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A publicidade infantil pressupõe-se abusiva?

22/10/2016 às 13:23
Leia nesta página:

Debate-se a controversa abusividade das propagandas dirigidas a crianças, a partir dos posicionamentos emitidos pelo DPDC, STJ e TJ/SP.

Em maio de 2016, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) – órgão federal competente para a emissão de posicionamentos acerca de temas de repercussão nacional que afetem as relações de consumo – divulgou a Nota Técnica nº 3/2016/CGEMM/DPD/SENACON, na qual analisa a abusividade das práticas de publicidade ao público infantil de produtos e serviços no ambiente escolar, bem como a abusividade da oferta e publicidade de alimentos "ultraprocessados", bebidas de baixo valor nutricional e alimentos com elevadas taxas de gorduras, óleos e açúcar.

 Com base em diversos estudos científicos, o DPDC afirma que o mercado publicitário aproveita-se da ignorância, da deficiência de julgamento, da falta de experiência e da vulnerabilidade das crianças, especialmente no que tange às características, composições e riscos que o consumo dos produtos pode representar, com a finalidade de persuadir e alcançar o público infantil diretamente e também para influenciá-lo como mercado futuro.                

Na discussão, o órgão entende que é frequente a adoção da estratégia comercial de fazer publicidade de produtos e serviços para a criança valendo-se da confiança depositada por elas e seus responsáveis no ambiente escolar e nos seus educadores, representando típica prática abusiva, prevista no Código de Defesa do Consumidor. Quanto à qualidade dos alimentos industrializados, o texto menciona o risco potencializado de desenvolvimento de doenças relacionadas ao consumo exacerbado (obesidade, câncer, entre outras).

Ao final da Nota Técnica, o DPDC conclui que a publicidade dirigida aos infantes deve ser abolida dos ambientes escolares, bem como sugere o encaminhamento da Nota Técnica a todos os órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, entre os quais se inserem os PROCONs estaduais e municipais, recomendando a atuação dos órgãos para monitorar e exercer controle sobre a publicidade de produtos alimentícios voltada a crianças. 

Conforme comentado, a Nota Técnica expedida pelo DPDC representa o posicionamento do órgão. Vejamos, em complementação, o entendimento proferido no Superior Tribunal de Justiça pelo Ministro Humberto Martins, Relator do RECURSO ESPECIAL Nº 1.558.086/SP – que teve como objeto a publicidade veiculada por uma indústria alimentícia –, em 10 de março de 2016:

É abusivo o marketing (publicidade ou promoção de venda) de alimentos dirigido, direta ou indiretamente, às crianças. A decisão de compra e consumo de gêneros alimentícios, sobretudo em época de crise de obesidade, deve residir com os pais. Daí a ilegalidade, por abusivas, de campanhas publicitárias de fundo comercial que utilizem ou manipulem o universo lúdico infantil (art. 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor).

De outro lado, o Tribunal de Justiça de São Paulo, um dia após a decisão do STJ comentada, prolatou julgamento em sentido contrário na Apelação nº 1010889-46.2014.8.26.0053. Referido recurso foi interposto pelo PROCON do Estado de São Paulo contra ação anulatória provida para desconstituição de multa aplicada pelo órgão a uma empresa de importação, distribuição e comercialização de brinquedos, por veiculação de comerciais televisivos, que, vale consignar, foram previamente aprovados pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR).

Segundo o Relator Moreira de Carvalho, no processo em comento:

[...]  impertinente tal argumento [pressuposto de que a publicidade dirigida ao público infantil já seria, por si só, abusiva], pois impossível conceber que apenas a publicidade infantil já induz abusividade conforme alega o apelante, afinal existem padrões éticos para as publicidades que visam alcançar ao público infantil, os quais estão dispostos no art. 37, § 2º do Código de Defesa do Consumidor. [...]

[...] Constata-se dos autos que referidos padrões foram observados pela apelada, pois inexiste discriminação ou incitação à violência, exploração de medo ou desrespeito aos valores ambientais, indução das crianças a um comportamento adulto, ou aproveitamento da deficiência de julgamento e experiência da criança.

