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Medida de segurança e reforma da Lei de Execução Penal

12/06/2004 às 00:00
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As questões relacionadas à aplicação das medidas de segurança desde há muito são objeto de controvérsias, principalmente sob o aspecto referente ao seu tempo de duração, sob o argumento de que a Constituição Federal estabelece, em seu art. 5º, XLVII, b, que não haverá penas de caráter perpétuo.

No entanto, respeitados os posicionamentos divergentes, a medida de segurança não caracteriza uma espécie de pena, conforme consta do art. 32 do Código Penal, que elenca, taxativamente, que as penas são: privativas de liberdade, restritivas de direito e multa; bem como do art. 26, que estabelece que é isento de pena o agente que, por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

De acordo com os ensinamentos de Maggiore, "a pena é uma sanção repressiva, intervém após o delito, e quia peccatum est: não para impedir ulteriores delitos, mas para retribuir o mal do crime com um outro mal. A pena não previne, não defende, não cura, não ressocializa, não reabilita: pune. A pena repousa somente sobre a culpa: pressupõe homens livres e imputáveis e não pessoas destituídas de liberdade e imputabilidade. A medida de segurança, pelo contrário, como providência preventiva, tem lugar após o crime, mas não em razão dele (postquam peccatum, non quia peccatum); não visa a retribuir uma culpa, mas impedir um perigo; portanto – embora possa fazer sofrer – não pretende ser um mal, mas apenas uma medida que impede a pessoa perigosa de prejudicar ou de prejudicar mais (ne peccetur et ne amplius peccetur). A medida de segurança, pois, não pressupõe homens livres culpáveis e imputáveis, mas indivíduos que estão eventualmente fora do mundo moral" [1].

Conforme entende De Marsico, "penas e medidas de segurança são duas estradas traçadas sobre um terreno comum (a luta contra o delito), com um único objetivo (a defesa social), cada uma com características próprias, mas não poucos caracteres comuns" [2].

Desta forma, a medida de segurança se aplica àqueles indivíduos que não são capazes de serem responsabilizados por seus atos, em virtude de não serem dotados da capacidade de entendimento, e, conforme escreve Magalhães Noronha, "responsabilidade é a obrigação que alguém tem de arcar com as conseqüências jurídicas do crime. É o dever que tem a pessoa de prestar contas de seu ato. Ela depende da imputabilidade do indivíduo, pois não pode sofrer as conseqüências do fato criminoso (ser responsabilizado) senão o que tem a consciência de sua antijuridicidade e quer executá-lo (ser imputável)..." [3].

As medidas de segurança, embora sua natureza de sanção penal, diferem das penas pela sua natureza e fundamento. As penas têm caráter retributivo-preventivo, objetivando readaptar o criminoso à sociedade, e se baseiam na culpabilidade. Já as medidas de segurança têm natureza preventiva, fundamentando-se na periculosidade do sujeito, evitando, desta forma que, um sujeito que praticou crime venha a cometer novas infrações penais.

É certo que as penas são proporcionais à gravidade da infração, são fixas, ligam-se ao sujeito pelo juízo de culpabilidade, são aplicáveis aos imputáveis e semi-imputáveis. As medidas de segurança fundamentam-se na periculosidade do sujeito, são indeterminadas, se baseiam no juízo de periculosidade, cessam apenas com o desaparecimento da periculosidade do sujeito e não podem ser aplicadas aos imputáveis.

Com base nesse entendimento, enquanto não cessar a periculosidade do agente, a medida de segurança deverá ser mantida e aplicada com todos os seus caracteres (art. 97, §1º, CP). Não há que se falar em perpetuidade da medida de segurança, pois, sua própria definição já prevê seu prazo perfeitamente prorrogável.

Questiona-se, ainda, a aplicação do princípio da igualdade, visto que, ao imputável que praticar o crime mais grave do Código Penal, a pena que lhe será aplicada terá um limite máximo de cumprimento equivalente a trinta anos e, ao inimputável que praticar o crime menos grave da legislação penal, será passível de cumprir uma sanção perpétua, uma vez que não há limite máximo legal da execução da medida de segurança.

Observa-se, no entanto, que a lei prevê o prazo de duração da medida de segurança, ou seja, esta perdurará até que seja confirmada a cessação da periculosidade do agente.

