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Formação de sentido e a teoria dos sistemas.

Contextualizando o conceito de faturamento na Constituição Federal (Cofins)

01/06/2004 às 00:00
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I - ÁTRIO

Tal como Asmodeus, o gênio que, então subjugado pelo mítico Rei Salomão, uma vez liberto, despiu o sábio de toda riqueza e poder, a linguagem escrita permite ao ser humano reconstruir o mundo, na mesma medida em que lhe aferra em terríveis grilhões.

A fenomenologia da percepção lastreada em objetos lingüísticos assenta-se primordialmente no ferramental cognitivo do próprio observador. As palavras - os signos - não são custódios de sentido - é o próprio observador que porta o sentido em si. O conjunto de glifos entalhados na concreção apenas excita as faculdades mentais do observador, que saturará os respectivos categoremas com o acervo que porta no âmago da alma.

O algoritmo que manifesta a razão da relação de simetria entre a função semântica e a função pragmática da linguagem, contudo, erige paliçada ao redor de matiz de conteúdo racional mínimo ao redor dos signos. Os halos semânticos são determinados pela comunhão geralmente aceita entre os utentes. Por exemplo, embora o signo "casa" possa ser saturado por acepções idiossincráticas, dentro de um arranjo ordenado e específico de elementos de linguagem, somente determinadas acepções poderão ostentar sentido. O fenômeno é tingido por cores vibrantes quando abordadas algumas sociedades, como os grupos xamânicos da América do Norte ou algumas hostes hábeis no manejo da língua hebraica - os signos, irrevogavelmente vinculados à vibrações específicas, somente serão racionais, para aqueles grupos, se utilizados no contexto pré-estabelecido.

Desta forma, ainda que seja verossímil a intuição acerca da facticidade da atribuição de conteúdos diversos a signos únicos, a comunhão pressuposta na manipulação coletiva de tais entidades de linguagem estabelece limites mínimos, rarefeitos até, mas que devem ser observados, para preservação da função da linguagem.

COORDENADAS SINTÁTICO--SEMÂNTICAS DA ENTIDADE "FATURAMENTO", TAL QUAL CERZIDA NA MALHA DO DIREITO POSITIVO CONSTITUCIONAL - CONTRASTE OFERTADO PELA TEORIA DOS SISTEMAS.

Embora a linguagem do Direito Positivo exale diversas funções, como, eg., a função fabuladora e a função operativa, predomina nos lindes da juridicidade a função prescritiva.

O emprego da função prescritiva permite ao usuário a dissociação das proposições construídas do estrato de linguagem da concreção - por não enviesar-se à descrição, isto é, a reconstrução simétrica de um plano de linguagem em outro, o arquiteto lingüístico encontra-se livre para moldar o admirável novo mundo à qualquer imagem.

Logo, é imanente ao Direito Positivo o traço de autopoiese - a inserção, na própria tessitura, dos mecanismos tendentes à colheita e assimilação de novas unidades, sem a interferência ou contaminação de sistemas externos.

Por afastar-se dos Sistemas Reais, Nomológicos ou Nomoempíricos Descritivos, não é verossímil a expectativa de encontro de cargas semânticas precisas no seio do Direito Positivo. Ausentes os clínqueres aptos à agregação mútua, por afinidade, em unidades de sentido completas, o observador acaba por haurir de outros sistemas fragmentos para a formação de sentido das próprias unidades salvadas do tecido normativo.

Um destes sistemas é, por exemplo, a Língua Portuguesa. Sem a pedra angular de nossa língua materna, seria inconcebível qualquer recomposição de sentido qualificado a partir de um texto de Direito Positivo Brasileiro.

Se a interface entre o Direito Positivo e o Repositório da Língua Portuguesa é necessária, o mesmo não ocorre com os demais sistemas.

A interface entre o Direito Positivo e outros Sistemas dá-se nos exatos temos lavrados no primeiro plano.

A Constituição Federal de 1988, em qualquer dos respectivos cenários históricos, falhou na oferta de fragmentos destinados à precisão do paiol semântico. Similarmente, não há interfaces abertas entre o estrato normativo constitucional e outros sistemas, como, e.g., o Sistema Econômico, o Sistema Contábil, etc.

Por mais tênue que seja o parênquima sulcado nas vestes verbais da Bula Federativa Hodierna, relativo a "faturamento", alguns dados são atribuíveis ao simulacro jurídico invocado sob o termo, porque inerentes ao repositório de base para construção da significação do respectivo conceito.

