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Os direitos políticos do condenado criminalmente

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18/06/2004 às 00:00
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das considerações expostas neste trabalho, pretendeu-se evidenciar que a cidadania e o exercício do voto são um direito, não um privilégio concedido apenas a certos indivíduos de elevadas condições econômicas, culturais ou mesmo morais; seu reconhecimento deriva do fato objetivo de o indivíduo pertencer à comunidade e de possuir condições mínimas de discernimento.

Compreende-se, em razão disso, que todas as formas de restrição do direito ao exercício do voto nada mais revelam do que técnicas antidemocráticas, destinadas a propiciar a manutenção do status quo de exclusão, impelindo o condenado a afastar-se cada vez mais do senso de realidade do mundo externo, para assumir de vez sua condição de vassalo, de mero espectador da vida pública, em vez de partícipe dela.

Outro enfoque que sobreleva apontar é que, se o condenado é considerado, do ponto de vista do Direito Penal e do Direito Civil, agente plenamente capaz, tanto que de sua conduta anti-social lhe decorre a imposição de sanções penais, além da obrigação de indenizar os danos porventura causados à vítima, como se justifica seja ele tachado de "incapaz, inidôneo e de desprovido de qualquer dignidade" do ponto de vista político?

A tão embaraçosa questão, certamente, só se pode encontrar explicação no efetivo descaso da sociedade para com aqueles que, na quase totalidade, já são marginalizados socialmente.

Em função disso, procurou-se enfatizar neste trabalho que a todo ser humano capaz de atos conscientes deve ser garantida a capacidade eleitoral, pelo menos para o exercício do direito de votar, não só como forma de diminuir injustas diferenciações sociais, dado o caráter ensejador da conquista de novos direitos de que se reveste a cidadania participativa, mas também para preservar e garantir a Democracia.

Ademais, como se apontou, se a Revolução Francesa teve como ideal acabar com o governo de um ou de alguns, não há como justificar que no Governo do Povo pelo Povo, semelhantes nossos permaneçam à margem do poder soberano e, conseqüentemente, se vejam amordaçados e impotentes no sentido de garantirem seus mínimos direitos e marcharem para a conquista de novos.

Sob o prisma filosófico, portanto, procurou-se demonstrar que qualquer argumento contrário ao direito de voto do condenado não encontra justificativa, além de violar direitos individuais que têm todos os membros de uma sociedade de participar da vontade geral.

Da mesma forma, do ponto de vista normativo, enfatizou-se não existir qualquer impedimento ao voto do condenado, pois o art. 1º da Constituição Federal, sob o título "Dos Princípios Fundamentais", estabelece que a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos, dentre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, cujo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, figurando na categoria povo também os condenados.

Tal entendimento foi embasado, ainda, no princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, insculpido na Magna Carta, bem assim como a garantia da soberania popular, exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos.

Acresça-se a isso o fato de a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, não impedir o alistamento eleitoral das pessoas que não estejam no pleno gozo de seus direitos políticos. Assim, é de se entender que o inciso III do art. 15 da Constituição Federal, que suspende os direitos políticos de quem tenham contra si condenação criminal transitada em julgado, tem reflexos apenas nos direitos políticos passivos, ou seja, na elegibilidade.

De resto, quando a Revolução Francesa de 1789 suplantou o absolutismo, definiu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que cabe a cada indivíduo todos os direitos e todas as liberdades nela enunciadas, sem distinção por razões quaisquer, nem mesmo quanto ao seu status libertatis.

O direito à liberdade não consiste apenas no direito de ir e vir, à capacidade ambulatória do indivíduo. É muito mais, é o direito que tem todo indivíduo, no gozo de suas faculdades mentais, de autodeterminar-se. É a liberdade de pensamento, de expressão, de manifestação política, prerrogativas essas que não podem ser revogadas pela condenação criminal.

Sob o prisma sociológico, por sua vez, fez-se incursão sobre qual seria a função social da norma restritiva do direito de voto do condenado, não se vislumbrando qualquer uma, a não ser excluir ainda mais os já excluídos.

Como se procurou enfatizar, a grande massa dos condenados no Brasil é composta por infratores provenientes das camadas sociais mais estigmatizadas e que, em decorrência da exclusão social, preponderantemente atentaram contra o patrimônio alheio. Enquanto isso, os grandes infratores da economia pública e da ordem tributária, que avançam sobre o patrimônio de milhares de pessoas, permanecem inatingíveis pelo aparato punitivo estatal e, o que é pior, patrocinando campanhas políticas de candidatos que representem, única e exclusivamente, interesses das classes dominantes.

Nesse sentido, assinale-se que ninguém há de ser tão ingênuo de pensar que no Brasil vigora o princípio do voto igualitário: um homem, um voto. O voto daquele que contribuiu com verbas para a campanha do candidato certamente tem valor infinitamente maior do que o daquele que apenas sufragou seu nome por considerá-lo melhor.

Por óbvio, para o candidato o voto do primeiro é qualitativo, enquanto o do segundo é meramente quantitativo. Entretanto, impõe-se reconhecer que, ao menos do ponto de vista formal, a possibilidade de que o seu voto valha equivalentemente ao voto de um empresário pode funcionar para o condenado como um referencial de poder e de auto-respeito, ao incutir-lhe o sentimento de que ‘a sua pessoa, o seu ser vale alguma coisa’. Esse fato, por si só, já seria suficiente para promover-lhe o exercício de outras vertentes da cidadania, de forma a patrocinar uma mudança no sistema prisional.

Modernamente, tem-se apregoado o sentido ressocializador da condenação, como mecanismo de (re)integração do malfeitor ao meio social. Entretanto, para que essa diretriz do Direito Penal se concretize, mostra-se fundamental, como se viu, uma praxis que resgate valores do condenado, tanto como pessoa humana quanto como membro da sociedade em que vive.

Destarte, é de se concluir que se se pretende repensar o sistema punitivo no Brasil, acabando com a roda-vida das reincidências, deve-se assegurar aos condenados os seus direitos políticos, inserindo-os no espaço público, pois não se pode pretender acabar com a exclusão social excluindo-se. Nesse aspecto, como muito bem explicitado por Alessandro BARATTA, "toda técnica pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão. Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir".

Ademais, como asseverou Hannah ARENDT, os homens não nascem exatamente iguais, tornam-se iguais em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade resulta, então, da organização humana. Por isso, segundo suas palavras, "perder o acesso à esfera do público é perder o acesso à igualdade. Aquele que se vê destituído da cidadania, ao ver-se limitado à esfera do privado, fica privado de direitos", restando à mercê da benevolência dos outros.

Vivendo o homem em sociedade, "o primeiro direito humano que a polis, como um artefato humano, pode conceder, e do qual derivam todos os demais, é o direito à vida pública, que permite o comando da palavra e da ação", em busca de outros e novos direitos.

Aponta-se, finalmente, para o fato de que, sem os direitos de cidadania e, portanto, expulsos do cenário público, os condenados, limitados ao minúsculo espaço privado de suas celas, tornaram-se supérfluos para a sociedade, encontrando na rebelião a única forma de se fazerem ouvir e ver.


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Sobre a autora
Jane Justina Maschio

pós-graduanda em Direito pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASCHIO, Jane Justina. Os direitos políticos do condenado criminalmente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 346, 18 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5368. Acesso em: 28 mar. 2024.

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