As obrigações tributárias, sejam elas de natureza principal ou acessória, são singulares, autônomas. Decorrem de fatos distintos, independentes. A obrigação principal, que tem como objeto o pagamento de tributo, somente pode surgir com a ocorrência do fato gerador minuciosamente descrito em hipótese de incidência prevista em lei. A acessória tem por objeto prestações outras que não o recolhimento de tributo, e nasce da legislação tributária.
Em se tratando de obrigação principal, sabe-se que dentre os tributos brasileiros há aqueles classificados como não-cumulativos. Nesses o contribuinte não precisa recolher na íntegra o tributo devido em razão da operação por ele praticada, pois tem direito ao abatimento do chamado crédito fiscal, que é a importância paga por ocasião das operações anteriores. É o que dispõe a Constituição da República em seus artigos 153, §3º, II, e 155, §2º, I, que tratam respectivamente do IPI e do ICMS.
Com alguma freqüência, alguns desses créditos fiscais registrados pelos contribuintes em seus livros ou guias, são, por um motivo ou por outro, considerados inaproveitáveis, indevidos pelos agentes do fisco. Esses agentes, em tais oportunidades, lavram a Notificação / Auto de Infração, por meio da qual a Fazenda Pública exige o valor do crédito fiscal tido como indevido, além da correspondente multa.
Ocorre que, por vezes, o contribuinte não utiliza efetivamente o valor do crédito fiscal considerado como indevido pelo fisco, ou seja, a empresa não abate este valor do tributo a ser recolhido no período, apenas lança o crédito em seu livro ou em sua guia de informação, seja para transferi-lo a outro estabelecimento, seja para fazer o abatimento em período futuro, seja com outra intenção qualquer. Descumpriu-se, portanto, uma obrigação acessória, de fazer ou deixar de fazer.
Mesmo assim, via de regra, o fisco incorretamente notifica o contribuinte autuado para pagar a multa, além do valor lançado a crédito, ainda que não utilizado como abatimento do tributo por ele devido.
Não pretendo aqui entrar na discussão sobre validade ou cabimento de créditos fiscais relativos ao IPI, ICMS ou a qualquer outro tributo não-cumulativo. Pretendo apenas alertar para o equívoco lamentavelmente cometido pelo fisco ao exigir, por meio de Notificação ou Auto de Infração, o valor lançado como crédito fiscal ainda que não utilizado.
É lastimável reconhecer, mas por vezes a confusão à qual me refiro é estabelecida pela própria legislação. Ao exigir imposto em decorrência de simples lançamento indevido de crédito fiscal de ICMS, ainda que não efetivamente utilizado para abater débitos do imposto, o Agente Fiscal de Rendas paulista, por exemplo, pode estar se fundamentando em alguma das alíneas do segundo inciso do artigo 85 da Lei nº 6374/89, que contêm, além da multa aplicável, a determinação de que ela deve ser paga "sem prejuízo do recolhimento da importância creditada e da anulação da respectiva escrituração".
Com todo o respeito ao legislador daquele Estado, a redação daqueles dispositivos tornou-se ambígua na medida em que permite que a locução "importância creditada" seja interpretada, ao mesmo tempo, como valor efetivamente abatido do imposto a pagar, situação em que permitiria ao fisco exigir o correspondente valor, ou como valor simplesmente lançado a crédito, circunstância na qual seria completamente absurda a cobrança de tributo, pois estaria aí configurado apenas o descumprimento de obrigação acessória e não principal.
Bem mais feliz, o legislador mineiro fez constar na Lei nº 6763/75, mais especificamente no segundo parágrafo do artigo 53, que trata das penalidades aplicáveis em caso de descumprimento das obrigações atinentes ao ICMS, que "O pagamento de multa não dispensa a exigência do imposto, quando devido, e a imposição de outras penalidades".
Nada mais coerente. Só se pode exigir imposto se ele for devido. Ao constatar valores indevidos lançados a crédito, deve o agente do fisco glosá-los. Se desse processo restar tributo a pagar, aí sim, deve-se cobrá-lo.
Bastante clara também a Lei nº 11.514/97, do Estado de Pernambuco, que fala em utilização de crédito indevido, além de deixar claro, no artigo 10, V, "b", que em relação a créditos fiscais indevidamente lançados, somente será cobrada a "parcela do imposto que tenha deixado de ser recolhida;".
Esse desacerto por parte do fisco também não deve ocorrer no Estado do Paraná, porque lá, Lei nº 11.580/96 também só admite que seja cobrado imposto após o estorno do crédito indevidamente utilizado. É o que determina seu artigo 55, III, "a".
Infelizmente não posso dizer o mesmo do meu Estado. Aqui em Mato Grosso, o legislador adotou sistemática idêntica ao de São Paulo: inseriu nas alíneas do segundo inciso do artigo 48 da Lei nº 7098/98, a determinação de que a multa pelo crédito indevido do imposto deve ser paga "sem prejuízo da respectiva importância", o que tem levado, em regra, os fiscais de tributos a exigir imposto ainda que o crédito indevido tenha sido apenas registrado e não utilizado.
É de vital importância que fique claro que só pode existir valor diferente de zero no campo "Tributo" da NAI, se for verificada, como prevê o artigo 142 do CTN, a ocorrência dos fatos geradores correspondentes. A obrigação principal, que é "obrigação de dar", somente surge com a ocorrência do fato gerador, que é situação definida em lei nas hipóteses de incidência. Não se cria imposto do nada. Não se pode modificar o conceito consagrado previsto naquele dispositivo do CTN.
Ao fazer o lançamento incorreto, descumpre o contribuinte com uma obrigação acessória – "obrigação de fazer ou deixar de fazer" – e deve ser penalizado com multa também de natureza acessória.
Deve-se, em seguida, fazer o estorno do valor indevidamente lançado como crédito. Se desse estorno resultar algum valor que porventura não tenha sido recolhido, significa que ocorreram fatos geradores do imposto e que a correspondente obrigação de pagar deixou de ser cumprida. Aí sim, deve ser exigido o respectivo valor a título de tributo, tendo sempre como período de referência aquele em que efetivamente ocorreu o fato gerador, pois o simples lançamento de crédito indevido não se encontra dentre as hipóteses previstas na legislação em que é possível ocorrer a antecipação da exigência.
Há um filme chamado "Minority Report - a nova lei", dirigido por Steven Spielperg, estrelado por Tom Cruise e derivado de um conto de Philip K Dick. Trata-se de uma trama na qual seria possível fazer previsões com segurança tal, que se permitiria ao Estado prender legalmente alguém acusado de crime futuro.
Essa criatividade pode até ser muito bem recepcionada quando se trata de ficção científica, mas não pode jamais ser aplicada à atividade administrativa do lançamento. Para que se possa punir alguém por qualquer crime, é necessário, no mínimo, que já tenha ocorrido o fato típico previsto em lei. De forma semelhante, para que exista imposto a ser cobrado, é indispensável, no mínimo, a ocorrência do respectivo fato gerador.
É inadmissível que se cobre, a título de imposto, o valor simplesmente lançado indevidamente como crédito fiscal pelo contribuinte, ainda que o valor tenha sido transferido ou que seja evidente sua intenção de deixar de pagar tributo nos meses seguintes. Não se pode criar imposto do nada. Só se pode cobrar imposto por meio de Auto de Infração ou Notificação Fiscal de quem efetivamente deixou de pagá-lo. É absurdo que se exija imposto relativo à "sonegação futura".