(...) direitos relacionados ao trabalho, ao seguro social, à subsistência digna do homem (...)”; os novos direitos, de terceira geração, incorporados nos ordenamento jurídicos em crescente escala, apregoando o meio ambiente equilibrado, a autodeterminação dos povos, dentre outros. Nesse ínterim, é certo afirmar que, na medida das demandas que nascem, “novos” direitos são aclamados, no sentido de proteção total da dignidade da pessoa humana.

           

3 POSITIVAÇÃO: TRATADOS INTERNACIONAIS

Após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos dos Homens, assinada em 10 de Dezembro de 1948, por meio da Assembleia Geral das Nações Unidas, fundamental, até os dias de hoje em nossa Sociedade, houve a necessidade do preparo de inúmeros documentos que especificassem os direitos presentes na declaração e assim fossem forçados os Estados a cumpri-la, com vistas a salvaguardar estes Direitos, tão inerentes à própria existência humana e, no que atine à matéria, aos direitos humanos dos presos. No rol destes tratados, dos mais importantes, encontram-se a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 1984, bem como a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, ratificados, pelo Brasil, respectivamente em 1989 e 1992.

A convenção contra a tortura, na esteira da Carta das Nações Unidas, surge para fortalecer ainda mais a ideia de igualdade de Direitos entre todos os “membros da família humana”, de forma a banir penas cruéis, pautada, ainda, no Artigo 5º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que dispõe, in verbis: “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” .

Esta Convenção define como tortura, em seu artigo 1º:

Artigo 1º - Para fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. (CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA, 1984).

Bem como, dispõe, acerca de outros tipos de penas consideradas cruéis:

Artigo 16 - 1. Cada Estado-parte se comprometerá a proibir, em qualquer território sob a sua jurisdição, outros atos que constituam tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes que não constituam tortura tal como definida no artigo 1, quando tais atos forem cometidos por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. (CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA, 1984).

            Isto posto, fica claro a proteção que se dá ao preso, no momento em que, da assinatura do tratado, o Estado parte compromete-se a coibir qualquer pena que degrade o homem. Aqui, visa-se a proteção da dignidade da pessoa humana, ou seja, o reconhecimento de que, independente da condição de preso, assiste, a todos os seres humanos, direitos correlatos à condição existencial, com garantias às integridades física e psicológica. A convenção veda, além da tortura “(...) outros atos que constituam tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (...)”. Compreendem-se, aqui, dentre as mais controversas formas de intervenção estatal, com aplicação do direito penal máximo, as penas de prisão perpétua e de morte.

            Em sua obra clássica, Dos delitos e das penas, Beccaria, sobre a pena de morte, expõe:

A soberania e as leis nada mais são do que a soma das pequenas partes de liberdade que cada qual cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, que resulta da reunião das vontades individuais. Mas quem já pensou em dar a outros homens o direito de lhes tirar a existência? Será o caso de supor que, por sacrificar uma parte ínfima de sua liberdade, cada indivíduo tenha desejado arriscar a própria vida, o bem mais precioso de todos? (BECCARIA, p. 51).

            Apesar de adotada em uma série de países, da análise e interpretação atenta do excerto supra, bem como da luta intensa na construção histórica dos direitos humanos, que ultrapassaram fronteiras, assumindo espaço nas várias Constituições Nacionais, na busca incessante pela dignidade da pessoa humana, resta comprovado que esta espécie de pena deve, sim, ser considerada como um meio cruel de se punir o homem, tendo em vista que ela ceifa a vida, o bem mais superior de todos. Para a efetivação da real intenção destes tratados, um nível superior, há a necessidade da erradicação da pena de morte, visão um tanto utópica, sabendo-se que a grande potência mundial, os Estados Unidos, bem como a grande potência em ascensão, a China, são entusiastas desta espécie de pena, respectivamente pela política do Direito penal máximo e pelo sistema ditatorial implantado neste último país.

            Outra pena, a qual se discute a “crueldade” incidente, é a de prisão perpétua. Deixar que um homem passe toda a sua vida em uma prisão, sem esperanças de um dia sair, parece extremamente degradante. Nesse sentido, decidiu a Corte Europeias de Direitos Humanos, em 2012, que, sem o instituto da revisão, decorridos 25 (vinte e cinco) anos do início do cumprimento da pena, a prisão perpétua fere a Convenção Europeia de Direitos Humanos, que tem, como guardiã, a referida Corte, constituindo uma pena cruel, que retira todas as aspirações do ser humano.

            Como pode se depreender do que já fora citado, a Convenção Europeia de Direitos Humanos proíbe tratamento desumano ou degradante. Dessa forma, todos os condenados têm de ter uma possibilidade clara de, algum dia, ter a sua punição revista. Contudo, não devem mais representar riscos à sociedade, podendo, ainda sim, passar a vida inteira na prisão, caso represente risco social, levando em consideração os critérios de cada país, respeitados os tratados de direitos humanos, podendo, de todo modo, ser agraciado com o instituto da revisão, e consequente mudança de panorama.

