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A "teoria da encampação" no mandado de segurança em matéria tributária

01/06/2004 às 00:00
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Muito comum, hoje em dia, as autoridades fiscais se eximirem de sua responsabilidade sob o esquálido argumento da ilegitimidade passiva ad causam, mesmo que o contribuinte tenha o seu direito abruptamente violado. Trata-se de um fenômeno jurídico importante, o qual pode ser analisado da realidade inexorável do processo tributário e da incidência desses fenômenos na sociedade, principalmente em relação aos contribuintes. É a relação do espírito jurídico consciente em razão da realidade processual vivenciada.

Para alcançar a finalidade da Teoria da Encampação, o jurista moderno deve se ater a uma conhecida fórmula insculpida por Hans Kelsen: "Quem quer o fim tem de querer o meio, se se identifica a necessidade normativa com a teleológica, isto é, com a necessidade que existe na relação entre meio e fim". [1] Seguindo este princípio, quem quer dilatar uma esfera metálica tem de aquecê-la. É justamente nesse ínterim que se insere a Teoria da Encampação.

A sabedoria acima consiste essencialmente em fundamentar a ciência do direito não apenas no desenvolvimento dos pensamentos e dos conceitos já formulados, mas no sentimento imediato da imaginação contingente em desenvolver, no fervilhar do entusiasmo e da rica articulação íntima do mundo moral e principiológico, uma melhor forma de aplicação do processo tributário.

Nessa sistemática, poder-se-á vislumbrar a Teoria da Encampação como o meio juridicamente plausível para se atingir o fim colimado. Para se entender a Teoria da Encampação faz-se necessário observar que esta advém do ato de uma autoridade, o que nos remete ao remédio constitucional do Mandado de Segurança. A Carta Magna recepcionou o remédio acima de forma ampla, estabelecendo-se que "conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas corpus" ou "habeas data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (art. 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal).

Portanto, um dos pressupostos do Mandado de Segurança é um ato ilegal ou abusivo de uma autoridade coatora, conforme se subsume da doutrina e jurisprudência vertente, ou seja, o Mandado de Segurança deve ser impetrado contra a autoridade coatora em cujas atribuições esteja a de praticar o ato vergastado.

O problema aporta quando, no momento da impetração do writ of mandamus, o autor indica em sua petição uma autoridade coatora diferente da que efetivamente praticou o ato, mas que ambas mantêm uma relação hierárquica. Nesse caso, poderíamos dar o exemplo muito comum nos tribunais pátrios, a impetração de Mandado de Segurança em face do Superintendente da Receita Federal, de região fiscal qualquer, quando o ato foi praticado pelo Delegado da Receita Federal da mesma região. O Delegado da Receita Federal teria a competência, por exemplo, de emitir Certidão Negativa de Débito, o que não seria atribuição do Superintendente da Receita Federal.

Vale ressaltar que existe uma hierarquia entre esses entes da Receita Federal, subsumindo-se o Delegado da Receita Federal às ordens expressas do Superintendente, o seu superior hierárquico. A Portaria do Ministério da Fazenda n.º 259, de 24 de Agosto de 2001, que aprova o Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal, relaciona vários pontos em que subordina os atos dos Delegados da Receita Federal aos do Superintendente da Receita Federal da respectiva região:

"Art. 5º

As Delegacias da Receita Federal, classificadas e localizadas conforme o Anexo I, são subordinadas ao Superintendente da respectiva região fiscal."

Por outro lado, o mesmo Regimento Interno prevê as várias incumbências dos Superintendentes da Receita Federal, dentre elas está o de

editar atos relacionados com a execução de serviços, bem como coordenar as atividades desenvolvidas no âmbito da região fiscal, como aconteceu no caso vertente, verbis:

"Art. 226.