Considerando que o inimputável não é capaz de entendimento do ato ilícito que pratica, vale dizer, não elabora um juízo íntimo sobre suas ações, e, se toda ação é inerente a um valor, o inimputável não age criminalmente, uma vez que não compreende o significado valorativo de sua conduta. O doente mental apresenta características próprias, vivendo num mundo criado por ele próprio, possuindo suas verdades e seus valores, agindo de maneira que enfrente o sistema social em que vive; não sendo correto, desta forma, a aplicação de pena sancionatória, pois esta não surtirá nenhum efeito, tendo em vista o sentido de desvalor jurídico relacionado à sua conduta.

Para que seja aplicada a medida de segurança, faz-se necessário a existência de nexo causal entre a doença mental [4] e o ato ilícito praticado, pois, a partir deste, será analisada a periculosidade do agente sob o aspecto da probabilidade de reiteração da prática de outros crimes.

Cabe frisar que a periculosidade é tão importante na aplicação da medida de segurança quanto na sua extinção, uma vez que é necessário provar sua cessação para que o indivíduo não mais se submeta à aplicação da medida.

Conforme ilustra José Frederico Marques, não é a possibilidade de cometer crimes que configura a periculosidade, mas sim a probabilidade de cometê-los, em razão da configuração biopsíquica do agente e de fatores de ordem objetiva de seu ambiente circundante, pois "possibilidade de praticar um fato delituoso, todos apresentam" [5].

A esse respeito, assevera Aníbal Bruno que "a periculosidade criminal é um estado de grave desajustamento às normas de convivência social, resultante de uma maneira de ser particular do indivíduo, congênita ou gerada pela pressão de condições desfavoráveis do meio, originando a prática de um ato ilícito" [6].

Assim, há necessidade imperiosa de um laudo médico que apresente um diagnóstico acerca da doença que porta o agente do crime, internando-se o delinqüente quando estritamente necessário, subordinando-o ao tratamento de uma equipe terapêutica especializada, com a intenção de potencializar a adaptação do internado à vida em sociedade. Cuida-se de não tornar os manicômios judiciários em depósitos de doentes mentais delinqüentes, os quais poderão ser esquecidos e não tratados da maneira correta, perdendo a medida de segurança a sua finalidade.

Conforme pondera Eduardo Reale Ferrari, "a socialização não justifica a medida de segurança, o que justifica sua aplicação é o fato de se tentar evitar a prática de crimes futuros. Periculosidade não é ensejo a uma socialização forçada" [7].

Interessante observar que, considerando o caráter de pena perpétua, que alguns atribuem à aplicação da medida de segurança, e os resultados que ela apresenta, ou, talvez, não apresente, visto que buscam uma socialização do doente que, na maioria das vezes, não ocorre, cresce um movimento "antimanicomial" que visa extinguir os chamados "manicômios judiciários".

Ora, busca-se a extinção da medida de segurança com base na sua falibilidade, porém, não encontraria outra solução, a não ser extinguir as penitenciárias, pois, estas, mais ainda, são ineficazes.

A ineficácia da medida de segurança, muitas vezes, repousa no desejo de socializar um indivíduo que não foi e não será socializado, em razão de uma doença mental que o leva a agir de maneira atentatória à sociedade. No entanto, a aplicação das penas, conforme se observa no art. 1º da Lei de Execução Penal, também visa proporcionar a harmônica integração social do condenado, o que deixa de ocorrer, porém, não em razão de uma debilidade de saúde deste, mas sim, por uma questão de debilidade estatal, que não proporciona a menor condição para alcançar tais objetivos.

Criticar a ineficácia da medida de segurança é absolutamente simples, porém, analisados seus argumentos, os mesmos se aplicam às penas privativas de liberdade.

São assegurados ao internado todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei, a fim de tutelar a dignidade humana. O princípio da dignidade humana exige que as autoridades competentes confiram ao doente mental delinqüente, condições mínimas de tratamento, como a salubridade do ambiente, a presença de profissionais habilitados, a individualização na execução da medida de segurança e a transmissão de valores necessários à convivência em sociedade.

Portanto, nota-se que a falibilidade não se encontra no instituto da medida de segurança em si mesmo, mas na forma de sua aplicação, da mesma maneira que ocorre com os estabelecimentos penitenciários, os quais não apresentam a menor condição de proporcionar aos condenados preceitos mínimos de sobrevivência, que dirá de "recuperação".