4 LEP, CONSTITUIÇÃO E TRATADOS INTERNACIONAIS

A Carta Magna brasileira, ápice da pirâmide legal e por sua vez fonte formal que rege todo o âmbito normativo nacional recepcionou a dignidade humana. Neste viés, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, alocou a dignidade da pessoa humana como princípio basilar do Estado Democrático de Direito, o que garante ao preso um tratamento digno.

Dessa forma, ao alçar a dignidade da pessoa humana a direito fundamental, a Constituição, obviamente, veda as penas de prisão perpétua, de morte, salvo em caso de guerra declarada, bem como, penas cruéis, em observância ao que estabelece a Convenção contra a Tortura.

            Isto posto, destaca-se a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84), instituída para concretizar as decisões criminais e proporcionar a integração social do condenado e do internado.

A despeito de o advento da Lei de Execução Penal ter surgido quatro anos antes da Constituição Federal, seu bojo normativo não se afastou das propostas constitucionais, notadamente dos direitos e garantias fundamentais. É imperioso reconhecer que a LEP trouxe consigo densa carga liberal, a exemplo das disposições nela estabelecidas acerca da progressão de regime e do trabalho do preso. Isto porque a preocupação do legislador ordinário com a integração social do condenado ou internado, visando a não reincidência, evidenciou-se como direcionamento substancial a ser seguido. Aliás, a literalidade do art. 1º inaugura o estudo da referida lei consoante tal viés. In verbis:

Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

O Artigo 1º da LEP demonstra intrínseca relação com o que determina o Artigo 5º do Pacto de San Jose da Costa Rica, que estabelece, quanto à integridade pessoal: 6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”. A LEP, então, ao instituir o objetivo da execução Penal, como meio para integração social e harmônica do condenado, claramente busca, por este ambiente “saudável”, a readaptação do preso, para sua reinserção social.

A Lei de Execução Penal ratifica, em todo o seu bojo normativo, os argumentos ora expostos. No entanto, trazendo à baila maior profundidade à temática abordada, a análise do Capítulo IV, seção II da referida lei se impõe. Trata-se de seção destinada ao rol de direitos não só do condenado e internado, mas também do preso provisório.

A integridade física e moral do preso representam valia reconhecida por todo o ordenamento jurídico. Isto porque, além da disposição supramencionada no Código Penal, o próprio art. 40 da LEP, inaugurando a seção dos direitos do preso, reafirma tal preceito, ao estabelecer que “impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”. Depreende-se destas disposições legais, assim, novamente, a obediência da legislação ordinária à Constituição Federal, que, por sua vez segue o que afirmam os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, aqui citando o Pacto supra, “1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral., estando os presos em total igualdade de proteção.

Em sequência, a Lei de Execução Penal atribui um rol específico de direitos do preso em seu art. 41. Constituem direitos do preso, em linhas gerais, assistência material, à saúde, jurídica, social, educacional, religiosa e familiar, quais sejam:

Art. 41 - Constituem direitos do preso:

I - alimentação suficiente e vestuário;

II - atribuição de trabalho e sua remuneração;

III - Previdência Social;

IV - constituição de pecúlio;

V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;

VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;

VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;

VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;

IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;

X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;

XI - chamamento nominal;

XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;

XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;

XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;

XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.

XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.

Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.

O direito à alimentação suficiente, ao vestuário e à higiene esboça o mínimo de humanidade atribuída ao preso. No entanto, outros direitos listados pela LEP representam notória importância para a dignidade do preso, merecendo destaque os direitos do apenado relacionados ao trabalho, direito constitucional estabelecido pelo art. 6º da CF, o que amplia as disposições do Pacto de San Jose da Costa Rica: “Artigo 11 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”. Relaciona-se, ainda, ao inciso XIV, o que dispõe o Artigo 8º, do aludido Pacto:

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Artigo 8º - Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Entretanto, embora estas garantias presentes em tratados internacionais, assinados pelo Brasil e consagradas constitucionalmente, é nítido várias situações em que ocorre sua violação pelo próprio Estado.

O maior exemplo desse insulto aos direitos humanos é o sistema carcerário brasileiro, em que todos os dias, indivíduos condenados ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade, têm afetado sua dignidade quando deparados com a superlotação carcerária, espancamentos, ausência de programas de reabilitação que funcionem com efetividade, escasso tratamento médico, etc. A ressocialização, esta que figura como uma das funções da pena torna-se quase impossível o seu alcance, devido aos óbices instalados pela própria negligência do Estado, configurando-se na falta de investimento em programas governamentais que visassem a inserção daquele indivíduo infrator. É o que será tratado nos casos adiante.

