Direito Internacional Público e Direito Interno brasileiro: a problemática da prisão civil do depositário infiel

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O artigo visa conceituar a relação existente entre o direito interno brasileiro e o DIP, objetivando esclarecer a questão da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, tendo por base a CF 1988 e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

1.    Introdução

O Direito Internacional encontra-se em constante evolução, pois sua existência está condicionada ao desenvolvimento das relações diplomáticas entre os Estados e as Organizações Internacionais, de uma forma geral, ou seja, os sujeitos do direito internacional. Destaca-se que, embora o direito internacional tenha princípios próprios, regras próprias consolidadas, jus cogens, ele exerce certa influência no direito interno brasileiro no que tange ao assunto do depositário infiel. O princípio internacional da autodeterminação e não ingerência é respeitado, porém há uma problemática jurídica no ordenamento interno brasileiro que deve ser analisada para a correta compreensão da questão do depositário infiel.

Dessa forma, a proposta do presente texto encontra-se no esclarecimento do motivo para a inobservância do inciso LXVII do artigo 5° da Constituição Federal de 1988 em razão da existência da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica. Deve ser feita uma análise utilizando-se o direito constitucional brasileiro para verificar a hierarquia entre as diversas espécies normativas brasileiras e os tratados internacionais, relembrando a famosa pirâmide de Kelsen e o que dita a carta magna.


2.    Direito Internacional Público e Direito Interno

O Direito Internacional Público pode ser definido como um conjunto de regras/normas que servem para regulamentar uma comunidade internacional. Ele tem caráter obrigatório, principalmente em relação às normas costumeiras já consolidadas na comunidade internacional. Assim, apesar de haver uma ideia de impunidade dos sujeitos do direito internacional perante alguns indivíduos, essa ideia está equivocada, pois existem sanções próprias do DIP que diferem das utilizadas no direito interno de cada país, que, normalmente, possuem órgãos específicos vinculados às sanções dos indivíduos que burlaram as leis.

O direito interno preocupa-se com os conflitos internos entre os seus cidadãos. Já o direito internacional público preocupa-se com a relação entre os Estados e entre esses e as Organizações Internacionais. Nessa esteira, ele possui características próprias que devem ser destacadas. A primeira está na inexistência de subordinação dos sujeitos de direito a um Estado, ou seja, não há hierarquia entre os sujeitos do direito internacional público. A segunda está na inexistência de uma norma constitucional acima das demais, diferentemente do que é encontrado no direito interno brasileiro. A terceira está na inexistência de atos jurídicos unilaterais obrigatórios, oponíveis a toda a sociedade internacional, pois as relações entre os sujeitos internacionais são baseadas na cooperação, inexistindo, como já foi dito, uma hierarquia entre eles.

     Os princípios do DIP são também de suma importância para o entendimento da sua existência e funcionamento dentre da comunidade internacional. São eles: igualdade soberana, autonomia e não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, interdição do recurso à força e solução pacífica de controvérsias, respeito aos direitos humanos, cooperação internacional. Observa-se que o direito internacional tem como finalidade a manutenção da paz, fomentando a cooperação entre os Estados para que haja um mundo no qual o respeito aos direitos humanos seja universal, independentemente do Estado em questão e do seu direito interno.


3.    Depositário Infiel

Diante de uma breve análise do direito internacional público perante o direito interno, pode-se adentrar no principal assunto desse sucinto trabalho. No direito interno brasileiro, há uma estrutura diferenciada das normas brasileiras, formando o que se denomina de pirâmide de Kelsen. A Constituição, semirrígida, ocupa o ápice da pirâmide. Contudo, a hierarquia constitucional é ocupada, além da Constituição, pelas Emendas Constitucionais e pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos aprovados por 3/5 em cada casa do Congresso Nacional em dois turnos de votação (parágrafo segundo do artigo 60, CF). Abaixo da Constituição, ocupando hierarquia infraconstitucional encontram-se as normas supralegais, ou seja, os Tratados de Direito Humanos aprovados por quórum diferente do disposto acima; logo após encontram-se as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, os decretos legislativos, as resoluções, os decretos autônomos e as medidas provisórias, todas ocupando hierarquia infraconstitucional ordinária. Logo abaixo, há os decretos regulamentares, as denominadas normas secundárias.