Vejamos os dispositivos legais mencionados do Código de Defesa do Consumidor que tratam do assunto:

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. [...]

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:  [...]

IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;[...]

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Desta feita, não se vislumbra expressamente a vedação da publicidade infantil desde que não se aproveite da deficiência de julgamento da criança.

A respeito da controvérsia sobre a publicidade abusiva, com entendimentos diversos, Bruno Miragem destaca que ela constitui espécie de conceito jurídico indeterminado, sendo necessária a sua determinação e precisão no momento da aplicação da norma ao caso concreto. Ou seja, a questão não se mostra simples, pois depende de discussões sob o ponto de vista jurídico e também de outras ciências, entre as quais a psicologia.

De todo modo, o autor afirma que “a publicidade abusiva é aquela que viola valores ou bens jurídicos considerados relevantes socialmente (tais como meio ambiente, segurança e integridade dos consumidores), assim como a que se caracteriza pelo apelo indevido a vulnerabilidade agravada de determinados consumidores, como crianças e idosos”.

Ademais, cita-se o art. 220, § 4º da Constituição Federal para demonstrar a ausência de restrição da publicidade tão somente porque dirigida às crianças. Em transcrição:

Art. 220, §4º da CF: A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

Da leitura, temos, a princípio, que apenas o tabaco, as bebidas alcoólicas, os agrotóxicos, os medicamentos e as terapias têm a publicidade restrita mediante previsão legal.

Além disso, a Constituição Federal prescreve:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

E, nesse sentido, o Relator Moreira de Carvalho consignou:

Não há como desprezar a existência de instituições sólidas como a família e escola, que são integralmente responsáveis pela formação da subjetividade da criança. Assim, muito embora a publicidade possa ser dirigida ao público infantil, o grande filtro da eficácia são os próprios pais, pessoas que irão adquirir os produtos ofertados pela apelada.

Em resumo, quer haja vedação à publicidade infantil ou não, incumbe-se primordialmente à família o dever e o desafio de cuidar e formar a criança e o adolescente, o que decerto, em muitas oportunidades, inclui o “não” para alguma prática ilícita, ou inaceitável do ponto de vista moral ou simplesmente porque não convém no momento (por exemplo, a criança gripada pedir sorvete).

No mais, compreender a abusividade tão somente pelo direcionamento da propaganda ao público infantil, sem se considerar todo o contexto, levaria a proibição a extremos que não fariam o menor sentido. Uma vez que a publicidade não se limita a televisão, rádio e internet, mas também ocorre nas revistas e em cartazes dispostos nos meios públicos, entre outras formas, de plano, veríamos a abusividade em cartazes confeccionados pela escola para anunciar a festa junina aos seus alunos (crianças e adolescentes) e pais e à comunidade do bairro, como também vislumbraríamos a abusividade contida em gibis voltados aos pequenos quando anunciam, de maneira colorida e interessante em determinadas páginas, novas revistas com os mesmos ou outros personagens de quadrinhos.

Igualmente, entenderíamos a abusividade na transmissão via televisão ou internet de campanhas de vacinação contra doenças sobretudo acometidas nos pequenos, posto que frequentemente se valem do Zé Gotinha e demais figuras infantis para convencê-los. Sem dúvidas, essa não é a verdadeira intenção de quem vê a publicidade infantil como intrinsecamente abusiva. Mostra-se necessária, portanto, a continuidade das discussões para o alcance da razoabilidade no tema.


Referências :

APELAÇÃO Nº 1010889-46.2014.8.26.0053. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator Moreira de Carvalho, Comarca São Paulo, 3ª Câmara Extraordinária de Direito Público, julgado em 25/04/2016.

NOTA TÉCNICA Nº 3/2016/CGEMM/DPD/SENACON, disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/consumidor/notas-tecnicas/anexos/nt-003-2016.pdf (acesso em 30 de junho de 2016)

MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.558.086/SP. Superior Tribunal de Justiça. Relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 10/03/2016.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HWANG, Helen. A publicidade infantil pressupõe-se abusiva?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4861, 22 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53040. Acesso em: 19 abr. 2024.

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