5 CASOS DE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Demonstrados os direitos humanos que geralmente sofrem violação nos sistemas penitenciários, cumpre registrar, neste momento, alguns casos particulares no âmbito carcerário brasileiro. Violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, ao direito à vida, à intimidade, à saúde, consubstanciados em superlotações e até em execuções sumárias por parte do Estado, são práticas que fazem das penitenciárias brasileiras local de irradicação de violência, em decorrência de que, muitas vezes, o acusado de cometer delito menos grave sai do estabelecimento prisional ou já tendo cometido crimes mais graves durante o período em que esteve preso ou com o potencial de praticar condutas criminais mais graves, afastando o sistema penitenciário do caráter de ressocialização, ao qual se deveria vincular a sanção penal. Neste sentido, abordar-se-á os episódios ocorridos na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), no presídio Urso Branco.

5.1 O Caso do Carandiru

O Massacre do Carandiru, como foi popularizado pela imprensa brasileira, foi realizado no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo por tropas da Polícia Militar e representou o maior episódio de violação aos direitos humanos já ocorrida em penitenciárias brasileiras após o processo de redemocratização do país. Os relatórios oficiais e descrições pessoais sustentam que a maioria dos detentos mortos foi executada sumariamente pelos policiais, fato que ensejou a propositura de petição formalizada pela Americas Watch, pelo CEJIL (Centro pela Justiça e Direito Internacional) e pela Comissão Teotônio Vilela em face da República Federativa do Brasil, por meio da qual se buscou a condenação do estado brasileiro pela violação dos artigos 4 e 5 previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos (proteção do direito à vida e à integridade pessoal).

Consta do relatório produzido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, às 14 horas do dia 2 de outubro de 1992, dois presos brigaram com outros reclusos no segundo andar do referido pavilhão. Em razão da briga, os agentes penitenciários aglomeraram e confinaram os detentos no intuito de impedir que os presos acessassem os corredores do prédio e assim generalizassem a briga. Estes, exasperados, conseguiram romper as trancas e iniciaram o motim (Relatório n. 34/00 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos).

Segundo o referido relatório, os carcereiros retiraram-se do estabelecimento, e o diretor da prisão, Ismael Pedrosa, solicitou reforço da Polícia Militar e convocou os magistrados competentes (juízes da Vara de Execuções Penais e o da Corregedoria dos Presídios) para que iniciasse as negociações com os rebelados. Frustrada a tentativa de negociação, às 16 horas teve início a ocupação do Pavilhão 9 pelos policiais. Algumas horas depois, 111 pessoas haviam sido mortas: nenhum policial.

À guisa de mera ilustração, faz-se oportuna a transcrição de alguns trechos da obra intitulada “Estação Carandiru”, de Dráuzio Varela, em que são relatados, de forma íntima, os momentos imediatamente anteriores ao motim e durante a ação da Política Militar. Varela prestava serviços médicos aos presidiários da Casa de Detenção à época da rebelião, razão pela qual obteve relatos de vários sobreviventes. Veja-se (Varella, ps. 280/288, 1999):

Naquela tarde, no campo do Nove, enfrentavam-se o Furacão 2000 e o Burgo Paulista na disputa do campeonato interno do pavilhão. Nos andares, os presos arrumavam os xadrezes. Tudo calmo, como imaginava o diretor. No decorrer do jogo, inesperadamente, como ocorrem os acontecimentos mais graves nas cadeias, o Barba brigou com o Coelho na rua Dez do segundo andar do pavilhão, um armado de faca, o outro com um pedaço de pau. Briga de rotina, não fossem as terríveis consequências.

(...)

Na confusão que se estabeleceu, o pessoal do campo subiu para o segundo andar e o confronto adquiriu proporções mais sérias.

(...)

Para conter os ânimos, os funcionários recolheram os presos do campo, medida preventiva que facilita trancá-los para evitar o pior, se necessário. Mas não havia mais condições de obrigar a malandragem exaltada a entrar nas celas. O conflito era irreversível.

(...)

A correria e os gritos disseminaram o tumulto pelos andares. Cadeia é como panela de pressão: quando explode, impossível conter.

(...)

De qualquer modo, com a ausência dos guardas, o pavilhão caiu nas mãos dos rebelados. Logo o Nove, onde vai parar principalmente a garotada presa pela primeira vez. Gente sem experiência de cadeia, como o Nardão, um ladrãozinho principiante que aderiu porque, por coincidência, tinha tomado um baque de cocaína no xadrez quando começou o alvoroço:

- A cadeia caiu no nosso poder. Digo nosso porque, naquela circunstância, nós está (sic) tudo envolvido. Aí protestamos contra a nossa melhoria, que o ambiente já não vinha do melhor, muitos manos querendo transferência, cara com a Colônia assinada, pena vencida, as visitas um pinguinho só, e já era.

E verdade, há tempos os funcionários alertavam que o ambiente no Nove deixava a desejar, mas fazer o quê? Num pavilhão daqueles, na época com 2 mil homens espremidos feito sardinha, fases mais tensas aconteciam periodicamente. Como adivinhar o momento da explosão?

(...)

Enquanto isso, os oficiais da polícia militar, acompanhados de autoridades judiciárias, assumiam o comando da cadeia. O diretor ainda tentou convencê-los a deixá-lo dialogar com os prisioneiros. De fato, chegou até a porta que dá acesso ao pátio externo do Nove, mas, antes que pudesse entrar, a PM, em formação militar atrás dele disparou portão adentro. Só podem contar o que se passou daí em diante, como diz o dr. Pedrosa:

- A PM, os presos e Deus.

