A vida de Justiniano e a sua contribuição para o Direito Romano

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11/10/2016 às 15:40
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O artigo visa narrar a vida de um dos maiores e mais influentes imperadores romanos para a História do Direito Ocidental.

O presente artigo visa narrar a vida de um dos maiores e mais influentes imperadores romanos para a História do Direito. Não há como negar que o Direito Ocidental que não seguiu o modelo anglo-saxão tem boa parte, senão integralmente, de seu conteúdo inspirado no Direito Romano. Em termos de Brasil, muito do que nossa sociedade se tornou e vem se tornando é devido ao Direito Romano e, sem dúvidas, às compilações elaboradas a mando do imperador Justiniano. Tais compilações se deram no século VI e foram elaboradas a partir de documentos escritos entre os anos de 150 a.C. a 284 d.C, quando Roma se encontrava em seu pleno desenvolvimento jurídico e cultural. Dessa forma, entender a história do Direito Romano é entender a origem do próprio Direito Brasileiro.

Com o estudo da vida e das obras do Imperador Justiniano podemos compreender as origens do nosso ordenamento jurídico que, muito embora não aparente, ainda carrega boa parte dos princípios que deram origem às leis romanas. É possível, assim, observar que em determinados institutos jurídicos tivemos grandes alterações daquela época até o presente. Já em outros, observamos que continuamos a pensar, agir e aplicar preceitos jurídicos conforme os povos romanos-germânicos dos primeiros séculos depois de Cristo.

Palavras-chaves: Justiniano; Direito Romano; Direito Brasileiro.


O Imperador Justiniano, o qual se chamava inicialmente Upranda e posteriormente foi batizado por seu tio com o nome de Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, nasceu por volta de 483 d.C., em Tauresium, numa época chamada de Dominato na Antiga Roma. Ele era filho de camponeses da província de Trácia, tendo sucedido seu tio Justino ao cargo de imperador.[1]  Explica Antônio Filardi Luiz que, na época, o regime de parentesco derivava da lei e não do sangue. Assim, era considerado filho aquele adotado, não o nascido em decorrência de matrimônio.[2]

Justiniano, através de seu tio, conquistou importantes cargos na hierarquia imperial, usufruindo dos benefícios da vida na corte. No ano de 521, aproximadamente, Justiniano foi nomeado cônsul, um dos mais altos cargos políticos da época, tendo ficado encarregado de organizar os tradicionais jogos públicos. Em 525 recebeu o título de nobilíssimo.

Em 527, por conta da morte de seu tio Justino e por não haver sucessores, Justiniano foi nomeado imperador de Roma. Já nessa época, Justiniano se encontrava com sua esposa, Teodora, que era uma artista circense, também de origem humilde, filha de um domador de ursos. Observa-se que não era permitido o casamento entre pessoas da alta hierarquia imperial com artistas. Entretanto, como Justiniano estava apaixonado por Teodora, tratou de alterar a lei, casando-se com ela e tornando-a imperatriz quando assumiu o cargo de imperador.[3]

Historicamente, o Império Romano, cujo centro se encontrava em Bizâncio, tendo posteriormente alterado seu nome para Constantinopla dois séculos após o batismo do Imperador Constantino, transformou-se de um império pagão em um império cristão. Por conta disso, não eram permitidos os jogos blasfêmicos ou aqueles que fossem de encontro aos preceitos cristãos da época. Sendo assim, as leis eram bem severas contra aqueles que praticassem tais atos, que poderiam, por exemplo, ter suas mãos cortadas.[4]

Além da imposição de leis severas, Justiniano tentou também acabar com as atividades ilegais dos circos na cidade. Todo esse cenário gerou grande medo e instabilidade na população, resultando na Revolta de Nika.

