4. Função Social da Favela
A gestão do solo urbano envolve conflitos redistributivos e, portanto, demanda a oitiva de todos os usuários dos serviços urbanos e habitantes da cidade. Alex Magalhães ao analisar o caso da Favela Parque Royal[84] faz uma análise pormenorizada do modo de ocupação e do direito das favelas, a qual se passa a descrever.
Inicialmente, houve a construção de casas e, aos mais carentes, palafitas com papelões e restos de obra, com o consentimento tácito baseado na leniência das autoridades e com o auxílio de Igrejas e órgãos estatais que doavam materiais de construção ou concediam crédito para sua obtenção. Originariamente, não existia a violência e o tráfico de drogas que hoje se observa. Boa parte do terreno utilizado constituiu-se sobre terrenos acrescidos de marinha, pertencentes à União Federal.
Em vista disso, a União celebrou com as prefeituras contratos de cessão de áreas que abrigam favelas, sob o regime de aforamento gratuito, com o intuito de regularização fundiária em benefício dos moradores de baixa renda[85], mediante elenco de objetivos nele previstos como o desmembramento de lotes. Os títulos provisórios outorgados eram formalizados em escrituras de concessão do direito real de uso.
Posteriormente, houve um processo de aterramento e expansão horizontal, coordenado pela Associação de Moradores. Essa associação adquiriu legitimidade para disciplinar a apropriação do espaço assim constituído[86]. Inclusive, a associação expedia declaração de residência e termo de legalização, este último funcionando como documento de aquisição da titularidade. Além disso, havia um Código de obras local minimamente respeitado.
Nessa conjuntura, Hernando de Soto[87]observa:
“A cegueira política, portanto, consiste em não se perceber que o crescimento do setor extralegal e o colapso da ordem legal existente sejam, no final das contas, devidos a um gigantesco movimento que se distancia de uma vida organizada em uma pequena escala para uma vida em um contexto maior. (...) ninguém enxerga que a verdadeira causa da desordem não é nem o crescimento populacional nem o urbano, nem mesmo uma minoria pobre, mas um ultrapassado sistema legal de propriedade.”
Ao lado disso, as associações tentaram controlar a ocupação descontrolada da favela, de modo a permitir a circulação de veículos, com pautas de reivindicação por arruamento. Aos poucos, criaram-se zonas na própria comunidade, nas quais as áreas menos carentes da “burguesia favelada” não aprovavam propostas de interligação do sistema viário interno da favela.
Isso porque ocorreu uma maior valorização imobiliária nas áreas próximas aos equipamentos urbanos efetivados pelo Programa Favela-Bairro, com a consequente verticalização da favela. Sendo assim, instaurou-se um sentimento de não pertencimento, seguidas de tentativas de formação de novas associações de moradores, o que ocasionou um processo de alijamento das lideranças.
Lado outro, com o crescimento das áreas antigas da favela do Parque Royal, ocorreu uma mercantilização massiva, emergindo a associação de moradores como autoridade na solução de conflitos possessórios. Esse crescimento urbano se deu pela “urbanização dos baixos salários”[88], feita pelos próprios moradores, por força de oportunidades de salário e renda no entorno da favela, somada à urbanização por clientelismo político[89], com o uso de melhorias como moeda de trocas – e não como efetivação de direitos sociais. A infiltração de políticos no seio da associação se processou, devido ao capital político da numerosidade de votos, percebido após recenseamento local.
Concomitantemente, a Prefeitura[90], vista com desconfiança pela comunidade, pretendeu enfraquecer a associação de moradores, a fim de alcançar maior liberdade nos projetos de regularização e urbanização. Simultaneamente, o poder do tráfico esvaziou os movimentos coletivos, evidenciado pelo controle de fluxo de entrada e saída de pessoas, toque de recolher e fechamento de vias de acesso, surgindo como nova instância gestora de conflitos internos. Diante disso, o tráfico impetrou a ideologia de que “ninguém é dono de nada”, ainda que houvesse uma documentação.
Dito isso, cabe anotar a presença de uma espécie de função social da propriedade, que instaura um regime de utilização compulsória dos imóveis localizados em favelas, na medida em que não há espaço para a retenção especulativa, pois o comprador de um lote que não se apossa imediatamente, normalmente, perde a posse com eventual proteção da boca de fumo local. Vigora o princípio do se ficar vazio, perde, sem a correspondente devolução do dinheiro investido.
