1. INTRODUÇÃO
Os gastos públicos ou gastos governamentais comportam todas as despesas da Administração Pública realizadas em todas as esferas da administração direta e indireta, englobando inclusive as despesas do governo com suas atividades econômicas através das empresas estatais.
Segundo inteligência da Constituição da República de 1988 (CR/88), o Estado assumiu as funções típicas de saúde, educação, defesa nacional, policiamento, regulação, justiça e assistência social. Ademais, com o pacto federativo trazido pela CR/88, o governo federal assumiu uma série de outras funções, como o ensino superior.
Ocorre que intrínsecos aos gastos públicos estão os investimentos públicos estratégicos, geralmente relacionados a grandes obras que visam à promoção do desenvolvimento econômico do país e consequente melhoria do bem-estar social.
A desapropriação é o instituto utilizado em nosso ordenamento jurídico para transferência da propriedade privada quando houver interesse público que a justifique.
As próximas seções irão apresentar os principais conceitos relacionados ao instituto da desapropriação, sua evolução em nosso ordenamento jurídico, além de apresentar implicações do princípio da Supremacia do Interesse Público em relação ao Interesse Privado.
Em seguida serão demonstradas as principais implicações do Decreto-lei n.º 3.365, de 21 de Julho de 1941, que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública, para os grandes investimentos do Poder Público.
Visando a enriquecer o trabalho, ainda será sucintamente apresentado o plano de longo prazo para a expansão do Aeroporto Internacional Tancredo Neves e as implicações que os prazos estabelecidos no Decreto-lei trazem para um planejamento governamental de longo prazo.
2. O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO
Grosso modo, toda vez que se faz necessária a transferência da propriedade privada para o Poder Público, independente da vontade do privado e justificada a necessidade do Poder Público, constitui-se a desapropriação. Nos sucintos dizeres de Abagge (2007) é ato pelo qual o “Poder Público, mediante prévio procedimento e indenização justa, em razão de uma necessidade ou utilidade pública, ou ainda diante do interesse social, despoja alguém de sua propriedade e a toma para si”.
Em nosso ordenamento jurídico, historicamente, a desapropriação já era disciplinada no tempo do Império, através do Decreto de 21 de maio de 1821, na íntegra abaixo:
Prohibe tomar-se a qualquer, cousa alguma contra a sua vontade, e sem indemnisação.
Sendo uma das principaes bases do pacto social entre os homens segurança de seus bens; e Constando-Me que com horrenda infracção do Sagrado Direito de Propriedade se commettem os attentados de tomar-se, a pretexto de necessidades do Estado, e Real Fazenda, effeitos de particulares contra a vontade destes, e muitas vezes para se locupletarem aquelles, que os mandam violentamente tomar; e levando sua atrocidade a ponto de negar-se qualquer titulo para poder requerer a devida indemnisação:
Determino que da data deste em diante, a ninguem possa tomar-se contra sua vontade cousa alguma de que fôr possuidor, ou proprietario; sejam quaesquer que forem as necessidades do Estado, sem que primeiro de commum acordo se ajuste o preço, que lhe deve por a Real Fazenda ser pago no momento da entrega; e porque pode acontecer que alguma vez faltem meios proporcionaes a tão promptos pagamentos:
Ordeno, nesse caso, que ao vendedor se entregue Tittulo apparelhado para em tempo competente haver sua indemnisação, quando elle constrangimento consinta em lhe ser tirada a cousa necessaria ao Estado e aceite aquelle modo de pagamento.
Os que o contrario fizerem incorreção na pena do dobro do valor a beneficio dos offendidos.
O Conde dos Arcos, do Conselho de Sua Magestade, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios, o tenha assim entendido, e o faça executar com os despachos necessarios. Palacio do Rio de Janeiro em 21 de Maio de 1821. (grifos nossos).
Observava-se já no Império a possibilidade do Estado tomar para si bens particulares considerando suas necessidades. Todavia, extrai-se do texto acima que seria necessário um comum acordo com o particular, inclusive no que diz respeito ao valor da indenização.
Já com a Constituição do Império do Brasil de 1824, com a redação do inciso 22 do artigo 179 abaixo transcrito, resta clara a manutenção da obrigação de indenização prévia, sem, contudo, prescrever a necessidade de aquiescência do particular:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
(...)
XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.
De forma semelhante, a Constituição de 1891, em seu artigo 72, §17 determinou que “O direito de propriedade mantem-se em toda a plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”.
Na mesma linha, a Constituição de 1934, em seu artigo 113, item 17, previa:
É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra e comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. (grifos nossos)
Merece destaque aqui o surgimento das expressões “necessidade ou utilidade pública”, “prévia e justa indenização” e o uso da propriedade particular em algumas situações, com guerra, com posterior indenização. Tais expressões, bem como o instituto da requisição administrativa podem ser considerados avanços para o instituto da desapropriação.
