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A efetividade do processo e a tutela específica das obrigações de fazer e não fazer.

Notas sobre o sincretismo processual

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17/05/2004 às 00:00
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3. O PROCESSO SINCRÉTICO

3.1. Espécies de processo

A rigor, o processo não comporta divisão, consistindo no método mediante o qual a jurisdição desempenha suas atividades. Todavia, o próprio Código de Processo Civil (art. 270), tendo em vista a tutela jurisdicional pleiteada, contempla, inclusive em livros distintos, três espécies de processo, a saber: processo de conhecimento, processo de execução e processo cautelar.

Diz-se que o processo é de conhecimento (ou de cognição) quando a parte busca o acertamento do direito afirmado, por meio da declaração de sua existência ou inexistência, "declaração esta que, em algumas situações, virá acompanhada de um plus, a constituição ou a condenação".

Será de execução o processo cuja finalidade essencial seja concretizar um direito já reconhecido, proporcionando a satisfação do demandante.

Já o processo cautelar visa assegurar o resultado final eficiente do processo de conhecimento ou de execução. Por se tratar de instrumento de garantia dos demais processos, tidos como instrumentos do direito material, Elpídio Donizetti NUNES afirma que "a instrumentalidade do processo cautelar é elevada ao quadrado".

O direito processual civil contempla ainda outras modalidades de processo existentes, que em razão da natureza de determinados direitos materiais, os quais reclamam a junção das tutelas de cognição, de execução e cautelar numa só relação processual, exigem ritos especiais previstos na legislação extravagante ou no bojo do Código de Processo Civil.

Pelo teor da exposição de motivos do diploma processual de 1973 de autoria de Alfredo Buzaid, então Ministro da Justiça, nota-se nítida influência das idéias de Enrico Tullio Liebman, mormente na divisão tripartida do processo já mencionada. Os ensinamentos do processualista italiano difundidos na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, foram decisivos para a elaboração do código vigente.

Contudo, a atual fase do processo civil brasileiro, calcada numa visão instrumentalista, tende a relativizar a concepção tripartida do processo preconizada por Liebman, e atendendo à necessidade de uma tutela jurisdicional mais efetiva, foi palco de reformas profundas que passaram a permitir a concessão das tutelas jurisdicionais de cognição, de execução e cautelar num único processo, sem a utilização de procedimento especial.

3.2. O binômio cognição-execução

Antes da reforma processual de 1994, aquele que dizia ter direito a uma prestação de dar, fazer ou não fazer, se não estivesse munido de um título executivo extrajudicial, além de ajuizar ação de conhecimento para obter um provimento condenatório, teria de proceder a instauração de um processo de execução, a fim de ver satisfeito o conteúdo da sentença que lhe foi favorável. O sistema processual, até essa época, era baseado na dicotomia processo de conhecimento – processo de execução.

Enrico Tullio LIEBMAN doutrinava:

A função jurisdicional consta fundamentalmente de duas espécies de atividades, muito diferentes entre si. (...) Na cognição a atividade do juiz é prevalentemente de caráter lógico: êle (sic) deve estudar caso a caso, investigar os fatos, escolher, interpretar e aplicar as normas legais adequadas, fazendo um trabalho intelectual, que se assemelha sob certos pontos de vista, ao de um historiador, quando reconstrói e avalia os fatos do passado. O resultado de tôdas (sic) estas atividades é de caráter ideal, porque consiste na enunciação de uma regra jurídica que, reunindo certas condições, se torna imutável (coisa julgada). Na execução, ao contrário, a atividade do órgão é prevalentemente prática e material, visando produzir na situação de fato as modificações aludidas acima. (...) É, pois, natural que a cognição e a execução sejam ordenadas em dois processos distintos, construídos sôbre (sic) princípios e normas diferentes, para a obtenção de finalidades muito diversas. (grifo nosso)

Como se pode perceber pelas palavras de Liebman, o processo civil clássico, salvo raras exceções, não permite a prática de atos executivos no decorrer de seu trâmite. Tais atos deverão ser praticados mediante nova relação processual, com ajuizamento de outra ação e nova citação do condenado, que, não obstante já ter conhecimento da regra que deve obedecer, não a cumpre espontaneamente. Em resumo, esta é a dualidade processual adotada pelo sistema de 1973: duas formas de prestação da atividade jurisdicional e, portanto, duas modalidades de processo (conhecimento e execução), ainda que diante de um único conflito e da unicidade do poder jurisdicional.