A Revolta de Nika se deu após o quinto ano em que Justiniano se encontrava no poder, tendo sido esta a forma encontrada pela população para expressar sua insatisfação para com a forma que o imperador estava administrando a cidade. Boa parte das ruas de Constantinopla foram incendiadas e saqueadas. Entre casas e edifícios incendiados, encontrava-se também a Igreja de Santa Sofia (Hagia Sophia), que foi destruída, conforme narra o historiador Procópio de Cesarea:

Alguns homens da ralé, toda a escória da cidade, ergueram-se numa dada altura contra o imperador Justiniano em Bizâncio, quando provocaram o levantamento conhecido por Insurreição de Nika. […] E a fim de mostrarem que não era só contra o imperador que tinham pegado em armas, mas também contra o próprio Deus, miseráveis e ímpios com eram, tiveram a ousadia de incendiar a igreja dos cristãos, a que o povo de Bizâncio chama Sofia, epíteto que muito apropriadamente inventaram para Deus e pelo qual nomeiam o Seu templo; e Deus permitiu-lhes a realização desta impiedade, sabendo em que objeto de beleza esta relíquia estava destinada a transformar-se. Assim, toda a Igreja por essa altura era um monte de ruínas calcinadas.[5]

A população se encontrava tão enfurecida que pedia pela morte do Imperador Justiniano, que, por sua vez, cogitou a possibilidade de fugir, tendo sido impedido por sua esposa Teodora. A revolta foi contida pelo imperador, com o auxílio do general Belisário.[6]


A RETOMADA DE ROMA

Após a revolta de Nika, o Imperador Justiniano retomou o controle de Constantinopla. Assim, decidiu, junto a sua guarda e ao general Belisário, se voltar para as províncias do Leste que estavam sob o comando dos bárbaros. Determinada estratégia se deu para recuperar a popularidade do imperador que estava desprestigiado, tendo em vista a revolta sofrida, bem como sua política de cobrança de impostos.

A expedição para retomar o norte da África dos Vândalos e seu êxito levou o imperador a tentar reconquistar o restante do império do Leste. Justiniano também conseguiu retomar Roma e a península itálica dos Ostrogodos, em 537. Dessa forma foi possível concluir a obra da Igreja de Santa Sofia, a qual havia sido destruída com a Revolta de Nika.[7]

No ano de 543 houve um surto de peste e milhares de pessoas morreram em Constantinopla. O próprio Imperador Justiniano também ficou doente, mas conseguiu se recuperar. Devido a morte de tantas pessoas, o imperador se viu obrigado a alterar a sua política econômica, posto que não havia mais tantas pessoas pagando impostos como anteriormente. Assim, a lei determinava que os herdeiros seriam obrigados ao pagamento das dívidas de seus falecidos. Caso não houvesse herdeiros, outro membro da família deveria arcar com o pagamento dos impostos, que por sinal eram altíssimos.[8]

O império que Justiniano acreditava que havia sido restabelecido estava, na verdade, desmoronando novamente. Os exércitos eslavos e búlgaros estavam destruindo todas as cidades e vilas da fronteira do Norte, chegando aos muros de Constantinopla, que estava por pouco sendo invadida.

Em 548 a esposa de Justiniano, Teodora, falece. Justiniano, a partir de então, fica isolado em seus aposentos, passando a dedicar a maior parte de seu tempo à Igreja. Justiniano falece em 565, com 83 anos de idade.[9]


A OBRA DE JUSTINIANO

O Direito Romano é tão influente no Brasil que aponta Abelardo Lôbo, citado por José Carlos Moreira Alves, que já no Código Civil de 1916, dos 1.807 artigos nesse contidos cerca de 1.445 deles possuíam raízes na cultura romana.[10]

Ainda hoje, por mais que acreditemos que nossa legislação seja bem contemporânea e que acompanha, na medida do possível, os anseios da sociedade, podemos dizer que toda a raiz e os principais preceitos que os romanos-germânicos se valiam no antigo império continuam a vigorar em nossas leis, em algumas das vezes, ainda em sua forma primitiva.

Por conta disso, podemos afirmar que o trabalho realizado pelo Imperador Justiniano e sua comissão de juristas foi de suma importância para a legislação atual, não só no Brasil como também em todos os países que seguem o modelo romano-germânico.

O grande projeto de Justiniano era a codificação das leis romanas, posto que havia na época apenas um código de leis do século V, este já por muito desatualizado. Ademais, havia muitas outras leis que estavam vigorando, mas que não estavam incluídas neste código. Surgiu, portanto, a necessidade de apresentar soluções para as situações que se apresentavam e que não se encontravam positivadas no código existente.