(...)

Recolhido em seu xadrez, Majestade, corintiano fanático desde criança, como o tio que o levava para assistir aos treinos no Parque São Jorge, escutou a PM anunciar do térreo:

- Entra todo mundo no xadrez que nós vamos invadir.

Segundo os relatos, os presos obedeceram, pois, como dizem, é tradição na cadeia:

- A gente pode ser tudo ignorante, ladrão, malandro, mas burro não. Ninguém gosta de morrer. Quando a PM invade, todo mundo corre para o xadrez, que os homens vêm de coturno, cachorro e calcado nas armas. Não tem condição de encarar eles na galeria com faca e pedaço de pau.

(...)

Dadá correu para sua cela, onde encontrou mais treze pessoas tentando se esconder dos invasores, como ele. Achou um canto atrás de um pequeno muro junto a pia e se agachou. Não esperou muito nessa posição incômoda. O Choque chegou depressa no terceiro andar. Pelos gritos, então, percebeu que as balas não eram inofensivas como havia imaginado:

- Vocês não me chamaram? Não pediram a morte? E é só barulho de rajada. Os infelizes que moscaram para se esconder foram os primeiros a cair. Era tiro seco e grito de pelo amor de Deus! Nós quietinhos no xadrez, eu feito avestruz, sem coragem para levantar a cabeça de trás da pilastrinha da pia.

A morte correu pela galeria e chegou na porta de sua cela:

- Um polícia abriu o guichêzinho da porta, enfiou a metralhadora e gritou: Surpresa, chegou o diabo para carregar vocês para o inferno! Deu duas rajadas para lá e para cá. Encheu o barraco de fumaça, maior cheirão de pólvora. Só fui perceber que estava vivo quando senti um quente pingando nas costas. Era sangue, na hora até pensei que fosse meu. Olhei para os parceiros, tudo esfumaçado, furado de bala, pondo sangue pela boca.

Morreram onze, escapei só eu, com um tiro de raspão no pescoço, e um companheiro da Cohab de Itaquera, o ileso, maior sorte.

(...)

Passava das três da tarde quando a PM invadiu o pavilhão Nove. O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa. Embora tenha sobrado para todos, as baixas mais pesadas ocorreram no terceiro e no quinto andar. Cerca de trinta minutos depois de ordenada a invasão, nas galerias cheias de fumaça ouviram-se gritos de "Para, pelo amor de Deus! Não é para matar! já chega, acabou! Acabou!". Uma depois da outra, as metralhadoras silenciaram.

Em que se pese o caráter literário e não oficial da obra de Varela, a qual foi produzida a partir dos comentários dos presos sobreviventes ao massacre, tais trechos sugerem a forma com a qual a Polícia Militar procedeu na execução sumária dos detentos, bem como revelam algumas características das condições de vida e do perfil dos presos que habitavam o superlotado Pavilhão 9.

Em verdade, conforme o Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o pavilhão da Casa de Detenção, onde ocorreu o massacre, alojava, em setembro de 1992, 2.706 internos, ou seja, mais do que o dobro de sua capacidade. Este pavilhão era destinado a habitar detentos que cumpriam sua primeira pena de prisão, muitos deles sequer haviam sido condenados. A maioria tinha entre 18 e 25 anos de idade. Estavam encarcerados em 248 celas, ou seja, em média, oito presos ocupavam cada cela, não restando espaço para trabalhar ou realizar qualquer atividade recreativa. Ademais, somente 15 agentes penitenciários estavam responsáveis pela vigília dos detentos.

Presos aglomerados, péssimas condições de habitação, insegurança e impunidade aos delitos cometidos dentro do estabelecimento penal são alguns fatores que corroboram o sentimento de violência e injustiça experimentados pelos presos, muitas vezes deflagrados em rebeliões dos detentos. É por esta razão que a legislação pátria determina que o Estado possui a obrigação de promover assistência ao preso, com o fito de prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. No particular, conforme previsão expressa da LEP, o Estado deveria ter promovido o “fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas” aos presos do Carandiru (art. 12, LEP).

Cumpre registrar que tais condições representavam grave desrespeito às disposições da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ferindo especialmente seu art. 5º:

Artigo 5º - Direito à integridade pessoal

1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano (Grifou-se).