Entretanto, com a difusão da classificação quinária dos provimentos jurisdicionais adotada por Pontes de Miranda, o legislador acabou por inserir nos artigos 273 e 461 do CPC, tutelas diferenciadas, possibilitando a aglutinação, num mesmo processo, das atividades de cognição e execução.

A esse respeito, doutrina Kazuo WATANABE:

Essas ponderações permitem, em nosso sentir (...), as seguintes conclusões: a) relatividade da dicotomia do processo de conhecimento – processo de execução; b) as espécies de execução forçada previstas no Livro II do Código de Processo Civil, baseadas na responsabilidade patrimonial do executado, não exaurem as formas de atuação do direito admitidas pelo nosso sistema processual, que admite (...) a conjugação de provimentos executivos com vários tipos de provimentos de conhecimento.

Essas modificações revelam a propensão do legislador em conceber um processo que realmente proporcione o atendimento da pretensão de maneira efetiva, visando amenizar o descrédito que a justiça tem sofrido pela demora nas prestações jurisdicionais.

3.3. A gradual eliminação da autonomia do processo de execução

Devido às reformas a que vem passando o sistema processual, cujo intuito primordial consiste em estabelecer mecanismos de otimização do processo, ressurge na doutrina a discussão em torno da permanência da autonomia do processo de execução quando emanado de uma sentença condenatória.

Processualistas de antanho, bem antes da fase instrumentalista, já se posicionavam no sentido de considerar a execução como mero prolongamento do processo de conhecimento em que a sentença foi prolatada. Eduardo J. COUTURE, ao tratar da questão, ensina que "para alguns, o conhecimento é a essência e a execução o complemento; para outros, a execução é a essência, e o conhecimento um simples antecedente lógico".

Valendo-se do pensamento do citado processualista uruguaio, escreveu Gabriel José Rodrigues de REZENDE FILHO:

A execução (...) é uma fase lógica e complementar da ação. Vindo a juízo, não pretende o interessado obter a declaração ou reconhecimento de seu direito platônico, mas aspira à (sic) mais completa tutela jurídica com a efetiva mantença ou restauração de seu direito. (...) A execução constitui realmente o epílogo da ação condenatória, formando ambas momentos ou fases de uma só ação. Há uma unidade lógica entre ação e execução.

A busca pela efetividade passa a dar mais valor ao direito material, considerando o processo apenas instrumento de sua realização. Já dizia Enrico Tullio LIEBMAN que "o processo, sem o direito, seria um mecanismo fadado a girar no vazio, sem conteúdo e sem finalidade".

Com o objetivo de atingir resultados mais justos na aplicação do direito, passou-se a acolher a possibilidade de junção de processos. No final do século XX, gradativamente, o legislador foi inserindo no CPC, dispositivos que permitiam a utilização no processo de conhecimento, de institutos do processo de execução, como por exemplo, a execução (efetivação) provisória da tutela antecipada, a tutela específica das obrigações de fazer e não fazer etc.

O advento da Lei nº 10.444/2002 modificou o modelo liebmaniano que existia anteriormente. Ressalvado o caso das obrigações pecuniárias, em que ainda prevalece o binômio processo de cognição – processo de execução, a prolatação de uma sentença condenatória (fazer, não fazer, entregar coisa diversa de dinheiro) não é mais capaz de exaurir o processo. A execução passa a funcionar como complemento do processo, que já não é propriamente cognitivo ou executivo, mas um processo misto, em que as duas atividades se fundem.

O processo de execução não pode ser um instrumento de favorecimento do devedor inadimplente. As regras da execução de quantia pecuniária oferecem meios para o executado furtar-se à constrição judicial, inviabilizando o atendimento da pretensão do exeqüente.

É muito difícil para o advogado convencer seu cliente da necessidade de, mesmo após a sentença que condena o devedor e depois do tribunal tê-la confirmado, proceder-se à nova citação do vencido, com todas as circunstâncias que envolvem esse ato processual. Ademais, superado o longo trâmite do processo de conhecimento, o profissional do direito terá de explicar ainda, que o executado poderá embargar ou suspender a execução, na maioria das situações, com intuito nitidamente protelatório.

