Responsabilidade aquiliana do Estado: análise da possibilidade de denunciação da lide nas ações indenizatórias

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3.    Reparação do dano e Ação Regressiva

Verificada a ocorrência de uma lesão para o particular, decorrente de uma ação ou omissão estatal, surge para aquele o direito de ter seu prejuízo ressarcido, seja pela via administrativa ou judicial. A primeira se dá quando há conciliação entre o particular e a Administração Pública no que concerne ao quantum indenizatório, oportunidade que esta reconhece a sua responsabilidade perante o ato.

Noutro giro, ao particular ainda é dada a faculdade de reparar seu dano pela via judicial, mediante ajuizamento de ação indenizatória. Tal ação será proposta em face da pessoa jurídica a qual o agente que praticou o ato está vinculado, tendo em vista que este, no exercício da sua função, representa a vontade estatal, em decorrência da chamada Teoria do Órgão ou da Imputação Volitiva.

Nesta seara, vislumbra-se uma relação estabelecida entre o próprio particular e o Poder Público, haja vista a impossibilidade daquele acionar diretamente o agente causador do dano, em respeito ao Princípio da Impessoalidade (art. 37, caput, CRFB).

Uma vez ressarcido o dano pelo Estado ao lesado, surge para aquele o direito de ação regressiva em face do agente público causador do sinistro. Nota-se que a responsabilidade advinda dessa ação se configura como subjetiva, em conformidade ao art. 37, §6º, da CF. Dessa forma, ao agente somente se imputa a obrigação de ressarcir o Estado nas hipóteses em que se provar que aquele agiu com dolo ou culpa.

Sendo assim, a ação regressiva é um instituto que objetiva repor o gasto feito pela Administração Pública em decorrência de conduta dolosa ou culposa de seus servidores, tendo em vista que o Estado não deve sofrer o ônus resultante de uma ação ou omissão intencional. A par disso, pela inteligência do art. 37, §5º, da CF, tem-se que essa ação é imprescritível.

Aqui, nota-se que a relação é estabelecida entre o ente estatal e o agente público, diferentemente das ações de reparação de danos, em que se vislumbram um vínculo entre Estado e a vítima. Percebe-se que a última relação é pré-requisito para que surja a ação de regresso.

Nesse sentido, o STF, no leading case RE327904 SP, criou a chamada Teoria da Dupla Garantia:

STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO RE 327904 SP (STF)

Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: § 6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO. O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. Recurso extraordinário a que se nega provimento.

Em que pese uma relação ser requisito da outra, são julgadas de forma e momento independentes, já que a ação de regresso só se justifica após a conclusão da ação de indenização. Todavia, como se verá adiante, vem surgindo entendimento jurisprudencial no sentido de se admitir a denunciação à lide do agente público, por parte do Estado, nas ações de reparação de danos.


4.    Breves considerações acerca da Denunciação da Lide

A denunciação da lide é uma modalidade de intervenção de terceiros, prevista nos artigos 125 e seguintes do Novo Código de Processo Civil (NCPC), que consiste em “chamar o terceiro (denunciado), que mantém um vínculo de direito com a parte (denunciante), para vir responder pela garantia do negócio jurídico, caso o denunciante saia vencido no processo”(THEODORO JUNIOR, 2015, p. 372).

Nota-se, a partir deste conceito, que o instituto possui uma dupla finalidade, qual seja: cientificar o denunciado acerca da possibilidade de sua responsabilização ao final daquele processo, além de servir como ação de regresso antecipada, evitando, assim, a propositura de uma nova demanda para responsabilizar o denunciado.

Ademais, cumpre ressaltar a mudança que a legislação processual civil causou neste instituto, com o advento da Lei Federal 13.105, de 2015, que retirou a obrigatoriedade da denunciação da lide, corroborando com os anseios jurisprudencial e doutrinário, que já preconizavam pela facultatividade dessa modalidade de intervenção de terceiro. Essa prerrogativa salta aos olhos pela simples leitura do caput do art. 125, NCPC, que afirma ser “admissível” a denunciação da lide, em confronto com o art. 70 do CPC revogado, que, expressamente, dispunha ser obrigatória essa intervenção, nos casos previstos em seus incisos.