A seguir, com o item 14 do artigo 122 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, inicialmente estabelecia que:
(...) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício;
Tal dispositivo foi posteriormente revogado pelo Decreto n.º 10.358, de 31 de agosto de 1942, que declarava o Estado de Guerra em todo o território nacional. De toda sorte, no ano anterior era publicado o Decreto-lei 3.365, de 21 de julho de 1941, que se tornou o diploma legal fundamental das desapropriações em geral, especialmente aquelas que têm por finalidade a necessidade ou utilidade pública, ficando conhecido como “Lei Geral das Desapropriações”. (DA SILVA, 1993)
Da Silva (1993) ainda ensina que o conteúdo relacionado a desapropriação consubstanciado nas Constituições de 1946 e 1967, praticamente mantiveram os mesmos requisitos da justa e prévia indenização em dinheiro. Todavia, referente à política de reforma agrária, ao definir que a indenização devia ser em dinheiro, Da Silva acredita que tal fato emperrou a reforma agrária no país. Somente com os Títulos da Dívida Agrária – TDAs –, instituídos por Ato Institucional, o pagamento das indenizações provenientes em interesse social para fins de reforma agrária em TDAs foi viabilizado. (DA SILVA, 1993)
Atualmente, segundo inteligência do art. 5º, inciso XXIV, e do art. 184 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CR/88 – são imperiosos como pressupostos da desapropriação a necessidade pública, a utilidade pública e o interesse social:
Art. 5 (...)
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição. (...)
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
§ 1º As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.
§ 2º O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.
§ 3º Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.
§ 4º O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.
§ 5º São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.
Por tudo visto, pode-se afirmar que objetivando ao atendimento de interesses sociais, o Poder Público pode se valer do instituto da desapropriação. De acordo com Mello (2001), a desapropriação é então:
(...) o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real.
A desapropriação por utilidade pública é o instrumento pelo qual a Administração Pública, com objetivo de incorporar ao patrimônio público propriedade que não lhe pertence, tendo em vista os interesses sociais. De acordo com Carvalho Filho (2014, p. 830):
Desapropriação é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização.
Seguindo interpretação distinta, Justen Filho (2006), discorda parcialmente do conceito acima, ao não compreender a desapropriação como um procedimento, mas sim como um ato estatal unilateral, que por sua vez pressupõe um procedimento prévio. Para o autor a desapropriação é resultado do procedimento e deve ser considerada ato unilateral por desconsiderar a vontade do proprietário, ao qual caberia discordar tão somente do valor da desapropriação.
Em relação às finalidades da desapropriação, como bem assevera Meirelles (2007), necessidade pública está relacionada a uma situação de urgência que implica a transferência de bens particulares para o domínio do Poder Público, enquanto utilidade pública se configura nos casos em que é conveniente a transferência da propriedade privada para o Poder Público, mas sendo apenas oportuna e vantajosa para o interesse coletivo. Já interesse social se justifica quando a transferência da propriedade busca redução das desigualdades. Destarte, Meirelles (2007) defende que:
(...) o interesse social ocorre quando as circunstâncias impõem a distribuição ou o condicionamento da propriedade para seu melhor aproveitamento, utilização ou produtividade em benefício da coletividade ou de categorias sociais merecedoras de amparo específico do Poder Público. Esse interesse social justificativo de desapropriação está indicado na norma própria (Lei 4.132 /62) e em dispositivos esparsos de outros diplomas legais. O que convém assinalar, desde logo, é que os bens desapropriados por interesse social não se destinam à Administração ou a seus delegados, mas sim à coletividade ou, mesmo, a certos beneficiários que a lei credencia para recebe-los e utiliza-los convenientemente.
Cabe frisar que a regulamentação prevista pela Carta Magna se dá pelo Decreto-lei nº 3.365/41, que foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro, e dispõe sobre desapropriações por utilidade pública.
Para Carvalho Filho (2014), a desapropriação é resultado da aplicação direta, clara e manifesta, do Princípio da Supremacia do Interesse Público, pois caracteriza o interesse da sociedade se sobrepujando ao interesse individual à propriedade, configurando-se em um fato administrativo característico da atuação do Estado para consecução do interesse público e a clara intervenção do Estado na propriedade privada. Segundo o autor:
O objetivo da desapropriação é a transferência do bem desapropriado para o acervo do expropriante, sendo que esse fim só pode ser alcançado se houver os motivos mencionados no conceito, isto é, a utilidade pública ou o interesse social. E a indenização pela transferência constitui a regra geral para as desapropriações, só por exceção se admitindo, como adiante se verá, a ausência desse pagamento indenizatório (Carvalho Filho, 2014, p.830).