Tais imperfeições do sistema, fizeram surgir propostas de alteração do procedimento de execução de sentença que condena o devedor ao pagamento de quantia certa. O Instituto Brasileiro de Direito Processual, do qual faz parte seleto grupo de processualistas, elaborou anteprojeto de lei visando à realização de alterações na execução de pecúnia, de forma a adequar o procedimento à realidade da vida.

Vale reproduzir as palavras de Athos Gusmão CARNEIRO e de Sálvio Figueiredo TEIXEIRA, autores da exposição de motivos do anteprojeto referido:

A ‘efetivação’ forçada da sentença condenatória será feita como etapa final do processo de conhecimento, após um tempus indicati, sem necessidade de um ‘processo autônomo’ de execução (afastam-se princípios teóricos em homenagem à eficiência e brevidade); processo ‘sincrético’, no dizer de autorizado processualista.

Os processualistas, de uma forma geral, têm se mostrado interessados na imprescindibilidade das reformas, sendo que muitos doutrinadores pregam a eliminação da autonomia do processo de execução quando oriundo de anterior processo de cognição, não havendo necessidade de se instaurar nova relação processual para a concretização da pretensão já reconhecida na sentença condenatória.

José Roberto dos Santos BEDAQUE é categórico:

Uma das soluções para maior efetividade da tutela jurisdicional é a eliminação do processo de execução, nos casos de sentença condenatória referente a obrigações já vencidas; ou pelo menos, a redução dos casos em que a propositura de nova ação seja necessária. A tutela sancionatória seria automática, independentemente de nova provocação do interessado. Se o réu quiser evitar a invasão de seu patrimônio, deve satisfazer a obrigação no prazo estabelecido na sentença.

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Nesta mesma ótica, doutrina Alexandre Freitas CÂMARA:

Desde a primeira edição destas Lições, sempre sustentamos que o modelo adotado pelo CPC brasileiro não era o mais adequado. Isto porque o Código de Processo Civil, elaborado com base na doutrina então dominante, tratava o processo execução como um processo autônomo em relação ao processo de conhecimento condenatório. Sempre nos pareceu que, por ser uma a pretensão do demandante (receber o bem jurídico que lhe é devido), deveria ser um só processo, dividido em duas fases, uma cognitiva e outra executiva.

Faz-se necessário, portanto, a mudança no procedimento de execução por quantia certa, de forma a unificar, no mesmo processo, cognição e execução, permitindo, assim, que o direito material seja atendido sem a instauração de outra relação processual, diminuindo consideravelmente o caminho para obtenção da tutela jurisdicional.

Das colocações acima expostas, denota-se que há um despreendimento ao excesso de formalidades e à relativização de alguns institutos basilares do direito processual, tudo isso com o objetivo de se obter uma tutela jurisdicional plena e num breve espaço de tempo.

3.4. O sincretismo processual e as tutelas mandamental e executiva lato sensu

Não se pretende aqui, reacender a polêmica ainda existente na doutrina no que pertine à classificação da sentença. Sejam consideradas de forma autônoma (classificação quinária) ou como espécies do gênero sentença condenatória (classificação trinária), o fato é que as tutelas mandamental e executiva lato sensu são admitidas no sistema processual pátrio. É por meio delas que se pode compreender o sincretismo processual.

Do provimento mandamental emana uma ordem do juiz, a qual, juntamente com medidas coercitivas, incide sobre o réu a fim de forçá-lo a cumprir a obrigação a que se comprometeu. Como bem observa o processualista paranaense Luiz Guilherme MARINONI, "quando a sentença ordena, visando compelir o réu a cumpri-la, a execução é dita ‘indireta’, já que o direito declarado pela sentença só vai ser efetivamente realizado se a sentença convencer o réu a observá-la".

Significa dizer que o cumprimento da obrigação dependerá da atuação do réu, que será coagido a fazê-lo sob pena de sofrer uma sanção, como é o caso da ordem para expedição de certidão sob pena de multa.

Por outra banda, a sentença executiva lato sensu ou executiva apenas, caracteriza-se pela adoção de medidas executivas de forma incidental no processo de conhecimento, de forma a se obter o resultado prático que o cumprimento da obrigação geraria, independentemente da vontade ou atuação do réu. É o que ocorre na sentença que determina a reintegração de posse.