Nessa sucinta abordagem, é necessário ainda elencar as hipóteses de cabimento do instituto em discussão, bem como destacar em qual delas o presente trabalho se fundamenta:

Art. 125.  É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes:

I - ao alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe resultam;

II - àquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo.

§ 1o O direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida.

§ 2o Admite-se uma única denunciação sucessiva, promovida pelo denunciado, contra seu antecessor imediato na cadeia dominial ou quem seja responsável por indenizá-lo, não podendo o denunciado sucessivo promover nova denunciação, hipótese em que eventual direito de regresso será exercido por ação autônoma.

Ante o exposto, tendo em vista que a finalidade precípua desta pesquisa é apontar a possibilidade de denunciação da lide, pelo Estado, em face do agente público causador do dano, quando aquele for demandado em ação reparatória, percebe-se que é no inciso segundo do artigo supramencionado que este trabalho se baseia, como será melhor detalhado no tópico subsequente.


5.    Possibilidade da Denunciação à lide na Ação Indenizatória em face do Estado

Como já visto, da conduta estatal que resulta em um dano para o particular, abre-se, para este, a possibilidade de ajuizar ação requerendo a reparação do sinistro. Noutro giro, se comprovado que o prejuízo fora causado por culpa ou dolo do agente público, faz nascer para o Estado o chamado direito de regresso. Outrossim, também se apontou que essas ações são autônomas, malgrado ser a ação indenizatória requisito para a de regresso.

Em regra, tem-se que essas ações são independentes e propostas em momentos diversos, criando-se uma dupla relação: vítima versus Estado e Estado versus agente. Nesse modelo adotado, vislumbra-se que o Poder Público tem retardada sua restituição pela indenização que se obrigou em relação à vítima do dano.

Nesse ínterim, é que se passou a discutir acerca da possibilidade de utilização da denunciação da lide nas ações indenizatórias em face do Estado, quando o agente tivesse praticado a conduta lesiva dolosa ou culposamente. Seria uma forma, assim, de antecipar a ação de regresso na própria ação reparatória. Desse modo, conforme preceitua o art. 37, § 6º, da CRFB, constata-se que essa obrigação do agente de reparar o dano decorre da lei, amoldando-se, portanto, ao estabelecido no art. 125, II, do CPC vigente.

 A par disso, torna-se necessária a abordagem dos posicionamentos divergentes da doutrina e jurisprudência acerca da aplicação ou não dessa modalidade de intervenção de terceiros na questão discutida. Tal divergência, entretanto, não se dá quanto à legalidade do uso desse instituto, mas sim na conveniência da sua aplicação, ante os interesses das partes, sobretudo, da vítima.

Inicialmente, é mister evidenciar o primeiro posicionamento da doutrina, defendido pelo ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello, que advoga pela impossibilidade da denunciação da lide, tendo em vista que a adoção desse instituto acarretaria prejuízo à vítima.

O ônus desta consiste tão somente em demonstrar a conduta estatal, o dano sofrido, bem como o nexo de causalidade entre estas, uma vez que o dever de responsabilização pelo Estado é aferido de forma objetiva. Sendo assim, a instrução probatória exigida no decorrer dessa ação é de caráter mais simples, o que, por conseguinte, torna a demanda, em tese, mais célere.

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Todavia, a crítica da doutrina consiste justamente em apontar que, ao denunciar o agente causador do dano à lide indenizatória, haveria, necessariamente, discussão acerca do dolo ou culpa deste, o que ampliaria subjetivamente o mérito da ação, prolongando o curso da demanda. Assim, ao invés de o processo requerer a comprovação apenas dos elementos ensejadores da responsabilidade objetiva, seria preciso ainda a análise da existência de culpa ou dolo na conduta do agente denunciado, o que deveria ser provado por parte do denunciante, ou seja, o Estado.