Por conta disso, Justiniano criou uma comissão para elaborar a compilação de todas as leis em vigor, até então, em Roma, no prazo máximo de dez anos. Surpreendentemente, a comissão de Justiniano, dentre os advogados e estudantes da ciência do direito, se encontrava Triboniano, que era um jurisconsulto de grande mérito e presidente da comissão, concluiu o trabalho em apenas três anos.[11]

A historiadora Aracy Klabin observa que Justiniano se preocupou em dividir a compilação em livros e capítulos. Além disso, as repetições, contradições e ambiguidades deveriam ser evitadas, a fim de que não houvesse a necessidade de comentar ou alterar a sua obra.[12] Infelizmente isso não foi possível, gerando a figura das interpolações nas obras de Justiniano, especificamente no Codex e no Digesto, as quais buscavam esclarecer obscuridades ou sanar contradições nelas contidas.

Em 529 d. C., a compilação denominada Nouus Iustinianus Codex estava pronta, tratando apenas da leges, porém não ainda dos iura. Determinada compilação continha partes de Constituições Imperiais da época, presentes nos códigos Gregoriano, Hermogeniano e Teodosiano, vigentes no século VI.[13] Explica Aracy Klabin:

[...] Os excertos provêm de 39 autores, partindo-se de Q. Mucio Scaevola, o qual morreu em 82 a.C., e chegando-se a dois juristas obscuros, escrevendo provavelmente no começo do século IV. A maior parte da obra é tirada de autores compreendidos entre 100 e 250 d.C. Mesmo durante esse período predominam alguns autores como Ulpiano, que contribuiu com mais de um terço, e Paulo, com mais de um sexto do total.[14]

Ademais, cada texto deveria indicar sua origem com o nome do autor, número do livro e título da obra. Por exemplo: Ulpiano, I livro, ad subinum.[15]

A compilação de Justiniano foi elaborada em duas fases: a primeira compilação tratou de reunir a leges (Novus Iustinianus Codex) e a posterior tratou de reunir a iura (Digesto ou Pandectas)[16]. A compilação da legis se define como a compilação das Constituições Imperiais da época que se baseavam nas três principais: Código Gregoriano, Código Hermogeniano e Código Teodosiano. Já a compilação dos iura era a compilação dos entendimentos e comentários dos grandes juristas anteriores ao século V, além das fontes distintas de direito precedentes as Constituições Imperiais. [17]

Após a compilação das Constituições Imperiais, houve uma segunda compilação denominada Digesta Iustiniani - Digesto ou Pandectas. Essa compilação era composta por 50 livros, que se dividiam em títulos, subdividiam-se em leis ou fragmentos e, por fim, em parágrafos. Alexandre Correia explica:

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Nenhum jurista poderia acrescentar-lhe comentários e obscurecer com suas verbosidades a brevidade da obra. Na redação foi proibido o emprego de abreviações e siglas; os próprios números dos livros e dos títulos deviam ser escritos com letras e não com cifras.[18]

O Digesto era a compilação do ponto de vista de renomados juristas clássicos, tais como Papiniano, Ulpiano, Celso, Gaio, entre outros. É o que atualmente denominamos jurisprudência. A primeira grande compilação de Justiniano sobre iura tratava de questões como: Justiça e Direito, bem como a sua origem; dos operadores do Direito; das leis e dos costumes; do estado dos homens; questões de família, como adoção e emancipação; de Direitos Reais; dos ofícios de senadores, dos cônsules e dos prefeitos; do ofício de questor e pretor, entre outros ofícios da corte imperial.[19]

Havia no Digesto disposições sobre a satisfação do débito ao adimplemento forçado (execução), a qual podemos constatar que até os dias atuais é aplicada, conforme nosso Código de Processo Civil. Trata-se do princípio da satisfação do débito, por Gaio:

Curator ex senatus consulto constituitur, cum clara persona, veluti senatoris vel uxoris eius, in ea causa sit, ut eius bona venire debeant: nam ut honestius ex bonis eius quantum potest creditoribus solveretur, curator constituitur distrahendorum bonorum gratia vel a praetore vel in provinciis a praeside. (Digesto, 27,10, 5).

Dispõe a regra de que só deveriam ser executados os bens do devedor na quantidade exata a satisfazer o valor da sua dívida. Comparando com a nossa legislação brasileira atual, verificamos a mesma regra no artigo 831 do Código de Processo Civil: “A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios.”.