3. A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO NOS GRANDES INVESTIMENTOS
Os princípios são linhas gerais aplicadas a determinada área do direito, constituindo as bases e determinando as estruturas em que se assentam institutos e normas jurídicas. São de grande importância e aplicação no Direito Administrativo. De acordo com Gavião Pinto (2008), o Direito Administrativo, assim como as demais ciências jurídicas, é regido por vários princípios, que refletem o momento político em que vive a sociedade.
Seguindo essa linha, pertinente destacar que a Administração Pública possui prerrogativas e sujeições que atendem ao interesse coletivo. Por esta razão ocorre, muitas vezes, a limitação de direitos e liberdades individuais em virtude da supremacia do interesse público sobre o particular.
Tem-se então que o interesse público possui dois grandes postulados, a supremacia do interesse público sobre o interesse privado e a indisponibilidade do interesse público pela Administração. Pela indisponibilidade pode-se aludir que os interesses pertencentes à coletividade não estão à disposição de ninguém, inclusive do administrador.
Como supramencionado, o princípio da supremacia do interesse público ensina-nos que, no confronto entre o interesse do particular e o interesse público, prevalecerá o público, no qual está representado o interesse da coletividade.
Celso Antônio Bandeira de Mello expõe que
(...) como expressão desta supremacia, a Administração, por representar o interesse público, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigações mediante atos unilaterais. Tais atos são imperativos como quaisquer atos do Estado. Demais disso, trazem consigo a decorrente exigibilidade, traduzida na previsão legal de sanções ou providências indiretas que induzam o administrado a acatá-los. Bastas vezes ensejam, ainda, que a própria Administração possa, por si mesma, executar a pretensão traduzida no ato, sem necessidade de recorrer previamente às vias judiciais para obtê-la. É a chamada auto-executoriedade dos atos administrativos.
Carvalho Filho diz que
(...) não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo. Saindo da era do individualismo exacerbado, o Estado passou a caracterizar-se como o Welfare State, dedicado a atender ao interesse público. Logicamente, as relações sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público. Trata-se, de fato, do primado do interesse público. O indivíduo tem que ser visto como integrante da sociedade, não podendo os seus direitos, em regra, ser equiparados aos direitos sociais.
Por defender o uso mais racional e ponderado do princípio da supremacia do interesse público, Viegas (2011) assevera que o interesse individual também deve ser observado pelo administrador, evitando que muitos interesses particulares sejam massacrados, ofendendo inclusive a dignidade humana, preceito muito bem resguardado por nossa Carta Magna.
Cohen (2010), em estudo sobre a atuação dos ministros do Supremo Tribunal Federal, constatou que, recorrentemente, os ministros não utilizam o princípio de maneira originária. Isso significa que a supremacia do interesse público sobre o privado somente é analisada quando levado à apreciação do STF pelas partes na resolução dos litígios.
Não obstante, em instâncias diversas o princípio é reforçado nos julgados, sendo comumente utilizado para fundamentar decisões sobre litígios envolvendo desapropriação por utilidade pública. O extrato abaixo, referente à decisão do Agravo de Instrumento n.º 08022873420138020900, julgado pelo Tribunal de Justiça de Alagoas em 04 de novembro de 2015, bem ilustra isso:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ORIGINÁRIA DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL DECLARADO DE UTILIDADE PÚBLICA, PARA FINS DE DESAPROPRIAÇÃO, A QUAL SE DEU COM A LAVRATURA DE ESCRITURA DE DESAPROPRIAÇÃO. SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O INTERESSE PARTICULAR. PRINCÍPIO BASILAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EVENTUAL MUDANÇA DA SITUAÇÃO PODERIA ACARRETAR DANO INVERSO AO ESTADO DE ALAGOAS, NA MEDIDA EM QUE O TERRENO OBJETO DA AÇÃO FOI POR ELE DESAPROPRIADO. INVIABILIDADE DA PRETENSÃO POSSESSÓRIA DO AGRAVANTE. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DA USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO. ART. 191, P. ÚNICO DA CF. (grifos nossos).
Reconhecida a recorrente utilização do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado para se justificar desapropriações, há de se reforçar a relevância dos grandes investimentos públicos para o interesse coletivo, visto que objetivam o desenvolvimento econômico e melhoria do bem-estar geral.
Ao encontro disso, Maciel (2006 apud Borja Reis, 2008) defende que o objetivo social e politicamente legítimo da infraestrutura está intimamente ligado ao aprimoramento do bem-estar da população, ao efetivar o acesso universal aos serviços relevantes para a vida das pessoas.
Silva Filho e Pompermayer (2015) lembram que num contexto de limitação da capacidade das instituições financeiras em fornecer linhas de crédito de longo prazo, enaltece a necessidade de se buscar novos instrumentos para financiar a modernização da infraestrutura econômica e urbana. Levando-se em conta o atual cenário de deterioração das contas públicas e esgotamento das fontes oficiais de financiamento no Brasil, soluções como as parcerias público-privadas – PPP – assumem extremada importância no debate sobre como o Estado pode ampliar sua capacidade de realizar grandes investimentos.