Continuando o raciocínio, as ações da Prefeitura objetivavam autonomizar o processo de regularização das associações. À vista disso, procedeu-se a um amplo cadastramento de moradores sem os dados já obtidos pela associação, o que gerou novos conflitos possessórios no seio da comunidade, por conta de falsas declarações. Ainda, as ameaças aos técnicos que notificavam os moradores da irregularidade da ocupação de determinada área dificultava os trabalhos, demonstrando o império do poder ordenador por parte do “poder pararelo”.
É certo, todavia, que se existem custos para legalização, outros há aos que permanecem “fora da lei”. Nesse sentido, Alex Ferreira[91], perspicazmente, observa que deve predominar a teoria da pluralidade jurídica[92], in litteris:
“(...) à medida que o Estado aprofunda a sua presença nas favelas, com base nos planos de urbanização, vai estabelecendo novos controles. Por um lado melhora as condições habitacionais, mas por outro traz uma série de novos problemas, instituindo uma cidadania conforme os ditames estatais, na qual não parece haver muito espaço para escutar, valorizar e reforçar as forças, as vozes e as instituições internas das favelas. Ao praticamente impor o retorno da figura do presidente à Associação de Moradores, os representantes políticos contribuem para a criação de um estamento de poder e controle concentrado, de forma que, controlando este, se poderia controlar toda a favela, fazendo da Associação de Moradores uma instituição menos democrática do que havia sido até então e esterelizando o processo de formação de novas lideranças (...)”.
A própria ordenação territorial do espaço da favela deve ser específica para cada comunidade, pois a legislação existente para a cidade formal não serve para consolidar a situação fática encontrada nas favelas, e implicaria na demolição de quase toda a logística urbana ali encontrada. Sendo assim, deve-se conter o avanço desenfreado das ilegalidades, reconhecendo logradouros já consolidados temporalmente.
Em arremate, precisamos de uma proposta mais de pós-ordenamento do que de reordenamento, com vistas a respeitar a tipicidade das ocupações e as tipologias construtivas das favelas, ao mesmo passo em que, de forma simplificada, imponha constrangimentos ao crescimento desordenado das favelas. A territorialização do Poder Público nesses espaços denota, acertadamente, a vontade política de conter a “liberdade urbanística” das favelas.
Contudo, os projetos de urbanização não devem sofrer condicionamentos de regularização, máxime nas áreas já consolidadas, sob pena de malferir o direito à moradia e direito à cidade. Um potencial instrumento útil para tal missão é a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), prevista no artigo 42-A do Estatuto da Cidade. Essas zonas – disciplinadas no Plano Diretor – visam atender a população de baixa renda para fins de habitação.
Nessa ordem de ideias, sob um viés sociológico, a favela não deve ser vista como uma “partição estanque da cidade, não integrada e excluída quanto à garantia de direitos”[93], porém sim como tendo igual direito à cidade. Assim, impõe-se o reconhecimento da função social da favela, representação simbólica da luta pelo reconhecimento como cidade, plural e una ao mesmo tempo, como o pleito da denominação do metrô de São Conrado mencionado linhas acima exemplifica.
5. Direito de Construir e Intervenções Expropriativas
Sem levar o enfoque para o embate entre as teorias jurídico-privada da liberdade de construir e a teoria jurídico-pública da concessão do ius aedificandi, modernamente, estabelece-se a distinção entre a propriedade privada e o direito de construir[94]. Para determinada corrente minoritária, o direito de construir é um sistema de atribuição do plano urbanístico, não integrando as faculdades da propriedade privada.
Nessa senda, o aproveitamento urbanístico não advém do direito de gozo e disposição sobre a coisa, porém do sistema urbanístico[95]. Os instrumentos da outorga onerosa do direito de construir e da operação urbana consorciada[96] indicam que o Estatuto da Cidade fez a separação entre os direitos de construir e a propriedade, o que, decerto, evita despesas do Poder Público a título de desapropriação indireta quando da ordenação territorial urbana.
