CAPÍTULO III
OS DIREITOS DOS CONDENADOS
O Estado Democrático tem como escopo o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais. Elenca como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, de acordo com o que preconizam Sérgio Salomão SHECAIRA e Alceu CORRÊA JÚNIOR:
[...] o homem deve ser a medida primeira para a tutela do Estado, alcançando ainda maior destaque no Direito Penal, onde o condenado será encarado como sujeito de direitos e deverá manter todos os seus direitos fundamentais que não forem lesados pela perda da liberdade, em caso de pena privativa de liberdade.
E, com propriedade, assinalam os autores que a pena é privativa de liberdade, e não privativa da dignidade, do respeito e de outros direitos inerentes à pessoa humana, acrescentando:
Ademais, é através da forma de punir que se verifica o avanço moral e espiritual de uma sociedade, não se admitindo, pois, em pleno limiar do séc. XX, qualquer castigo que fira a dignidade e a própria condição do homem, sujeito de direitos fundamentais invioláveis.
3.1 A ORIGEM DO DIREITO DE PUNIR
Como visto nos capítulos anteriores, os homens, vivendo primitivamente em estado de natureza, ao chegarem ao limite da força de que cada qual podia empregar para manter-se, formaram uma agregação. Contudo, como cada ser humano possui interesses particulares e paixões diferentes, a fim de manter unida e coesa essa agregação na busca da felicidade para todos, editaram-se leis, que nada mais são que "condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservá-la".
Cada um dos membros da sociedade, portanto, contratando com os demais, abriu mão de uma parcela de sua vontade particular, a fim de que pudesse se formar uma vontade geral, que representasse os interesses de todos.
Entretanto, como assevera BECCARIA, não bastava formar esse repositório da vontade geral. "Era mister defendê-lo das usurpações privadas de cada homem, em particular [...]. Faziam-se necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o despótico espírito de cada homem de submergir as leis da sociedade ao antigo caos".Em outras palavras, tornaram-se "necessárias convenções e leis para unir os direitos aos deveres e conduzir a justiça ao seu fim".Instituíram-se, portanto, as leis, e nasceu aí o direito de punir quem as violasse.
Mas o que são leis? Leis podem ser conceituadas como tudo o que o povo estatui sobre si mesmo, de forma geral e abstrata. Assim, "as leis não são, em verdade, senão as condições da associação civil. O povo submetido às leis deve ser o autor delas; somente aos que se associam compete regulamentar as condições da sociedade".
Se as leis são regras, normas que o povo dá a si mesmo para refrear seus instintos egoísticos e suas paixões particulares, tem-se que toda e qualquer lei deve ter por fundamento o interesse de todos, pois que a norma decorre da expressão da própria vontade geral. Deve ainda trazer em seu bojo a expressão da justiça, "porquanto ninguém é injusto para consigo mesmo".
Disso se infere que o conteúdo de toda e qualquer lei deve ter como limite a exata medida do que é imprescindível para a manutenção do vínculo social, da convivência harmônica; ultrapassado esse limite, a lei torna-se injusta e desnecessária.
Assim como a lei, também a pena para quem violou a norma de conduta social deve externar uma necessidade, uma razão de ser, e encontrar sua fronteira no próprio objeto que a lei violada pretendia preservar. Exemplificativamente, a punição imposta a quem tenha agredido um ser humano é, sem dúvida, necessária, porque, pelo pacto social, a todos deve ser garantida a integridade física. E se assim não fosse, a associação dos homens, o pacto social se esfacelaria, pois ressurgiria o direito de todos se agredirem mutuamente.
Todavia, a punição não pode nunca impor ao infrator um sofrimento maior do que aquele que causou à vítima, do contrário, quebrar-se-ia o pacto social, pelo qual cada indivíduo só coloca à disposição do todo-soberano o que for essencialmente necessário para a convivência harmônica. Restaria violado, assim, o princípio da proporcionalidade entre o delito e a pena.
Nesse sentido, BECCARIA enfatiza que "toda pena que não derive da absoluta necessidade é tirânica, proposição esta que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico". Da mesma forma, o castigo que causar maior sofrimento que o necessário para manter unidos os interesses particulares não é manifestação de justiça, mas de tirania, pois "a única e verdadeira medida do delito é o dano causado à nação".