Visto isso, percebe-se que o a prisão civil do depositário infiel encontra-se na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso LXVII:

 “Art. 5°, LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. 

Por se tratar de uma norma de eficácia limitada, ou seja, que precisa da regulamentação de uma lei para que possa ser executada, não tem efeito imediato. Entretanto, em 22 de novembro de 1969, foi assinada a Convenção Americana de Direito Humanos, também denominada de Pacto de San José da Costa Rica, a qual conceitua que não pode haver prisão civil do depositário infiel.

Art. 7°, § 7. Ninguém deve ser detido por dívidas.  Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

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Destaca-se que esse Tratado de Direitos Humanos foi aprovado por um quórum que não seja o de 3/5 em 2 turnos de votação, conforme já dito, resultando em uma norma supralegal para o ordenamento jurídico brasileiro. Consequentemente, esse Tratado terá hierarquia infraconstitucional, porém, superior às normas primárias (leis ordinárias, complementares...). Diante disso, a lei necessária para a regulamentação do dispositivo da Constituição sobre o depositário infiel (LXVII, Art. 5°) será sempre revogada por esse tratado devido a sua hierarquia superior, mesmo que ela venha a ser elaborada e promulgada.

Concluindo, apesar da Constituição Federal de 1988 prever a prisão civil do depositário infiel, na prática, isso nunca irá ocorrer, pois trata-se de uma norma de eficácia limitada que necessita de uma lei a regulamentando para que gere efeitos, a qual, mesmo vindo a ser produzida, será sempre revogada pelo tratado de direitos humanos de hierarquia supralegal, denominado Convenção Americana de Direitos Humanos.

Nessa esteira, podemos citar o Habeas Corpus 87.585-8 e o Recurso Extraordinário 466.343-1 com o mesmo entendimento:

“HABEAS CORPUS 87.585 TOCANTINS

DEPOSITÁRIO INFIEL – PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel.  

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.343-1 SÃO PAULO

EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário Infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5°, inc. LXVII e §§ 1°, 2° e 3°, da CF, à luz do art. 7°, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE n 349.703 e dos HCs n° 87.585 e n° 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.”


4.    Conclusão

O Direito Internacional Público, como todo ramo do direito, possui características próprias e princípios próprios. Ele surge da necessidade de comunicação entre os diversos atores e sujeitos internacionais para que assuntos em comum possam ser resolvidos e para a criação e manutenção de um clima de paz, principalmente após as Guerras Mundiais. Dessa forma, ele é importante para a comunidade internacional e para o direito interno, devendo ser sempre considerado nas tomadas de decisões.

Pode-se observar, com tudo o que já foi exposto, que há um entrelaçamento entre o direito internacional e o direito interno no momento da consolidação do tratado no ordenamento jurídico interno brasileiro. Os tratados de direitos humanos no Brasil têm um peso muito grande, por se tratar de um assunto extremamente importante no mundo inteiro. Não é por outro motivo que eles podem inclusive revogar leis internas, como aconteceria caso uma lei surgisse para efetivar o dispositivo legal sobre a prisão civil do depositário infiel. 

Dessa forma, o modelo brasileiro de organização dos tratados de direitos humanos deve, inclusive, servir como um guia para aqueles países que não possuem uma estrutura jurídica bem formada para recebê-los. Somente com atitudes como essas, respeitando o direito internacional público e os direitos humanos é que os sujeitos internacionais irão evoluir e haverá a consolidação de um mundo pacífico, cooperativo.


5.    Referências 

VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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