A mais, na lição de Victor Carvalho Pinto[97]
“Para fundamentar a separação do direito de propriedade do direito de construir, Victor Carvalho Pinto sustenta dois aspectos: o primeiro é o princípio da ‘vinculação situacional’ e o segundo da ‘patrimonizalização do direito de construir’. O princípio da ‘vinculação situacional’ decorre do direito urbanístico alemão e é utilizado para direcionar o aproveitamento de áreas que não estão sujeitas a nenhum plano urbanístico. (...) Para comprovar o afirmado, o autor salienta os seguintes aspectos: (a) o regime de parcelamento do solo condiciona a atividade de urbanização a prévia programação urbanística do Plano Diretor; (b) o direito de parcelar o solo é concedido pelo Plano Diretor; (c) não pode existir parcelamento em áreas sem Plano Diretor. (...) O segundo motivo que autorizaria tal separação refere-se ao princípio urbanístico da equidistribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização. (...) Em terceiro lugar, Victor Carvalho Pinto sustenta que os Autores que consideram a inerência do direito de construir ao direito de propriedade desconsideram a diferença entre o conceito de lote e o de gleba. Para o autor, o lote deve ser caracterizado como um instituto jurídico, que nasce após o loteamento de uma gleba. A diferença principal entre o lote e a gleba é a possibilidade de edificação no primeiro. (...) uma vez aceito o princípio da patrimonialização do direito de construir (...) o valor a ser pago por ele, não pode ser caracterizado como tributo ou taxa, mas sim – conforme Eros Grau – como preço público. Para Victor Carvalho Pinto, trata-se de preço privado”. (grifos constam do original)
Nada obstante, Walter Leisner[98] acentua que o ativismo da propriedade (obrigações oriundas da funcionalização) contraria a Constituição, tendo em conta a liberdade de propriedade negativa, o que se contrapõe aos deveres atuais de edificação preceituados no Estatuto da Cidade, por exemplo. Não se concorda com tal posição, porque para conter as intervenções restritivas do Poder Público, podemos utilizar os princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança, não existindo juridicamente um direito ao não uso.
Ressalte-se, por oportuno, que a teoria dos limites da expropriação equiparou a ideia de vinculação social da propriedade à expropriação, o que foi deixado a cargo do juiz na interpretação elástica do termo, na medida em que a burguesia não confiava no parlamento avesso aos seus interesses. Nesse viés, toda vinculação social é susceptibilizada a transfigurar-se em garantia de valor. Daí exsurge a conexão entre a indenização e a expropriação.
A respeito, Miguel Nogueira[99] expõe a concepção de Oliveira Ascensão nos seguintes termos:
“Oliveira Ascensão exprimiu esta mesma distinção através do desdobramento da garantia constitucional da propriedade num ‘efeito primário’ e num ‘efeito subsidiário’: o primeiro consiste na defesa da propriedade ‘contra agressões que não sejam justificadas pela necessidade de afectação dos bens a uma função socialmente mais elevada’; o segundo, ‘consiste na garantia de uma justa indemnização para o caso de essa eventualidade se verificar’(...) a primazia da função primária de defesa, ou da garantia de permanência, sobre a função secundária de compensação, ou a garantia de valor”
Tradicionalmente, permitia-se apenas o dulde und liquidiere, isto é, suporta a intervenção da desapropriação e liquida o valor. Nesse deslinde, importa reconhecer que, no direito brasileiro, ainda não é comum a priorização da proteção jurídica primária sobre a secundária, na medida em que não se superou completamente o princípio dulde und liquidiere.
Entrementes, sugere-se que a garantia de permanência permita a discussão sobre a legitimidade da intervenção no direito de propriedade à luz da Constituição, concretizando o direito de impugnação às agressões expropriativas. Sob esse pilar, constrói-se o princípio da subsidiariedade parcial da proteção secundária em relação à primária e, após, o princípio da justiça da indenização (full composition).
De outro bordo, a nacionalização consiste na apropriação pública de meios de produção, tomando em consideração a “hipoteca social” da propriedade, expressão cunhada por Brunstäd[100]. Este autor relata que a sociedade não consegue conferir propriedade a todos a fim de permitir uma emancipação econômica, de sorte que aqueles que a possuem respondem pela segurança de vida daqueles desprovidos de propriedade.
5.1. Coeficiente de Aproveitamento
Existem diversos coeficientes de aproveitamento para cada zona da cidade, o que afeta o valor da propriedade, uma vez que áreas com maior possibilidade de edificação são mais valorizadas. Entretanto, o controle rigoroso do coeficiente de aproveitamento evita a explosão densitária populacional da cidade. Portanto, qualquer autorização acima do limite estipulado exige contraprestação à sociedade prejudicada.
Em casos que tais, possível a transferência do direito de construir, observado o sistema de zoneamento, essencial para o respeito ao planejamento urbano e para inibir a especulação imobiliária. Nesse talante, identifica-se que o Município poderá, por meio do Plano Diretor, estabelecer um coeficiente máximo de aproveitamento, além do qual se exigirá a compra de outorga onerosa[101], ou cessão de área proporcional ao excesso praticado à comunidade, ou reurbanização consorciada, ou parceria em projetos sociais, ou renúncia ao direito de indenização na separação de áreas produtivas para fins de preservação ambiental.