Muitas vezes, os laudos psiquiátricos não contêm a necessária e cabal fundamentação, até porque, e isso não é raro, o exame limita-se a uma entrevista única com o paciente, e parte, freqüentemente, de informações que ele mesmo presta. Haja vista a parcimônia utilizada relativamente ao eletroencefalograma, exame tão importante para verificação da normalidade eletromagnética cerebral. Também, não se pode perder de vista que os operadores do direito nem sempre atribuem o devido valor às considerações dos psiquiatras, ou a falta delas. Mais imediato sufragar-se a imputabilidade, do que ampliarem-se as pesquisas na verificação efetiva e indiscutível do estado mental do paciente.

No entanto, ao invés de buscar-se um cumprimento efetivo para as medidas de segurança (o que vale para a aplicação das penas, inclusive), a máquina legislativa trabalha em conta de reformular a Lei de Execução Penal, atendendo aos clamores da inconstitucionalidade de sua aplicação.

Não encontrando solução, a reforma da Lei de Execução Penal, transfere o problema de um setor a outro do Estado, ou seja, se a administração dos estabelecimentos penais não têm condições de propiciar o disposto na legislação penal e considerando-se o desgosto causado pela aplicação das medidas de segurança, passemos o problema para os "enormes" cuidados da saúde pública. Leia-se: desinterne-se o paciente do "manicômio judiciário" e interne-o no "manicômio público".

Mais curioso, ainda, é que o Projeto de Lei nº 5.075/01, o qual estabelece eficaz alteração vai além:

"Art. 177-A. O tempo de duração da medida de segurança não será superior à pena máxima cominada ao tipo legal de crime.

§1º Findo o prazo máximo e não comprovada, pela perícia, a cessação da doença, o juiz declarará extinta a medida de segurança determinando, com a decretação de interdição, a transferência do internado para tratamento em estabelecimentos médicos da rede pública, se não for suficiente o tratamento ambulatorial.

§ 2º Nos seis meses anteriores ao vencimento do prazo máximo o Ministério Público será comunicado, para que promova a interdição, como condição para se efetivar a transferência".

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Nota-se que, além de descaracterizar a medida de segurança, impondo um novo prazo para sua cessação, deve-se declarar a interdição do paciente.

A alteração desperta alguns questionamentos: o que ocorre se o juízo cível não declarar a interdição do internado? Ou, pior, o juízo cível necessariamente deve declarar a interdição, desrespeitando todos os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa? Parece-nos que não. Aliás, qual o mérito da medida de interdição, pois, se a periculosidade do paciente com ela cessasse, não haveria necessidade da existência da medida de segurança, bastaria declarar a interdição do indivíduo. Qual o vínculo existente entre a interdição do sujeito, apurada no juízo cível, com a aplicação da medida de segurança, determinada pelo juízo penal? E mais, no caso de não haver parentes para nomeação de curador, ficaria o patrimônio do interditado a mercê do Estado?

Observa-se que, em face do Estado não proporcionar condições para que o internado retorne ao convívio social, opta-se pela interdição do sujeito e a re-internação em outro estabelecimento.

Interditaria-se, portanto, o indivíduo que cumpre uma pena e ao qual houve a superveniência de doença mental? Em sendo afirmativa a resposta, o condenado estaria submetido a uma sanção de interdição não prevista no título executivo da condenação, visto que este determina a aplicação de uma pena, pura e simplesmente, que não impõe a interdição do sujeito. Parece-nos que a intenção é manter o sistema atual nesta hipótese, extinguindo-se a aplicação da medida de segurança ao término do tempo estabelecido na sentença penal condenatória, pouco importando se o sujeito encontra-se em condições de conviver socialmente.

Conclui-se, portanto, que uma eventual interdição não é, e o legislador assim o sabe, tanto é que determina a internação em outro estabelecimento, a solução para a cessação da periculosidade do agente e, muito menos será, a imposição de um prazo equivalente ao tempo aplicado na cominação da pena máxima de um crime.

Parece-nos que, a intenção do legislador é, independentemente da existência da periculosidade, colocar o delinqüente no meio social, visto que, se a interdição não for obtida, não restará outra saída, a não ser, desinternar o doente, colocando-o a mercê dos preconceitos da sociedade e colocando a segurança desta em risco.