Desta forma, foi concluído no Relatório da CIDH que as péssimas condições estruturais do cárcere e a ausência de planejamento de prevenção e combate a situações de rebelião, observadas no mau comportamento tanto dos agentes penitenciários no momento da prevenção da rebelião quanto das forças judiciárias no momento da negociação com os rebelados, representaram o descuido das autoridades para com a segurança dos detentos, que assim viam-se a mercê das violentas “leis” que imperavam no estabelecimento penal. Veja-se trecho do mencionado relatório:

As condições de vida dos detentos contrárias aos preceitos da lei, as rebeliões anteriores ocorridas em Carandiru e a falta de estratégias de prevenção destinadas a evitar a eclosão de atritos, aliadas à incapacidade do Estado de desenvolver uma ação negociadora que poderia ter evitado ou diminuído a violência do motim, configuram por si sós uma violação, por parte do Estado, da sua obrigação de garantir a vida e a integridade pessoal dos que se encontram sob a sua custódia. Acrescente-se a isso o fato de que, contrariando a legislação nacional e internacional, a maioria dos que se encontravam reclusos naquele momento em Carandiru estavam sendo processados mas ainda não haviam sido condenados (encontrando-se portanto sob a presunção de inocência), embora fossem obrigados a conviver, nessas situações de alta periculosidade, com os réus condenados.

Além do mais, as execuções extrajudiciais praticadas pela Polícia Militar representaram o quanto o poder estatal, recém saído de um regime ditatorial, ainda carregava o desrespeito aos princípios democráticos, como o direito à vida dos presidiários. Reitera-se que vários dos detentos mortos no massacre do Carandiru ainda não haviam sido condenados, ou seja, encontravam-se amparados pelo princípio da presunção da inocência.

Dessa maneira, levada à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão julgadora concluiu pela responsabilização da República Federativa do Brasil na violação do direto à vida e à integridade pessoal dos detentos vítimas do Massacre do Carandiru, em razão da omissão do Estado referente à promoção de condições dignas de detenção, bem como da ausência de estratégias e medidas adequadas para prevenir as situações de violência e para debelar possíveis motins.

Como efeito, a Comissão de Direitos Humanos consignou recomendações ao Estado para que se efetive mecanismos de prevenção e combate à situações semelhantes. Veja-se:

Com fundamento na análise e nas conclusões deste relatório,

A Comissão de Direitos Humanos recomenda à República Federativa do Brasil o seguinte:

1. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva a fim de identificar e processar as autoridades e funcionários responsáveis pelas violações dos direitos humanos assinaladas nas conclusões deste relatório.

2. Adotar as medidas necessárias para que as vítimas dessas violações que foram identificadas e suas famílias recebam adequada e oportuna indenização pelas violações definidas nas conclusões deste relatório, assim como para que sejam identificadas as demais vítimas.

3. Desenvolver políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das casas de detenção, estabelecer programas de reabilitação e reinserção social acordes com as normas nacionais e internacionais e prevenir surtos de violência nesses estabelecimentos. Desenvolver, ademais, para o pessoal carcerário e policial, políticas, estratégias e treinamento especial orientados para a negociação e a solução pacífica de conflitos, assim como técnicas de reinstauração da ordem que permitam a subjugação de eventuais motins com o mínimo de risco para a vida e a integridade pessoal dos internos e das forças policiais.

4. Adotar as medidas necessárias para o cumprimento, no presente caso, das disposições do artigo 28 da Convenção (Cláusula federal) relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, neste caso o Estado de São Paulo.

Em relação aos primeiros dois itens, informa-se que nem todos os policiais envolvidos nas violações aos direitos humanos das vítimas do massacre foram identificados, mas houve, em 2014, a conclusão do julgamento em primeira instância, que condenou 73 policiais militares pelas mortes de 77 presos. 34 mortes ficaram fora desse julgamento. Cinco delas, provocadas por arma de fogo, seriam imputadas exclusivamente ao coronel Luiz Nakaharada, mas o policial militar morreu em dezembro de 2013, antes de ir a julgamento. As outras 29 (por armas brancas e armas de fogo) não tiveram a autoria reconhecida, não podendo, assim, ser atribuídas aos Policiais Militares que entraram no pavilhão 9 do Carandiru.

No que consiste às recomendações destinadas à criação e ao desenvolvimento de políticas e estratégias de descongestionamento dos sistemas penitenciários brasileiros, não há dúvidas de que tais medidas ainda estão distantes de se serem a regra no processo de execução penal do Brasil. Pelo contrário, muitos estabelecimentos prisionais ainda apresentam graves deficiências estruturais e estratégicas, que ainda fomentam a violência nos presídios e consequentemente resultam em novas rebeliões, como no caso do presídio Urso Branco.

5.2 O caso do Presídio Urso Branco (Rondônia)

Chamado oficialmente de Casa de Detenção José Mário Alves, o presídio Urso Branco possui construção datada dos anos 90, tendo como objetivo servir de abrigo para presos provisórios, nos termos dos artigos 82 e 84 da Lei 7.210/94. Considerado o maior centro prisional da região Norte do Brasil, o presídio situado no estado de Rondônia desde cedo foi alvo de críticas no que tange às suas condições estruturais, pois estas não foram pensadas em coerência com o clima da região, situação que só se agravou com a superlotação do estabelecimento prisional.

Ao longo dos anos, os casos de rebeliões e homicídios dentro do presídio só aumentaram, marcados sempre por extrema violência entre facções criminosas rivais. De acordo com os dados da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho, aproximadamente 100 detentos foram mortos no interior do presídio, entre os anos de 2000 e 2007.