Pela análise de ambas espécies de provimentos, conclui-se que a concretização da pretensão deduzida em juízo poderá ser efetivada no próprio processo de conhecimento, prescindindo, pois, da instauração de um processo autônomo de execução, que passa a ser considerado como fase subseqüente daquele. Há um processo sincrético, caracterizado pela junção, numa única demanda, de conhecimento e execução.

3.5. As inovações trazidas pela Lei nº 10.444/2002 e a tutela antecipada

3.5.1. A efetivação da tutela antecipada

Com a alteração do § 3º do art. 273, para a efetivação da tutela antecipada o juiz poderá observar no que couber, e de acordo com a sua natureza, o que dispõe os arts. 588, 461, §§ 4º e 5º, e 461-A.

Para parte da doutrina, que realiza uma interpretação literal do dispositivo, se a parte pretende obter um provimento que obrigue o réu a um fazer ou não-fazer ou mesmo a entrega de coisa, ao juiz será permitido utilizar-se da multa prevista no § 4º e dos meios de sub-rogação previstos pelo § 5º, ambos do art. 461. No caso de antecipação de tutela que determina o pagamento de quantia em dinheiro, sua concretização seguirá as regras da execução por quantia certa ou o que dispõe os arts. 732 e 733 do CPC, se o que se pretende é obter verba alimentar.

Contudo, para Luiz Guilherme MARINONI e Sérgio Cruz ARENHART, a efetivação de tutela que antecipa quantia pecuniária

não pode ficar na dependência da aplicação das regras do processo de execução por expropriação, que não permitem uma "execução célere" e, assim, adequada aos fins da tutela antecipatória. A multa, apesar de não prevista para a execução da sentença condenatória, pode ser utilizada para a efetivação da tutela que determina a antecipação de soma, em razão da evidente diferença entre a natureza da soma que se pretende de forma antecipada no caso do art. 273, I, e a soma que se almeja mediante sentença condenatória.

Destarte, parece mais correto diante de uma obrigação de pagar soma em dinheiro, possibilitar ao magistrado, desde que presentes os requisitos para concessão da tutela antecipada, fazer uso do § 4º, ou se for o caso, do § 5º do art. 461.

Imagine-se, por exemplo, a situação onde o demandante, em decorrência de um ato ilícito praticado pelo demandado, sofreu várias lesões físicas e com risco à sua saúde, requer a antecipação dos efeitos da tutela para que o demandado arque com as despesas do tratamento cirúrgico urgente a que deverá ser submetido. Em razão do tempo, seria inviável seguir o procedimento de execução por quantia certa para se obter o dinheiro para a cirurgia. Diante disso, ao antecipar os efeitos da tutela pretendida, o juiz pode ordenar que o demandado efetue o pagamento do tratamento sob pena de multa.

No caso, constata-se uma certa incoerência no sistema, na medida em que, a concretização da decisão provisória que antecipa os efeitos da tutela, é mais eficaz do que a sentença de mérito, pois nessa hipótese o juiz não poderá valer-se das medidas executivas, devendo o autor proceder à instauração do processo de execução autônomo.

É mais um argumento para se proceder à reforma do procedimento de execução por quantia certa, de forma a possibilitar a aplicação de atos executivos na mesma relação processual, extingüindo de vez o processo de execução oriundo de uma sentença condenatória.

3.5.2. O julgamento antecipado de pedido incontroverso

Digna também de menção é a inclusão do § 6º no art. 273, que permite ao juiz, na hipótese de um ou mais pedidos cumulados, ou mesmo parte de um deles mostrar-se incontroverso, antecipar a tutela.

A alteração, embora tenha provocado reações positivas na doutrina, trouxe inúmeras dúvidas, principalmente no que pertine à sua aplicação prática, além de também atingir alguns dogmas processuais.

Antes da reforma, o entendimento até então prevalecente era o de que, a tutela antecipada, por se tratar de medida provisória, era concedida com base em cognição sumária, realizando o magistrado um juízo de probabilidade acerca do direito afirmado pelo autor. Com a recente modificação, a concessão passa a ser feita através de cognição exauriente, sendo que o juiz antecipa parte do pedido ou mesmo um dos pedidos cumulados.

Registre-se que Luiz Guilherme Marinoni, bem antes da reforma, já se manifestava pela possibilidade de antecipação por meio de cognição exauriente com base no inciso II do art. 273, já que o réu, ao deixar de contestar parte do pedido ou de se manifestar de forma razoável frente às alegações contidas na inicial (art. 302), estaria protelando a realização de direitos incontroversos.