Aos Superintendentes da Receita Federal incumbe:

II - editar atos relacionados com a execução de serviços, observadas as instruções da Coordenação-Geral a que se refira a matéria tratada;

III - coordenar as atividades desenvolvidas no âmbito da região fiscal;"

As atribuições do Superintendente da Receita Federal estão bem claras, mormente ao que tange à sua incumbência de gerenciar atos de seus subordinados. Tanto é que, se o Superintendente não concordar com determinado ato do Delegado da Receita Federal, tem o condão de obstá-lo.

No entanto, os Tribunais vêm entendendo que o Superintendente da Receita Federal, apesar de ser o superior hierárquico do Delegado da Receita Federal, não tem o condão de praticar atos relacionados diretamente com a cobrança e a fiscalização tributária, razão pela qual não teria poderes para emitir Certidão Negativa de Débito, por exemplo.

Ora, se o processo é um instrumento, não pode exigir um dispêndio exagerado com relação aos bens que estão em disputa. E mesmo quando não se trata de bens materiais deve haver uma necessária proporção entre fins e meios, para equilíbrio do binômio custo-benefício.

Nesse ínterim, se o Superintendente da Receita Federal, como autoridade superior hierárquica ao Delegado do mesmo órgão, assume papel de autoridade coatora na hipótese de oferecer defesa ao ato impugnado, torna-se autoridade impetrada, uma vez em que encampa tal ato impugnado. Ou seja, está legitimada, passivamente, no processo de Mandado de Segurança a autoridade impetrada, que embora apontando a competência um seu inferior hierárquico, comparece ao processo, defendendo o ato impugnado. Tal autoridade, por haver encampado o ato malsinado, legitimou-se passivamente.

Encampa o ato impugnado o impetrado que, ao prestar suas informações, não se limita a alegar que não é a autoridade coatora, e, ao contrário, adentra no mérito, defendendo o acerto do ato combatido. O Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento da Teoria da Encampação, em Mandado de Segurança, sob o fundamento de que, embora apontando a competência a um inferior hierárquico, a autoridade comparece ao processo e defende o ato impugnado, encampando-o e legitimando-se passivamente, verbis:

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PROCESSUAL – MANDADO DE SEGURANÇA – AUTORIDADE – ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE – ENCAMPAÇÃO DO ATO IMPUGNADO. - Está legitimada, passivamente, no processo de Mandado de Segurança a autoridade impetrada, que embora apontando a competência um seu inferior hierárquico, comparece ao processo, defendendo o ato impugnado. Tal autoridade, por haver encampado o ato malsinado, legitimou-se passivamente. Não há como afastá-la da impetração. (EDROMS 16057 / PE ; EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2003/0038778-9, DJ DATA:17/11/2003 PG:00202, Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, 07/10/2003, PRIMEIRA TURMA)

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO CIVIL. AUTORIDADE COATORA. LEGITIMIDADE PASSIVA. ENCAMPAÇÃO DO ATO IMPUGNADO. 1. Autoridade coatora é aquela que pratica ou ordena, concreta e especificamente, a execução ou inexecução do ato impugnado e responde pelas suas conseqüências administrativas. 2. Possui legitimidade passiva ad causam a autoridade que, ao prestar informações, defende o ato impugnado, encampando-o. 3. Recurso provido. (ROMS 15262 / TO ; RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE EGURANÇA 2002/0109620-1, DJ DATA:02/02/2004 PG:00365, Min. HAMILTON CARVALHIDO, 25/11/2003, SEXTA TURMA)

PROCESSO CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – ERRÔNEA INDICAÇÃO DA AUTORIDADE COATORA. 1. O juiz não pode, de ofício, corrigir a impetração, se for indicada, como coatora, autoridade que não deve figurar como impetrada, cabendo somente a extinção do processo (inúmeros precedentes). 2. Se a autoridade indicada erroneamente, mesmo tendo argüido a sua ilegitimidade, assumir a coatoria do ato e prestar informações, por economia processual, aplica-se a Teoria da Encampação, continuando-se com o writ. 3. Hipótese dos autos cujas circunstâncias autorizam aplicar a Teoria da Encampação. 4. Recurso especial improvido. (RESP 574981 / RJ ; RECURSO ESPECIAL 2003/0129614-4, DJ DATA:25/02/2004 PG:00164, Min. ELIANA CALMON, 16/12/2003, SEGUNDA TURMA) (Grifos editados)