Em 2001, após tentativa de fuga, o juízo da Vara de Execuções Penais ordenou a separação dos presos ameaçados de morte (os “seguros”) e findou com certa liberdade dada para alguns outros presos, os chamados “celas livres”. No cumprimento da ordem, membros de grupos rivais foram inseridos em celas iguais, dando início a uma rebelião, em 1º de janeiro de 2002. Esta foi contornada apenas 18 horas depois, com um saldo de 45 detentos mortes de forma violenta – dados posteriormente retificados pelo governo do estado, que apontou o óbito de 27 detentos. Em março, abril e maio do mesmo ano, novos assassinatos ocorreram no interior do presídio (seis, ao todo), marcados por extrema violência na execução.

Em 2004, outra rebelião teve fim trágico no presídio Urso Branco. Cerca de 300 pessoas foram feitas de reféns naquela ocasião, em sua maioria mulheres, pois na data da eclosão do motim coincidiu com o dia de visita familiar. Reivindicando a exoneração da direção do estabelecimento, os presos destruíram paredes das celas, eliminando as divisas dentro dos pavilhões. Dois presos foram executados, um em frente aos reféns e à mídia. Foi suspenso o fornecimento de alimentação e água para o interior da casa de detenção. A rebelião findou-se apenas 6 dias depois, com a assinatura de acordo. Entre os termos da negociação, destaca-se: o direito de visita de crianças aos detentos; a melhoria da prestação de serviços de saúde no presídio, com funcionamento semanal de segunda à sexta-feira; requisição de assistência jurídica no local; melhoria na alimentação e espaço destinado a uma igreja. Os motins se repetiram também no ano de 2006.

Em visita ao estabelecimento em 2006, a Pastoral Carcerária Nacional constatou a prática de tortura feita por agentes penitenciários e policiais miliares. Alguns dos casos foram encaminhados à promotoria de justiça da Vara de Execuções Penais de Porto Velho. A denúncia da Pastoral Carcerária Nacional (2006) trouxe exemplos:

1) Jairo dos Santos Campos, preso no bloco F, cela n.º 6, foi torturado pelo diretor de segurança, Senhor Nascimento, no dia 24 de outubro de 2006 às 6:00 horas, mediante a utilização de um rodo49, resultando ferimentos nas costas e palmas das mãos do interno;

2) Marcos Frazão Feitosa, preso no bloco G, cela de triagem, foi torturado no dia 22 de outubro de 2006, às 22:00 horas pelo policial militar Vilton Douglas Felix da Costa, mediante a utilização de um cassetete;

3) Clebson Lopes da Cruz, preso no bloco B, cela n.º 8, foi torturado por agentes penitenciários no dia 22 de outubro de 2006, às 8:00 horas na Igreja localizada dentro do Urso Branco, por meio de socos e pauladas, resultando em ferimentos na região das costas e pescoço;

4) Emanuel Nelson Pereira Rios Junior, preso no bloco F, cela n.º 6, foi torturado por agentes penitenciários no dia 4 de outubro de 2006, às 3:00 horas, com o uso de cassetetes e de afogamento, resultando em costelas quebradas e sangue nas fezes.

Durante a contenção dos motins daquele ano, a chamada “Operação Pente Fino”, realizada em conjunto pela Secretaria de Administração Penitenciária do estado de Rondônia (SEAPEN/RO) e pelo Comando de Operações Especiais da Polícia Militar do estado de Rondônia (COE) revistou os presos colocando-os apenas com as roupas íntimas, expostos ao sol, na quadra de futebol. Os presos passaram seis dias dormindo em local a céu aberto. O clima da região, marcado por sol intenso, fez com que alguns dos presidiários tivessem queimaduras de primeiro e segundo grau. Os presos não se ausentaram daquela situação nem mesmo para fazer suas necessidades fisiológicas. A ofensa aos direitos humanos foi em escala tão significativa que a Organização Mundial contra Tortura manifestou-se, demonstrando receio em relação às condições de integridade física e mental aqueles que cumpriam pena o presídio Urso Branco.

O relatório da CJP e da Justiça Geral tomou como base a Convenção Americana de Direitos Humanos e as Regras da Organização Nacional das Nações Unidas, sobre a matéria: as “Regras Mínimas para Tratamentos dos Reclusos”; “Princípios básicos para o tratamento dos reclusos”; o “Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão” (2007, CJP), além dos princípios estabelecidos na LEP e na Constituição Federal/88. Aponta o referido relatório que, o cenário da casa de detenção José Mário Alves resulta na afronta a uma série de direitos humanos estabelecidos em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. Com bases nesses relatos, a CJP e a Justiça Global prestaram denúncia junto ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, diante das condições degradantes as quais eram submetidos os detentos do presídio Urso Branco.