A pena tem como finalidade moderar as paixões particulares, impedindo que o infrator cause novos danos aos seus concidadãos, e demover outros a agirem ilicitamente. Para tanto, "é, pois, necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicá-las, de tal modo que, conservadas as proposições, causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do réu".
Entretanto, como bem evidenciou BECCARIA, quando fez advertências sobre a proporcionalidade entre a pena e o delito cometido, a história da humanidade é pródiga em exemplos de aviltantes castigos impingidos aos infratores ou em punições que ultrapassam em muito o valor do objeto a ser protegido pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, assinala o autor que os homens,
[... ] só após haver passado entre si mil erros, nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade, e depois de um cansaço de sofrer os males até o extremo, dispõem-se eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpáveis verdades, as quais, por sua própria simplicidade, escapam à mentes mais vulgares, não habituadas a analisar os objetos, mas a receber-lhes todas as impressões, de uma só vez, mais por tradição que por exame.
O direito de punir advém, portanto, do consenso dos indivíduos que formam uma sociedade. Ao elaborarem as leis que eles próprios devem obedecer, os indivíduos conferem uns aos outros o direito de punir quem viole as normas assim estabelecidas. Mas, obviamente, ninguém vai prescrever a si mesmo uma lei que lhe imponha, ao mesmo tempo, um castigo pelo descumprimento de uma norma de convivência e a expulsão da própria sociedade.
Além de ser ilegítima, portanto, a pena de privação dos direitos políticos, aplicada indistintamente a toda e qualquer condenação, sem dúvida extrapola os limites dos danos causados pelo ato ilícito praticado. Na realidade, ocorre um bis in idem: o infrator é apenado duplamente pelo mesmo fato.
E esse excesso mostra-se injusto e descabido, tendo como finalidade, única e exclusivamente, manter uma prática de exclusão que vem se repetindo ao longo da história da humanidade.
3.2 AS PRÁTICAS PUNITIVAS NO TEMPO
Observando o desenvolvimento histórico dos sistemas punitivos em todos os tempos, verifica-se que o interesse do Estado em punir sempre variou de acordo com os interesses predominantes em cada época.
Assim, quando o corpo era o único bem que possuía o indivíduo, durante muito tempo, a humanidade assistiu e até se regozijou com a imposição da pena de tortura, do corpo supliciado, esquartejado, exposto vivo ou morto, como tão vivamente Michel FOUCAULT descreveu a punição de Damiens, condenado em 2 de março de 1757.
A punição era, portanto, um espetáculo público que glorificava a força e o poder do soberano, pois além de sua vítima, o criminoso atacara a lei, expressão da vontade do príncipe. E o príncipe jamais poderia admitir ter sua soberania atacada. Punia, então, exemplarmente quem ousasse fazê-lo, a fim de conservar seu próprio poder. Sua autoridade diante dos súditos, assim, tinha que ser constantemente revigorada.
Transportando-nos para a realidade da época, escreve Michel FOUCAULT que:
O direito de punir será então como um aspecto do direito que tem o soberano de guerrear seus inimigos [...]. O suplício tem então uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstruir a soberania lesada por um instante. [...] Se a reparação do dano privado ocasionado pelo delito deve ser bem proporcionada, se a sentença deve ser justa, a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida, mas do desequilíbrio e do excesso: deve haver, nessa liturgia da pena, uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade intrínseca.
Entretanto, como ainda observa o autor, o público que assistia a essas atrocidades, pouco a pouco, foi tendo a sensação de que o espetáculo público da punição igualava-se ou ultrapassava em selvageria o crime que se estava a punir, "fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos".
"Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o cruel prazer de punir. Vergonhoso, considerado da perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da qual ainda se espera que bendiga o céu e seus juízes por quem parece abandonada", o suplício começa a ser rejeitado.Por isso, o uso da roda e do chicote, a marca de ferro, o sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. A pena física, dessa forma, é substituída pelos trabalhos forçados, pela prisão, pela reclusão e pela interdição de direitos, cujo objetivo é privar o condenado de sua liberdade. Assim, "o castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais ‘elevado’".
Ainda de acordo com BECCARIA, mais adiante, com o desenvolvimento da economia, quando "os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-obra suplementar", adotou-se então a pena dos trabalhos forçados, que não deixa de ser uma pena física, só que o corpo, nesse caso, encontra-se em posição intermediária: "qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade, considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem".