Não parece razoável fazer com que o demandante aguarde até a prolação da sentença, se parte de seu pedido mostrou-se incontroverso, tendo, pois, condições de ser atendido. Assim, se o autor ajuíza demanda pleiteando a quantia de R$ 1.000,00, e o réu, instado a se manifestar sobre o alegado, afirme que deve apenas R$ 300,00, a controvérsia continuará tão-somente com relação aos R$ 700,00, face ao reconhecimento jurídico de parte do pedido.

Luiz Guilherme MARINONI e Sérgio Cruz ARENHART esclarecem que

o novo § 6º, quando fala em pedido "incontroverso", não está aludindo apenas ao reconhecimento parcial ou à não-contestação. Quando a nova norma faz referência à incontrovérsia, ela deseja, evidentemente, conferir efetividade aos direitos que podem ser evidenciados no curso do processo, que ainda vai exigir tempo para elucidar a outra parcela (portanto não incontroversa) do litígio.

É importante salientar que o § 6º autoriza antecipação de parcela incontroversa do objeto do processo, pois se inteiramente incontroverso, haverá julgamento antecipado do mérito nos termos do art. 330 do CPC.

Ademais, na hipótese de cumulação de pedidos, para que seja possível a concessão de tutela antecipada parcial, é preciso analisar se há relação de dependência entre eles. Destarte, se o autor formula pedido de rescisão contratual cumulado com reintegração de posse, e o réu, em contestação, se limita a dizer que não há motivos para o desfazimento do contrato e se omite quanto ao esbulho possessório, não há como aplicar a regra do § 6º do art. 273.

Como bem explica Marcelo José Magalhães BONICIO,

quem contesta o pedido relativo à obrigação principal também contesta o pedido sucessivo, ou dependente, e quem alega a existência de uma outra relação jurídica que é prejudicial, ou alega fato modificativo, extintivo ou impeditivo do direito do autor, não está deixando de impugnar pedido ou fato alegado.

Outro aspecto relevante a ser tratado, diz respeito à modificação e revogação que antecipa o pedido incontroverso.

Como se sabe, a natureza provisória da tutela antecipada prevista no § 4º do art. 273, resulta da cognição sumária realizada pelo juiz quando da sua concessão, uma vez que neste instante ainda não teria subsídios suficientes para se afirmar "com certeza", se o direito afirmado pelo demandante efetivamente existe, baseando-se, pois, num juízo de probabilidade.

Como a decisão que antecipa pedido incontroverso é concedida mediante cognição exauriente, ou seja, baseada num "juízo de certeza", não parece correto permitir ao juiz tornar a analisar essa decisão quando proferir sentença definitiva.

De acordo com Joel Dias FIGUEIRA JÚNIOR:

Se a antecipação da tutela tomou como fundamento o reconhecimento parcial do pedido, ou, no caso de cumulação de ações, o reconhecimento integral de uma das demandas, a decisão judicial concessiva dos efeitos fáticos, nada obstante interlocutória (de mérito), não será provisória, mas satisfativa definitiva, sendo impossível, por conseguinte, o juiz modificar o conteúdo decisório, quando da prolatação da sentença de mérito.

Alguns autores defendem que a decisão proferida com base no § 6º do art. 273, devido à profundidade da cognição empregada, é atingida pela coisa julgada material, não havendo necessidade de o juiz confirmá-la em sentença.

Luiz Guilherme MARINONI entende que "a tutela antecipada, neste caso, estará antecipando o momento do julgamento do pedido. A tutela não é fundada em cognição sumária, mas sim em cognição exauriente, produzindo coisa julgada material".

Essa posição encontra raízes nos estudos de Ovídio A. Baptista da SILVA, que vai mais longe, reconhecendo uma outra categoria de decisão chamada sentença liminar:

Como a sentença definitiva, esta a que se dá o nome de sentença parcial também produz coisa julgada e apenas da primeira se distingue por não encerrar inteiramente o procedimento. Tanto na sentença definitiva quanto na sentença parcial o juiz pronuncia-se sobre o meritum causae de tal modo que o ponto decidido não mais poderá ser controvertido pelas partes naquela relação processual e nem o julgador poderá sobre ele emitir um julgamento divergente, nas fases posteriores do procedimento.