Em primeiro plano, destaca-se a violação do direito à vida e à integridade física (artigos 4º e 5º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos). Ressalta-se que a Convenção firma como dever do Estado o estabelecimento de medidas cabíveis para proteção à vida, bem como milita pelo não uso de penas de tortura, ou de tratamento cruéis e desumanos. No caso daqueles submetidos à custódia do Estado, este então ocupa a posição de garante, devendo primar pelos direitos humanos dos aprisionados. Dessa forma, o Estado está vinculado não só à responsabilidade negativa – aquela que prevê a não adoção de práticas ameaçadoras a esses direitos –, mas também ao cumprimento da obrigação positiva, qual seja, atuar na posição de assegurador da vida e da integridade física dos custodiados. No caso em análise, diante do retrospecto de rebeliões e mortes, marcadas por uso da extrema violência, constata-se o descaso com as garantias aqui expostas. O relatório da CJP e da Justiça Global elenca como principais posturas não percebidas, no caso do presídio Urso Branco, para preservação da vida e da integridade física, as seguintes:

Com efeito, o Estado brasileiro descumpre o artigo 4º da Convenção, em detrimento dos internos do presídio Urso Branco, na medida em que:

  • não adota medidas adequadas para prevenir e solucionar a ocorrência de rebeliões e conflitos entre grupos de presos rivais, que resultam em mortes no interior da unidade prisional;
  • não realiza uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de definir responsabilidades penais, civis e administrativas;
  • alguns agentes penitenciários violam diretamente o direito à vida dos presos, haja vista a execução sumária do interno José Antônio da Silva Júnior, em 09 de julho de 2007.

Com relação ao artigo 5º da Convenção, o Estado brasileiro viola o direito à integridade pessoal dos internos do Urso Branco (integridade física e psíquica), na medida em que:

  • não adota medidas adequadas para prevenir e solucionar a ocorrência de rebeliões e conflitos entre grupos de presos rivais, que resultam em graves danos à integridade física e moral dos presos;
  • não realiza uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de definir responsabilidades penais, civis e administrativas;
  • não assegura condições dignas de detenção às pessoas privadas de liberdade (v. item 6.2);
  •      alguns agentes penitenciários violam diretamente, e de forma sistemática, o direito à integridade pessoal dos presos, de acordo com as denúncias sucessivas de tortura. (2007, CJP, p. 44-45).

Outro ponto preocupante descrito no relatório da CJP em conjunto com a Justiça Global aborda a estrutura física do presídio Urso Branco. Os estudos realizados por essas entidades apontam que, em 2002, o número de pessoas cumprindo pena naquele estabelecimento era de 1.000 internos, quando a capacidade do local é de 350 vagas. Cinco anos mais tarde, o número de internos era de 1.009. A superlotação gera transtornos gravíssimos à integridade dos detentos, à segurança da unidade prisional e à salubridade em geral. Ademais, as celas contam com precário sistema de ventilação, o que se torna insuportável se for levado em consideração o clima do estado onde se localiza o presídio Urso Branco.

O sistema de organização do presídio também é passível de falhas, e o que é mais grave, no que tange à exigências expressas na Lei de Execuções Penais. Em 2006, as visitas das entidades responsáveis pelo referido relatório levado às cortes internacionais detectaram a existência de comunicação entre as celas, bem como a inexistência de cadeados nestas, em um sistema chamado “celas livres”, incompatível como qualquer forma de cumprimento de pena extraído da LEP. Outro ponto preocupante foi a não preocupação, por um longo período de tempo, com a separação entre os presos provisórios e os condenados dentro do estabelecimento.  A problemática é ainda mais grave, haja vista que não se definia Urso Branco como uma casa de detenção ou como presídio. O descaso relatado demonstra uma forte afronta às determinações dos artigos 82 e 84 da LEP, que preceituam a devida isolação entre presos provisórios daqueles com condenação transitada em julgado. No mais, tais determinações também encontram respaldo na presunção de inocência prevista no artigo 8.2 da Convenção Interamericana, como forma de garantir um tratamento adequado àquele cuja culpabilidade não foi devidamente certificada dentre do devido processo legal.

Outros pontos adentrados pelo relatório em análise dizem respeitos, em especial, a inobservâncias às assistências previstas no Capítulo II da Lei 7.210/84. Primeiramente, em entrevista com os aprisionados, muitos se queixaram de receberem a devida assistência da Defensoria Pública, sendo desconhecidos os andamentos de suas ações penais e processos de execução. Nesse ponto, é válido mencionar que o artigo 16 da referida lei estabelece como assistência jurídica aquela feita dentre e fora da unidade prisional, ou seja, tanto no atendimento interno dos presos, como em pontos fora dos presídios, no acompanhamento processual e na prestação de informações aos familiares.

Já no que tange ao atendimento médico e odontológico, relatou-se a construção de uma nova enfermaria em 2005, mas que esta estava sendo utilizada para abrigar presos, sendo o atendimento clínico realizado na antiga enfermaria, de condições bastante limitadas. O oferecimento de atividades alternativas dentro do estabelecimento também se revelou precária. Foram detectadas iniciativas dos próprios presos para a criação de fábrica de tijolos e serrarias. Uma vez partindo da iniciativa dos detentos – inclusive no que se refere à disponibilização de recurso financeiro – mesmo que estes se envolvam nas referidas atividades, não há qualquer controle por parte da direção do presídio sobre os dias e horas trabalhadas, o que dificulta a aplicação da remição da pena, nos termos do artigo 126 e seguintes da LEP.