O mencionado Projeto ainda estabelece:

"Art. 178. Na hipótese de alta médica (art. 97, § 6º, do Código Penal), esta ficará condicionada à manutenção do tratamento medicamentoso, devendo ser restabelecida a situação anterior se o paciente, antes do decurso de 1 (um) ano, praticar fato indicativo da persistência da doença".

É de se indagar se os conhecimentos do legislador, no ramo da medicina, são suficientes para determinar, previamente, a necessidade de manutenção de tratamento medicamentoso a que deve ser submetido o paciente que obteve alta médica.

E mais, o que pretende o legislador com a expressão "fato indicativo da persistência da doença"?

O paciente retorna "à situação anterior", que também não se sabe qual seria, porém, nos parece que é a aplicação da medida de segurança, pois, o indivíduo interditado e internado em estabelecimento pertencente à administração da saúde pública, notadamente apresenta "fatos indicativos de persistência da doença".

Assim, para que seja aplicada a medida de segurança, não mais haveria a necessidade de um devido processo legal, pois não há necessidade do cometimento de um novo crime se, no prazo de um ano, o indivíduo apresentar tais fatores indicativos da persistência da doença. Seria a intenção referir-se à periculosidade que o sujeito possa manifestar? Não se sabe. Ainda que a periculosidade da pessoa tenha sido sanada, ela será punida por ser portadora de uma doença e, salienta-se, por indicar persistência da doença, não havendo necessidade de sua comprovação, conforme depreende-se do texto proposto.

As reflexões apresentadas estão afastadas de buscar soluções, mas sim, de realçar a necessidade do estudo metódico e sistemático das medidas de segurança e dos seus destinatários, para que possam efetivamente se constituir em meios cabais e efetivos de prevenção de práticas infracionais e de preservação da estrutura social, pois, parece-nos que não será "trocando seis por meia dúzia" e interditando-se um indivíduo que, por vezes, não necessita ser interditado, o problema dos inimputáveis restará solucionado.

"Nem no moral, nem no físico, existe homem absolutamente normal. O homem perfeito é pura criação do espírito: a vontade determinando-se por si mesma, é uma concepção abstrata da razão. O homem normal, como nos é permitido conhecê-lo, é um indivíduo dotado de atividade psíquica mais ou menos regular."

Prins


Bibliografia:

EÇA, Antonio José. Apostila de medicina legal: psiquiatria forense. Faculdade de Direito. São Paulo: FMU, 2001.

FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. 1v. II T. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. III v. 1ª ed. atual. Campinas: Millennium, 1999.

NORONHA, Magalhães E. Direito Penal. I v. Rio de Janeiro: Saraiva, 1981.


Notas

1 Maggiore, Diritto penale, Bologna, 1958, p. 793 apud Nelson Hungria; Heleno Cláudio Fragoso, Comentários ao Código Penal, 1 v., T. II, 5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 452.

2Apud Ataliba Nogueira, Medidas de Segurança, p. 97 in José Frederico Marques, Tratado de direito penal, v. III, 1ª ed. atual. Campinas, Millennium, 1999.

3 E. Magalhães Noronha, Direito Penal, vol. I, Rio de Janeiro, Saraiva, 1981, p. 172.

4 "Doença mental é a incapacidade para um auto-conhecimento realista e tolerante, de sentir interesse pelo semelhante, seguir a sua própria consciência, satisfazer suas necessidades sem prejudicar os demais e tolerar as tensões e frustrações (...)". Antônio José Eça, Apostila de Medicina Legal: psiquiatria forense, São Paulo, UniFMU, 2001.

5 José Frederico Marques, Tratado, cit. p. 104.

6Apud Eduardo Reale Ferrari, Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 157.

7 Eduardo Reale Ferrari, Medidas, cit. p. 60.

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Sobre a autora
Juliana Fogaça Pantaleão

advogada, sócia da Pantaleão Sociedade de Advogados, especialista em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura, e Direito Penal Econômico Internacional pelo Instituto Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra, com extensão universitária em Direitos Humanos pela FGV/RJ, e mestranda em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PANTALEÃO, Juliana Fogaça. Medida de segurança e reforma da Lei de Execução Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 340, 12 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5315. Acesso em: 28 mar. 2024.

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