Ademais, o coeficiente de aproveitamento mínimo servirá de critério para o conceito de terreno subutilizado a ensejar o parcelamento e edificação compulsórios como obrigações de fazer propter rem. Após a notificação pessoal do proprietário, a valorização imobiliária por força de obras realizadas pela edilidade no local deve ser desconsiderada para o cálculo do valor da indenização em futura e eventual desapropriação[102].
Após desapropriação, o próprio Município poderá transferir a terceiros o ônus de aproveitamento, por meio de concessão. Na esteira, defende-se que, em vez de desapropriar, o Município poderia lançar mão do direito de superfície, em terreno alheio, mediante escritura pública registrada, com a transferência do ônus, mediante licitação prévia[103]. Nesse toada, Maurício Mota e Emerson Moura[104] dispõem que
“A não destinação socialmente adequada de um bem estatal é muito mais grave do que a ocorrência de hipótese semelhante em relação à propriedade particular, porquanto o Estado deve dar o exemplo, zelando sempre pela legalidade de sua atuação, inclusive no que tange ao aproveitamento de seus bens, em observância ao interesse público. Veja-se que, se o próprio Estado não dá uma destinação adequada aos seus bens, não terá como persuadir seus cidadãos a adotar tal atitude. Assim, a condição do bem ser público não afasta a possibilidade de se observar, no momento do julgamento da ação possessória, questões de cunho constitucional, como a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade, e o direito à moradia, dentre outras.”
Noutro vértice, cabe aduzir que o artigo 2º, inciso IX, do Estatuto da Cidade consagrou o princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização, antes já presente na contribuição de melhoria (artigo 145, inciso III, da Constituição) e na desapropriação por zona (artigo 4º, do Decreto-lei nº 3.365/1941), desdobramento do princípio da igualdade material.
De outra margem, o artigo 2º, inciso XI, do Estatuto da Cidade estabelece o princípio da afetação da plus valia, impondo ao Estado a recuperação dos investimentos gastos ora na realização de obra ora pela mera alteração do zoneamento e das possibilidades de uso. Portanto, a cobrança prévia tende a ser mais eficiente do que a instituição de contribuição de melhoria, sendo possível a negociação de CEPACs – Certificados de Potencial Adicional de Construção[105], com lastro no artigo 34 do Estatuto da Cidade.
Ressalte-se, assim, que a redistribuição dos custos do processo de urbanização se dá por instrumentos de “perequação”, na expressão de Fernando Alves Correira[106]. Nesse contexto, sobrelevam os índices urbanísticos na aferição do modo de assentamento do espaço urbano, tais como o coeficiente de construção e a taxa de ocupação.
O primeiro “índice de utilização” é a “relação entre a área construída (número de pavimentos) e a área total do terreno no qual está em construção, ou seja, qual é a área do terreno que será construída (superfície edificável)”[107]. O segundo “índice de ocupação”, de seu turno, é a “relação entre a área ocupada (projeção horizontal da construção) e a área total do terreno, isto é, quantos metros quadrados poderão ser construídos no terreno”.
Esclarecidas essas noções, em conexão ao coeficiente de aproveitamento, cabe abordar o instituto do solo criado. Em uma conjuntura em que há um coeficiente único de construção para toda a urbe, ao mesmo tempo em que se permite a transferência do direito de construir em determinadas zonas da cidade[108], o solo criado serve para dilatá-lo, porém exigindo contraprestação pelo uso dos equipamentos urbanos. Nesse diapasão, entende-se que o solo criado é um bem público limitado, ou melhor, bem in comercio, o que permite sua alienação pelo Poder Público ou por particulares.
Já, a alteração do uso do solo – vertente do direito de construir – também engendra o pagamento de uma contraprestação à favor da sociedade, em respeito ao princípio da impessoalidade. De todo modo, afigura-se necessário que as licenças de construção sejam submetidas previamente ao estudo de impacto de vizinhança, de sorte a analisar a paisagem urbana, o patrimônio natural e cultural, a ventilação, a iluminação, a demanda por transporte público, tráfego viário, valorização imobiliária, uso e ocupação do solo, adensamento populacional e capacidade dos equipamentos urbanos e comunitários.