A Teoria da Encampação é fundamentada pelo princípio da economia, o qual preconiza o máximo de resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais. Típica aplicação desses princípios encontra-se em institutos como a reunião de processos em casos de conexão ou continência (CPC, art. 105), a própria reconvenção, ação declaratória incidente, litisconsórcio, etc.

Importante corolário da economia é o princípio do aproveitamento dos atos processuais (CPC, art. 250, de aplicação geral ao processo civil e penal):

Exemplos da aplicação desse princípio ao processo civil são encontrados na regra de indiferença na escolha do interdito possessório adequado (CPC, art. 920), bem assim nas regras processuais sobre nulidades processuais, quando os atos tiverem alcançado sua finalidade e não prejudicarem a defesa (arts. 154, 244 e 248 do CPC). (Grifos editados) [2]

Considerando o escopo inicial do processo, como o postulado do princípio da economia processual e da instrumentalidade das formas acima aludidos, não há que se negar que o Mandado de Segurança alcança a sua finalidade e não prejudica à parte ex-adversa de vir defender-se em juízo, se a autoridade hierarquicamente superior encampa o ato. Se tal encampação ocorrer, surte todos os efeitos de fato e de direito, o que não pode ser renegado no momento do julgamento do mérito da lide.

O princípio da economia e da celeridade processual também se afigura, no caso vertente, como um meio menos gravoso de sanar um incerto defeito processual, conquanto que a sua não consideração não acarretará prejuízos de natureza processual, uma vez que o autor poderia até mesmo impetrar outro Mandado de Segurança com qualquer possível defeito já sanado, mas a demora acarretaria um prejuízo de natureza material para esse impetrante.

Esse é o objetivo da Teoria da Encampação, sendo um meio de preservar os princípio da economia e celeridade processual, bem como aplicar o justo direito, preservando as expectativas da realidade processual numa perfeita harmonia com a universalidade em que é aplicada.


Referência Bibliográfica

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed., São Paulo: Editora: Malheiros, 2002.

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 11ª ed. rev. atua. amp., São Paulo: Malheiros Editores, 1998.

DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Editora Malheiros, 13ª Edição, 1997.

DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 8ª Edição, 2000.

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7ª Ed., São Paulo: Editora RT, 2002.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo. Editora: RT, 1990.


NOTAS

1. KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Fabris Editora, 1986, pág. 13.

2. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, & outros. Teoria Geral do Processo. 17ª Edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2002, pág. 73.

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Sobre o autor
Daniel Cavalcante Silva

Advogado e sócio do escritório Covac Sociedade de Advogados (São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília). Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). MBA em Direito e Política Tributária pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Experiência na área de Direito Tributário e Educacional, com ênfase na área de advocacia empresarial. Membro da Associação Internacional de Jovens Advogados. Vários artigos publicados no país e no exterior. Autor do Livro “O Direito do Advogado em 3D” e "Compliance como boa prática de gestão no ensino superior privado". Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas intitulado: Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFIC). Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF. Professor de Direito Tributário. Laureado com o Prêmio Evandro Lins e Silva, concedido pela Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB. Indicado como um dos “dez advogados mais admirados no setor de educação, Revista Análise Advocacia 500, 2012 e 2015”. Diversos títulos e prêmios obtidos no país e no exterior.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Daniel Cavalcante. A "teoria da encampação" no mandado de segurança em matéria tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 329, 1 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5249. Acesso em: 16 abr. 2024.

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