O problema de se admitir que essa decisão seja atingida pelo manto da coisa julgada material é de, no decorrer do processo, o juiz verificar a presença de um pressuposto processual negativo, por exemplo, e tiver de extingüi-lo sem a análise do mérito. Haverá uma grande aberração no sistema, na medida em que existiria um processo sem os requisitos para o julgamento do mérito apto a produzir a coisa julgada material.

Daniel A. Assumpção NEVES sintetiza com clareza:

A única matéria que poderá acarretar a revogação da decisão é a de ordem pública, que leva o processo à extinção sem o julgamento do mérito e como conseqüência natural anula também a decisão concessiva de antecipação de tutela. Essa, inclusive, a razão para não se poder aceitar que tal decisão faça coisa julgada material. Não havendo matéria de ordem pública a ser apreciada, o juiz estará obrigado a expressamente confirmar na sentença a antecipação já deferida, nos termos do § 5º do art. 273.

Diante de tais considerações e para que o § 6º do art. 273 se adeqüe ao sistema vigente, é forçoso reconhecer que o provimento ali previsto trata-se de decisão interlocutória baseada em cognição exauriente, que se tornará preclusa se não for interposto agravo ou houver confirmação pelo tribunal. A tutela antecipada parcial só fará coisa julgada material se o juiz confirmá-la na sentença, sem, contudo, voltar a apreciá-la.

3.5.3. A fungibilidade das tutelas de urgência

O § 7º do art. 273 preceitua que se o autor requerer tutela antecipada e for caso de medida cautelar, o juiz poderá concedê-la em caráter incidental desde que presentes seus requisitos.

Com o advento da Lei nº 10.444/2002, o legislador passa a admitir a fungibilidade das tutelas de urgência, de forma que a pretensão da parte seja atendida mais rapidamente, evitando, assim, a instauração de um processo autônomo.

Muito antes da reforma, o processualista Antonio Carlos Marcato, em palestra intitulada Tutela antecipada e tutela cautelar, ministrada na 32ª Semana Jurídica da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, manifestou-se pela possibilidade de fungibilidade entre as tutelas de urgência.

Convém salientar, porém, que a admissão de medida cautelar postulada como tutela antecipatória, só é possível se houver dúvida razoável quanto à tutela a ser requerida.

Nesse sentido, Luiz Guilherme MARINONI aduz que

não existindo erro grosseiro do requerente ou, em outras palavras, havendo dúvida fundada e razoável quanto à natureza da tutela, aplica-se a idéia de fungibilidade, uma vez que seu objetivo é evitar maiores dúvidas quanto ao cabimento da tutela urgente (evidentemente de natureza nebulosa) no processo de conhecimento.

Fungível é aquilo que pode ser substituído, trocado. A fungibilidade recursal permite que um recurso seja conhecido no lugar de outro, o mesmo ocorrendo nas ações possessórias e cautelares. No caso, indaga-se sobre a possibilidade de o juiz conceder tutela antecipada quando o autor pleitear o deferimento de medida cautelar.

Luiz Rodrigues WAMBIER e Teresa Arruda Alvim WAMBIER, adeptos de uma interpretação literal do dispositivo, defendem que

se a parte requerer, no bojo do processo de conhecimento, uma medida de natureza cautelar, pode o juiz apreciar este pedido, concedendo ou não a medida pleiteada, não devendo recomendar à parte que intente uma ação cautelar autônoma. (...) No fundo é decorrência da regra do damihi facti, dabu tibi jus. (...) Todavia, cremos que se trata de fungibilidade de mão única. Esse dispositivo não autoriza o juiz a conceder medida antecipatória de tutela quando uma medida de natureza cautelar tenha sido pleiteada.

Adotando-se essa posição, se alguém pleitear medida cautelar preparatória, e for caso de tutela antecipada, o juiz terá de indeferir a petição inicial, extingüindo o processo sem a análise do mérito, por falta de condição da ação, mais precisamente pela ausência de interesse processual na sua modalidade adequação.

Contudo, a parte poderia recorrer da decisão, mas em face da demora no julgamento do recurso, sua pretensão não conseguiria ser atendida a tempo. Por outro lado, poderia arcar com as custas processuais (o que já seria um prejuízo considerável) e ajuizar uma ação de conhecimento com pedido de tutela antecipada. O problema é que, em comarcas onde há mais de uma vara cível, uma nova distribuição seria feita, existindo a possibilidade de remoção para outro juiz que poderia entender incabível a antecipação de tutela, por tratar-se de medida cautelar.