Nesse sentido, são as palavras de Mello, citando Zancaner:

Outra questão é a de saber-se se é aplicável ao tema da responsabilidade do Estado o disposto no art. 70, III, do Código de Processo Civil, de acordo com o qual: “A denunciação da lide é obrigatória àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”. Revendo posição anteriormente assumida, estamos em que tem razão WeidaZancaner ao sustentar o descabimento de tal denunciação. Ela implicaria, como diz a citada autora, mesclar-se o tema de uma responsabilidade objetiva — a do Estado — com elementos peculiares a responsabilidade subjetiva — a do funcionário. Procede sua assertiva de que, ademais, haveria prejuízos para o autor, porquanto “procrastinar o reconhecimento de um legitimo direito da vitima, fazendo com que este dependa da solução de um outro conflito intersubjetivo de interesses (entre o Estado e o funcionário), constitui um retardamento injustificado do direito do lesado, considerando-se que este conflito é estranho ao direito da vitima, não necessário para a efetivação do ressarcimento a que tem direito”(MELLO, 2010, p.1041/1042).

Ademais, corroborando com essa corrente, tem-se precedente na jurisprudência do STF (REsp. 93.880/RJ, DJ 05.02.1982) no sentido de declarar a impossibilidade de denunciação da lide nas ações indenizatórias:

Diversos os fundamentos da responsabilidade, num caso, do Estado, em relação ao particular, a simples causação do dano; no outro caso, do funcionário em relação ao Estado, a culpa subjetiva. Trata-se de duas atuações processuais distintas, que se atropelam reciprocamente, não devendo conviver no mesmo processo, sob pena de contrariar-se a finalidade específica da denunciação da lide, que é de encurtar o caminho à solução global das relações litigiosas interdependentes.

Lado outro, há também posicionamento que defende a utilização dessa intervenção de terceiro na ação indenizatória em face do Poder Público.

Em explicação desse raciocínio, Cahali prevê duas hipóteses para aplicação deste instituto, a depender do fundamento da responsabilidade estatal, sendo esta objetiva e calcada na arguição de conduta dolosa ou culposa do agente público, seria possível a denunciação, bem como o litisconsórcio facultativo. Diversamente, entende o autor que, sendo a responsabilidade exclusivamente objetiva ou decorrente de culpa do serviço, não seria cabível a denunciação, seguindo o mesmo pensamento de Mello. (DI PIETRO, 2012, p.721, apud CAHALI, 1995).

Por fim, o Superior Tribunal de Justiça tem o seguinte entendimento:

PROCESSO CIVIL - DENUNCIAÇÃO À LIDE - PROCEDIMENTO SUMÁRIO - CONVERSÃO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - MULTA - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - PREQUESTIONAMENTO. Embora cabível e até mesmo recomendável a denunciação à lide de servidor público causador de dano decorrente de acidente de veículo, uma vez indeferido tal pedido, injustificável se torna, em sede de recurso especial, a anulação do processo para conversão do rito sumário em ordinário e admissão da denunciação, em atenção aos princípios da economia e celeridade processuais. Sendo os embargos de declaração opostos com o objetivo de prequestionar a matéria, não apresentam caráter protelatório, devendo ser excluída a multa aplicada (Súmula nº 98 do STJ). Recurso parcialmente provido. (REsp n.197374/MG 1998/0089885-9).

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - SERVIDOR PÚBLICO - POSSIBILIDADE. EM NOME DA CELERIDADE E DA ECONOMIA PROCESSUAL, ADMITE-SE E SE RECOMENDA QUE O SERVIDOR PÚBLICO, CAUSADOR DO ACIDENTE, INTEGRE, DESDE LOGO, A RELAÇÃO PROCESSUAL. ENTRETANTO, O INDEFERIMENTO DA DENUNCIAÇÃO DA LIDE NÃO JUSTIFICA A ANULAÇÃO DO PROCESSO. RECURSO IMPROVIDO. (REspn. 16.5411/ES1998/0013775-0).

Sendo assim, percebe-se que este Tribunal tem jurisprudência consolidada quanto à possibilidade de se denunciar à lide o funcionário público, em respeito aos princípios de economia e celeridade processual.

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Sobre os autores
Hans Barbosa Sena

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros -UNIMONTES (2017).

Lara Brandão de Aquino

Acadêmica do 9º Período do Curso de Direito da Universalidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.

Ana Paula Pereira Souza

Acadêmica do 9º Período do Curso de Direito da Universalidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.

Cynara Silde Mesquita Veloso

Professora da Unimontes. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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