CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das considerações expostas neste trabalho, pretendeu-se evidenciar que a cidadania e o exercício do voto são um direito, não um privilégio concedido apenas a certos indivíduos de elevadas condições econômicas, culturais ou mesmo morais; seu reconhecimento deriva do fato objetivo de o indivíduo pertencer à comunidade e de possuir condições mínimas de discernimento.
Compreende-se, em razão disso, que todas as formas de restrição do direito ao exercício do voto nada mais revelam do que técnicas antidemocráticas, destinadas a propiciar a manutenção do status quo de exclusão, impelindo o condenado a afastar-se cada vez mais do senso de realidade do mundo externo, para assumir de vez sua condição de vassalo, de mero espectador da vida pública, em vez de partícipe dela.
Outro enfoque que sobreleva apontar é que, se o condenado é considerado, do ponto de vista do Direito Penal e do Direito Civil, agente plenamente capaz, tanto que de sua conduta anti-social lhe decorre a imposição de sanções penais, além da obrigação de indenizar os danos porventura causados à vítima, como se justifica seja ele tachado de "incapaz, inidôneo e de desprovido de qualquer dignidade" do ponto de vista político?
A tão embaraçosa questão, certamente, só se pode encontrar explicação no efetivo descaso da sociedade para com aqueles que, na quase totalidade, já são marginalizados socialmente.
Em função disso, procurou-se enfatizar neste trabalho que a todo ser humano capaz de atos conscientes deve ser garantida a capacidade eleitoral, pelo menos para o exercício do direito de votar, não só como forma de diminuir injustas diferenciações sociais, dado o caráter ensejador da conquista de novos direitos de que se reveste a cidadania participativa, mas também para preservar e garantir a Democracia.
Ademais, como se apontou, se a Revolução Francesa teve como ideal acabar com o governo de um ou de alguns, não há como justificar que no Governo do Povo pelo Povo, semelhantes nossos permaneçam à margem do poder soberano e, conseqüentemente, se vejam amordaçados e impotentes no sentido de garantirem seus mínimos direitos e marcharem para a conquista de novos.
Sob o prisma filosófico, portanto, procurou-se demonstrar que qualquer argumento contrário ao direito de voto do condenado não encontra justificativa, além de violar direitos individuais que têm todos os membros de uma sociedade de participar da vontade geral.
Da mesma forma, do ponto de vista normativo, enfatizou-se não existir qualquer impedimento ao voto do condenado, pois o art. 1º da Constituição Federal, sob o título "Dos Princípios Fundamentais", estabelece que a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos, dentre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, cujo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, figurando na categoria povo também os condenados.
Tal entendimento foi embasado, ainda, no princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, insculpido na Magna Carta, bem assim como a garantia da soberania popular, exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos.
Acresça-se a isso o fato de a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, não impedir o alistamento eleitoral das pessoas que não estejam no pleno gozo de seus direitos políticos. Assim, é de se entender que o inciso III do art. 15 da Constituição Federal, que suspende os direitos políticos de quem tenham contra si condenação criminal transitada em julgado, tem reflexos apenas nos direitos políticos passivos, ou seja, na elegibilidade.
De resto, quando a Revolução Francesa de 1789 suplantou o absolutismo, definiu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que cabe a cada indivíduo todos os direitos e todas as liberdades nela enunciadas, sem distinção por razões quaisquer, nem mesmo quanto ao seu status libertatis.
O direito à liberdade não consiste apenas no direito de ir e vir, à capacidade ambulatória do indivíduo. É muito mais, é o direito que tem todo indivíduo, no gozo de suas faculdades mentais, de autodeterminar-se. É a liberdade de pensamento, de expressão, de manifestação política, prerrogativas essas que não podem ser revogadas pela condenação criminal.
Sob o prisma sociológico, por sua vez, fez-se incursão sobre qual seria a função social da norma restritiva do direito de voto do condenado, não se vislumbrando qualquer uma, a não ser excluir ainda mais os já excluídos.
Como se procurou enfatizar, a grande massa dos condenados no Brasil é composta por infratores provenientes das camadas sociais mais estigmatizadas e que, em decorrência da exclusão social, preponderantemente atentaram contra o patrimônio alheio. Enquanto isso, os grandes infratores da economia pública e da ordem tributária, que avançam sobre o patrimônio de milhares de pessoas, permanecem inatingíveis pelo aparato punitivo estatal e, o que é pior, patrocinando campanhas políticas de candidatos que representem, única e exclusivamente, interesses das classes dominantes.
Nesse sentido, assinale-se que ninguém há de ser tão ingênuo de pensar que no Brasil vigora o princípio do voto igualitário: um homem, um voto. O voto daquele que contribuiu com verbas para a campanha do candidato certamente tem valor infinitamente maior do que o daquele que apenas sufragou seu nome por considerá-lo melhor.
Por óbvio, para o candidato o voto do primeiro é qualitativo, enquanto o do segundo é meramente quantitativo. Entretanto, impõe-se reconhecer que, ao menos do ponto de vista formal, a possibilidade de que o seu voto valha equivalentemente ao voto de um empresário pode funcionar para o condenado como um referencial de poder e de auto-respeito, ao incutir-lhe o sentimento de que ‘a sua pessoa, o seu ser vale alguma coisa’. Esse fato, por si só, já seria suficiente para promover-lhe o exercício de outras vertentes da cidadania, de forma a patrocinar uma mudança no sistema prisional.
Modernamente, tem-se apregoado o sentido ressocializador da condenação, como mecanismo de (re)integração do malfeitor ao meio social. Entretanto, para que essa diretriz do Direito Penal se concretize, mostra-se fundamental, como se viu, uma praxis que resgate valores do condenado, tanto como pessoa humana quanto como membro da sociedade em que vive.