Para que não haja problemas dessa natureza, deve-se admitir a fungibilidade recíproca das tutelas de urgência. Assim entende Cândido Rangel DINAMARCO quando afirma que

também o contrário está autorizado, isto é: também quando feito um pedido a título de medida cautelar, o juiz está autorizado a conceder a medida a título de antecipação de tutela, se esse for seu entendimento e os pressupostos estiverem satisfeitos. Não há fungibilidade em uma única mão de direção. Em direito, se os bens são fungíveis isso significa que tanto se pode substituir um por, como outro por um.

Colaciona do mesmo entendimento Daniel A. Assumpção NEVES, que acrescenta:

Concedendo o juiz a tutela antecipada, até para não haver problemas procedimentais futuros, entendemos que deveria antes de mais nada conceder a tutela de urgência, e depois abrir prazo de 10 dias para que o autor possa providenciar a emenda da petição inicial, transformando-a em inicial de ação de conhecimento.

Portanto, deve-se interpretar o texto do § 7º do art. 273 de forma extensiva, admitindo-se também que o juiz conceda tutela antecipada se a parte, por equívoco, pleitear medida cautelar, coadunando-se com a efetividade que hoje se quer atingir.

3.6. Conhecimento, execução e cautelar – processo sincrético

O sistema processual permite, ainda, que num mesmo processo, sejam proferidas tutelas de conhecimento, execução e cautelar, sem que se faça uso de procedimento especial.

Imagine a situação em que o demandante propõe ação ordinária para que o demandado realize determinada obra, instruindo a petição inicial com elementos suficientes para antecipação da tutela. Considerando o juiz a hipótese de o autor, na sentença final, ter seu pedido julgado improcedente e que dificilmente conseguirá reverter a situação se isto ocorrer, com base no art. 797 do CPC (medidas cautelares ex officio), pode determinar que o autor preste caução, assegurando, assim, a efetividade de futuro provimento que reconheça a inexistência do direito afirmado pelo demandante.

No caso, pode o autor obter tutela de conhecimento condenatória, se o juiz julgar procedente o pedido. Por se tratar de demanda que envolve obrigação de fazer, a execução se dará na mesma relação processual, prescindindo da instauração de outro processo. Ademais, o juiz concedeu a medida cautelar incidentalmente, sem processo cautelar. Há, portanto, um processo sincrético.

Para José Isidoro MAFRA:

Pelo sincretismo, a realização prática da sentença condenatória, após sua definitividade, deve ser considerada fase subseqüente do processo, e não um novo processo. Os atos executivos necessários à efetivação da sentença são praticados na mesma relação processual, de forma a dispensar a instauração de outra relação, com nova petição inicial, custas processuais e citação. (...) Cabe ressaltar, também, as recentes alterações relativas ao sincretismo entre cognição e acautelação, ou seja, a possibilidade de alteração concomitante, no mesmo processo, entre atos cognitivos e cautelares.

É interessante salientar a evolução que o direito processual civil passou, sobretudo no que tange à sua relação com o direito material. Na fase autonomista, procurou-se separar de forma inequívoca o direito do processo, pondo termo à concepção imanentista. Já na fase instrumentalista, voltam-se os processualistas a se preocupar com a efetivação do direito material, colocando em segundo plano o direito processual, por consistir simples meio de efetivação daquele. O processo sincrético passa a reaproximar novamente o direito material do direito processual, sem, contudo, aglutiná-los. O que se unifica são as três espécies clássicas de processo, para que o direito material seja atendido de forma mais efetiva, sem a morosidade hoje existente.

O que se procurou demonstrar, é que as reformas a que vem passando o CPC, têm simplificado o trâmite do processo e flexibilizado determinados dogmas processuais, de forma que os jurisdicionados obtenham, ao provocarem o Estado-Juiz, uma tutela jurisdicional mais efetiva e útil.

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Sobre o autor
Leandro Silva Raimundo

Técnico Bancário pela Caixa Econômica Federal em Jacarezinho – PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAIMUNDO, Leandro Silva. A efetividade do processo e a tutela específica das obrigações de fazer e não fazer.: Notas sobre o sincretismo processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 314, 17 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5276. Acesso em: 19 abr. 2024.

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