Diante da série de ofensas tantos aos direitos humanos estabelecidos em tratados internacionais como aos princípios consubstanciados pela própria LEP, somada a ineficácia do poder Judiciário brasileiro em reverter o quadro do caótico do presídio Urso Branco, o caso foi levado a julgamento de cortes internacionais. Em 2002, a CPJ e a Justiça Global requereram medidas cautelares junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visando a proteção da integridade física e da vida dos detentos daquele estabelecimento. As medidas direcionadas pela Corte ao Brasil basicamente se resumiram em adoção de medidas protetivas à vida e integridade dos aprisionados, investigação sobre o caso e responsabilização dos culpados, apresentação à Corte Interamericana das medidas adotadas. O descumprimento das medidas provisórias levou a Corte Internacional a reforçar tais determinações em junho e agosto de 2002, e em abril de 2004. Realizou-se ainda em 2004, audiência pública na sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde se fizeram presentes as entidades CJP e Justiça Global, e representantes do Estado brasileiro.

Paralelamente, a CJP e a Justiça Global prestaram denúncia em 2006, contra o Estado brasileiro, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pelaS violações do direito à vida e à integridade física ocorridas dentro do presídio Urso Branco.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo tem como escopo relacionar os pressupostos garantistas presentes na Lei de Execução Penal como os direitos humanos extraídos de tratados internacionais os quais o Brasil é signatário. É forçoso concluir a plena similitude entre os princípios presentes na LEP e os ditames internacionalmente estabelecidos. Isso resulta, em grande parte, da coerência do ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo na seara processual penal, com a primazia da preservação dos direitos dos aprisionados, como seres detentores de prerrogativas fundamentais: a presunção de inocência, o julgamento dentro de um devido processo legal, o cumprimento de pena dentro dos parâmetros legais, a preservação da vida e da integridade física, dentre outros.

Em que pensem as conclusões teóricas acima expostas, o presente trabalho, ao analisar casos concretos na história do sistema carcerário brasileiro, também destaca que, mesmo salvaguardados primordialmente pela Constituição Federal, e em segundo plano pelos ditames da Lei de Execução Penal, muitos direitos dos presos ainda sofrem violações em patamares alarmantes. Os relatos feitos tanto do massacre do Carandiru quando do caso do presídio Urso Branco revelam que, a execução da pena no Brasil, pautada na preservação dos direitos fundamentais dos presos, mesmo respaldada em um excelente conjunto de leis, ainda mostra-se frágil e não enraizada no cenário local.

Dessa forma, é válido ressaltar a importância da coexistência de princípios garantistas similares tanto na LEP quando em tratados internacionais. Isso porque, quando a ofensa a esses princípios assumir escalas grandiosas, sobre as quais o poder público brasileiro exerça controle ineficiente, recorrer às cortes internacionais consiste em uma solução plausível. Entretanto, cabe destacar que, apesar de possuir respaldo legal para intervir em casos como Carandiru e Urso Branco, medidas impostas órgãos como a Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda encontram resistência para se reverterem em soluções práticas. Ou seja, nos dois casos estudados, foi perceptível a falta de instrumentos de cobrança e coação para que as determinações impostas pela Corte Interamericana se efetivassem e mostrassem os resultados esperados de melhoria das condições de cumprimento de pena no Brasil. O esperado não é que um órgão de direito internacional tenha supremacia em relação ao Estado de soberania brasileiro. Apenas que, suas recomendações, uma vez que voltadas para um plano caótico – como os casos relatados de problemas em unidades prisionais, e objetivando a efetivação de direitos presentes tantos em tratados internacionais como nas próprias leis locais (a exemplo da LEP), sejam vistas com maior relevância e tomadas como balizas para a concretização das garantias fundamentais dos aprisionados.

REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 12ª reimpressão. São Paulo: Martin Claret, 2011.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 19 jun. 2015

BULOS, Uadi. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

COMISSÃO DE JUSTIÇA E PAZ DA ARQUIDIOCESE DE PORTO VELHO e JUSTIÇA GLOBAL. Presídio Urso Branco: a institucionalização da barbárie. Porto Velho, nov. 2007. Disponível em <http://www.observatoriodeseguranca.org/>. Acesso em 19 jun. 2015

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº 34/00 – Caso 11.291 (Carandiru). 13 abr 2000. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/99port/Brasil11291.htm. Acesso em 20 jun 2015.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969.

PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL. Denúncia encaminhada ao Ministério Público do estado de Rondônia e Secretaria de Administração Penitenciária. 25 de outubro de 2006

VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru/ Drauzio Varella. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 

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Sobre os autores
Aleilson Coelho

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Maranhão

Iago Fernandes Leite Silva

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Maranhão

Vinícius Pestana Rodrigues

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Maranhão

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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