Destarte, é de se concluir que se se pretende repensar o sistema punitivo no Brasil, acabando com a roda-vida das reincidências, deve-se assegurar aos condenados os seus direitos políticos, inserindo-os no espaço público, pois não se pode pretender acabar com a exclusão social excluindo-se. Nesse aspecto, como muito bem explicitado por Alessandro BARATTA, "toda técnica pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão. Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir".
Ademais, como asseverou Hannah ARENDT, os homens não nascem exatamente iguais, tornam-se iguais em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade resulta, então, da organização humana. Por isso, segundo suas palavras, "perder o acesso à esfera do público é perder o acesso à igualdade. Aquele que se vê destituído da cidadania, ao ver-se limitado à esfera do privado, fica privado de direitos", restando à mercê da benevolência dos outros.
Vivendo o homem em sociedade, "o primeiro direito humano que a polis, como um artefato humano, pode conceder, e do qual derivam todos os demais, é o direito à vida pública, que permite o comando da palavra e da ação", em busca de outros e novos direitos.
Aponta-se, finalmente, para o fato de que, sem os direitos de cidadania e, portanto, expulsos do cenário público, os condenados, limitados ao minúsculo espaço privado de suas celas, tornaram-se supérfluos para a sociedade, encontrando na rebelião a única forma de se fazerem ouvir e ver.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania : do direito aos direitos humanos. São Paulo : Ed. Acadêmica, 1993;
AZAMBUJA, Darcy. Teoria do Estado. 32. ed. São Paulo : Globo;
BARATTA, Alessandro. Trad. SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro : Revan, 1997;
BECCARIA, CESARE.. Trad. CRETELLA JR, J. e CRETELLA, Agnes. Dos delitos e das penas. São Paulo : RT, 2. ed. 1997;
BELOV, Graça. Voto - uma questão de cidadania. O direito de voto do presidiário. In: Revista Direitos Humanos da Bahia. Ano 1, n. 1, abril/1997, p. 28-34;
BOBBIO, Norberto. Trad. COUTINHO, Carlos Nelson. A era dos direitos. Rio de Janeiro : Campus, 1992;
_______________ MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, GianFranco. Dicionário de política - 11. ed. Brasília : UnB, 1998.
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. Rio de Janeiro : Forense. 1983.
________________. Do estado liberal ao estado social. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, 3. ed. 1972;
BRAGA, Hilda Soares. Sistemas eleitorais do Brasil (1821 - 1988). Brasília : Senado Federal, 1990;
CARVALHO, Pedro Armando Egydio. O ser humano preso, o modelo de cidadania plena. In: Revista de Direito Militar, n. 10, marco/abril, 1998, p. 8-11;
CINTRA JUNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. A suspensão dos direitos políticos em face dos princípios da individualização da pena e da proporcionalidade. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo : Revista dos Tribunais. Ano 4. n. 15, jul/set. 1996, p- 89-96;
CLÉVE, Clèmerson Merlin. O cidadão, a administração pública e a nova Constituição. In: Revista de Informação Legislativa, a. 27 n. 106, abr/jun. 1990. p. 91-98;
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19. ed. atual., São Paulo : Saraiva, 1995;
DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 3 DE MARÇO DE 1988. Brasília : Senado Federal, 1988;
FRAGOSO, Heleno. Direitos dos presos. Rio de Janeiro : Forense. 1980;
GOMES NETO, A. F. O direito eleitoral e a realidade democrática. Rio de Janeiro : José Kofino Editor, 1953;
GOMES, Orlando. Comentários à República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro : Forense. 1998;
JORNAL DO CONSELHO FEDERAL DA OAB n. 55, 1997;
_______________________________________ n. 60, 1998, p. 22;
KANT, Emmanuel.. Trad. HENKEL, Lourival de Queirós. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. São Paulo : Ediouro, 1991;
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos, um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo : Cia. das Letras, 1988;
MIRABETE, Júlio Fabbrini Mirabete. Execução Penal. Comentários à Lei n. 7.210, de 11.7.84, 8. ed. São Paulo : Atlas, 1997;
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV (arts. 113-150, § 1º). São Paulo : Saraiva, 1967;
MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo : Atlas, 1997;
NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Lineamentos de direito eleitoral. Porto Alegre : Síntese, 1996;
NIESS, Pedro Henrique Távora. Direitos políticos - condições de elegibilidade e inelegibilidade. São Paulo : Saraiva, 1994;
NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. Da perda e suspensão dos direitos políticos. In: Revista de Informação Legislativa. a. 35, n. 139 jul/set. 1998, p. 203-216;
QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito eleitoral. Goiânia : Editora Jurídica IEPC, 1998;
RIBEIRO, Fávila, Comentários à Constituição, p. 265;
_____________ Pressupostos constitucionais do direito eleitoral, no caminho da sociedade participativa. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris Editor, 1990;
ROUSSEAU, J. J.. Trad. DANESI, Antonio de Pádua. O contrato social. São Paulo : Martins Fontes, 1998;.
SANTANA, Jair Eduardo. Democracia e cidadania. O referendo como instrumento de participação política. Belo Horizonte : Del Rey, 1995;
SHECAIRA, Sérgio Salomão. CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Pena e Constituição. Aspectos relevantes para sua aplicação e execução. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1995;
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo : Malheiros, 15. ed. 1998;
VIEIRA, José Ribas. A cidadania, sua complexidade teórica e o direito. In: Revista de Informação Legislativa. Ano 34, n. 135 jul/set, 1997, p.219-223;
VIEIRA, Litsz. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro : 1997;
WOLKMER, Antonio Carlos. Direitos políticos, cidadania e a teoria das necessidades. In: Revista de Informação Legislativa. Ano 31, n. 122 mai./jul. 1994, p. 275-280