Independentemente do conceito extraído dos Sistemas Econômico e Mercantil, "faturamento" alberga no respectivo espectro significativo referência à atividade economicamente organizada de sujeito de direito.

Dentro da miríade contingente das atividades desempenháveis por qualquer pessoa jurídica, há aquelas organizadas por escoras econômicas.

Entoado noutras vozes, o implemento ordenado de capital, tecnologia e trabalho que representa a empresa enviesa-se à consecução de fins específicos.

Cerrando fileiras às atividades desempenhadas de forma organizada, encontram-se atividades igualmente aptas à gênese de ingressos patrimoniais. A ausência de aplicação ordenada dos elementos celulares da atividade paralela, bem como a impossibilidade de extração de habitualidade, denotam a distância entre a entidade e as demais atividades, economicamente organizadas.

Acorde com o exposto, o halo semântico pertinente à conotação de faturamento escapa à atração dos elementos denotativos de ingresso patrimonial oriundo de atividade não-organizada economicamente.

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A cepa suso removida é essencial à dissolução de paralaxe argumentativa: a receita oriunda da venda de bens e serviços não porta o mesmo peso semântico que receita oriunda de quaisquer atividades.

O ponto de tanatose da proposição resta sobre a aproximação aparente dos conceitos de receita. Em vistas perfunctórias, a impressão entalhada no espírito do observador o induz à decodificação do argumento como a relação entre dois categoremas de igual valor.

Em linguagem formalizada, "p º p", pois "o conceito de receita equivale ao conceito de receita".

Infelizmente, a relação de equivalência ou bi-implicação é falsa, pois os categoremas são codificáveis como "p´" e "p´´". A divergência pode ser recuperada do restante do predicado proposicional: o significado não se exaure na leitura do signo receita, mas, respectivamente, receita de vendas de bens e serviços e receita de quaisquer fontes.

Um dos riscos causados pela consideração de dado conceito como pouco preciso, em estratos prescritivos de linguagem, consiste na impossibilidade de verificação de validade por simetria semântica ante fundamento de validade: se a Constituição Federal não permite a recuperação de limites mínimos definição de conotação ou denotação normativa, toda e qualquer norma constitucional tornar-se-á um árido cenotáfio.

Estas considerações não tem a pretensão de serem definitivas, mas apenas fomentar especulação teórica entre os cultores da Ciência do Direito Positivo.

Concluindo-se,

a)A CF/88 realmente não traz um conceito de faturamento, vez que o conceito é construído pelo observador;

b)Para reconstruir aquele conceito, o observador consciencioso do Direito Positivo deve se ater às próprias regras de interface sistemática, colhendo apenas dos sistemas credenciados os clínqueres para moldagem do plano da juridicidade;

c)O Sistema da Língua Portuguesa sempre está entrelaçado a qualquer sistema de direito positivo brasileiro;

d)Infelizmente a Constituição Federal de 1988 não precisou os limites semânticos do termo "faturamento", tampouco inseriu mecanismos de assimilação intersistemática.

e)Desta forma, o repositório por excelência corresponde ao Sistema da Língua Portuguesa, semântico e pragmático;

f)Dentro do repertório eleito, o conceito de faturamento está articulado, internamente, ao ingresso patrimonial oriundo de operações economicamente organizadas;

g)Logo, constitui paralaxe a equiparação do conceito de receita de venda de bens e serviços ao conceito de receita de quaisquer fontes.

h)Sob pena de redução de toda e qualquer norma constitucional a árido cenotáfio, é necessária a identificação de limites de significação mínimos (e não imutáveis).

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Sobre o autor
Thiago Buschinelli Sorrentino

Advogado, mestrando em Direito Tributário pela PUC/SP;pós-graduado em Direito Tributário Material pela COGEAE-PUC/SP; professor-tutor no Curso de Especialização em Direito da FGV/SP, disciplina Teoria Analítica do Direito e Lógica Jurídica; monitor no Curso de Iniciação Científica da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP;Presidente da Comissão de Ordem Tributária instalada perante a 38ª Subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil (Santo André).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SORRENTINO, Thiago Buschinelli. Formação de sentido e a teoria dos sistemas.: Contextualizando o conceito de faturamento na Constituição Federal (Cofins). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 329, 1 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5262. Acesso em: 26 abr. 2024.

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