Outra questão apresentada pelo Digesto era a questão sobre a inviolabilidade do domicílio, que também ainda hoje é resguardada pela nossa Carta Magna em seu artigo 5º, inciso XI:

Domum suam reficere unicuique licet, dum non officiat invito alteri, in quo ius non habet. (Digesto, 50,17,61)

Encontra-se, ademais, no Digesto, questões atinentes a boa fé nos contratos, direito obrigacional, questões de direito privado e direito público.

Além das duas compilações, Justiniano atribuiu a Triboniano, Teófilo e Doroteu a missão de elaborar um manual aos estudantes de direito, esse sendo uma espécie de introdução ao direito posto no Digesto, com base nas Institutas de Gaio, grande mestre da época.[20] Sendo assim, a comissão elaborou as Institutiones, também chamada de Institutas. Tanto as Institutas quanto o Digesto entraram em vigor no dia 30 de dezembro de 533 d. C.[21] . Tal trabalho resultou em diversas publicações das obras de Justiniano, fazendo com que as leis romanas chegassem também até a Europa Ocidental. Considera Alexandre Correia:

Os compiladores bizantinos não puderam naturalmente atingir a clareza de Gaio e muito menos superá-la, mas por outro lado graças ao brilhante modelo seguido, conseguiram preparar um precioso manual por muitos séculos empregado utilmente e cujo estudo ainda hoje é particularmente recomendável.[22]

Assevera Aracy Klabin que boa parte das Institutas de Justiniano provinham das Institutas de Gaio, o qual elaborou divisão importantíssima sobre os direitos das pessoas e das coisas. Tal divisão do direito influenciou pensamentos posteriores.[23]

Com o passar do tempo e com novas problemáticas que surgiam para o Imperador, Justiniano viu a necessidade de sanar contradições que se encontravam na compilação das Constituições Imperiais (Novus Iustinianus Codex). Assim, foi nomeada nova comissão para a atualização do Codex (Codex Repetitae Praelectionis), o qual foi promulgado em 29 de dezembro de 534 d.C..[24] Essa nova versão do Codex era composta de 12 livros, os quais se subdividiam em títulos, tratando de questões como das fontes do Direito, função dos agentes do Império, o processo que se utilizava para dirimir os conflitos, regras de Direito Privado e de Direito Penal, além de regras de Direito Administrativo e Fiscal.

Explica a historiadora Aracy Klabin:

Codex significa livro em latim, mas adquiriu sentido especial de “Coleção de Constituições”. Modernamente código significa promulgação sistemática de um corpo inteiro de leis (ex. Código Civil Brasileiro). O Corpus Iuris Civilis pode assim ser chamado de código, mas está longe de ser sistemático.[25]

Apesar de todo o trabalho tido pela comissão de compiladores, Justiniano continuou a realizar alterações na legislação, o que naturalmente ocorre, tendo em vista a evolução da sociedade e das alterações práticas para a solução de conflitos. Tais alterações foram inseridas a partir de novas Constituições Imperiais que o próprio Imperador pretendia reunir num corpo único de leis. Entretanto, Justiniano veio a falecer, sendo que seu intento da nova compilação ocorreu após a sua morte, por particulares, compilação esta que recebeu o nome de Novellae.[26]

Novellae ou Novelas foi a última compilação das Constituições Imperiais promulgadas por Justiniano, pouco antes de sua morte. As Novelas tratavam de questões de Direito Público e de Direito Privado, além de reformas e alterações também no Direito de Família e Sucessões.[27]

A compilação dessas quatro obras de Justiniano recebeu posteriormente o nome de Corpus Iuris Civilis (Corpo do Direito Civil), conforme explica José Carlos Moreira Alves, pelo romanista francês Dionísio Godofredo, em 1538.[28] O Corpus Iuris Civilis, até os dias atuais, continua sendo uma das obras mais importantes para o estudo do direito nas universidades, considerada a importância que carrega em si por ser uma obra que fielmente contém o direito basilar de Roma, fonte para muitas legislações no Ocidente e no Oriente.

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Sobre a autora
Kamila Perestrelo

Advogada formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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