Passada essa fase, revela o autor que com a Revolução Industrial, que exigia um mercado consumidor e, portanto mão de obra assalariada, abandonou-se a aplicação de trabalhos forçados como mecanismo de punição. Assim, quando, na esteira do movimento ideológico liberalista, o bem maior do indivíduo, aquela ‘prerrogativa’ indispensável para manter o domínio político passou a ser a liberdade, "o sistema punitivo adotou como pena a detenção e a reclusão com o fim corretivo."
Estava presente aí o disciplinamento do corpo, seu adestramento, objetivando "transformar as massas camponesas que, expulsas do campo, deviam ser educadas para a dura disciplina da fábrica".
Porém, como assinala FOUCAULT, a pura e simples privação de liberdade nunca foi suficientemente punitiva: sempre houve certos complementos punitivos referentes ao corpo, tais como "redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra".
Atualmente, com o surgimento de novas políticas criminais, poder-se-ia pensar que a punição não mais atinge o corpo do condenado. Ledo engano. Eliminou-se o suplício do corpo, a masmorra e a expiação física, mas fez-se surgir as celas infectas, úmidas, a superpopulação em que os presos são obrigados a fazer revezamento para dormir, ou até mesmo a se amarrarem nas grades com trapos, para conseguirem descansar, como freqüentemente noticiam os meios de comunicação. Isso sem falar nos abusos sexuais, nas doenças contagiosas, nas celas solitárias. A pura e simples privação da liberdade, ainda hoje, faz-se acompanhar de punições e sofrimentos corporais:
Da obra de FOUCAULT é possível depreender-se, então, que o objeto da pena sempre foi se amoldando às formas de sociedade: no início do século XVII, quando o único bem das pessoas era o seu corpo, esse era marcado, torturado e supliciado; quando as pessoas adquiriram a liberdade e a mão de obra era necessária, o sistema punitivo adotou os trabalhos forçados e o adestramento para o trabalho nas fábricas; quando o sistema industrial tornou supérflua a mão de obra dos condenados, passaram eles a ser enclausurados, vigiados, visando à sua docelização.
Dessa forma, é de se ver que é sintomática a punição do condenado com a suspensão de seus direitos políticos, justamente quando há o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
Precisamente no momento em que cresce em importância a prerrogativa de os indivíduos poderem participar dos negócios públicos, da tomada de decisões, da escolha das diretrizes econômicas, sociais e políticas; quando o bem maior do indivíduo, sua força motriz emancipatória, numa sociedade organizada com base em um sistema capitalista excludente, é o exercício da cidadania, o sistema punitivo, além de impor-lhe a pena da sentença, priva o infrator da lei também do direito de reivindicar, de ser ouvido, de ser tratado por seus concidadãos como um semelhante.
A exemplo do suplício à sua época, a suspensão dos direitos políticos revela sua função jurídico-política: afastar da esfera pública e consequentemente de qualquer instrumento reivindicatório aquele que ‘ousou violar a lei’. Potencializa-se, dessa maneira, a separação do delinqüente do corpo social: de uma forma, com o aprisionamento do ser humano, do sujeito privado, que permanece enclausurado entre muros, onde ninguém o vê nem o ouve e, portanto, nem se importa com ele; de outra, com o emudecimento do homem político, com a imobilização do cidadão, sujeito capaz de fazer valer seus direitos e de conquistar novos.
Pode-se concluir, decorrentemente, que à maneira como a roda estraçalhava o corpo e os ossos do criminoso, humilhando-o no espaço público dos espetáculos de tortura, a suspensão dos direitos políticos aniquila o cidadão, emudece-lhe a voz, cassa-lhe a palavra, imobiliza sua ação, transformando-o num ser sem valor, que só conta para fins de estatísticas criminais. Assim, deve-se concluir que o espetáculo público do suplício, que tinha por objetivo restaurar perante a comunidade a autoridade do príncipe lesada por um instante, fez-se substituir, modernamente, pela suspensão dos direitos políticos, exatamente com o propósito de revigorar, a cada instante, a ‘autoridade do poder soberano’, representado pelas classes dominantes, que se auto-intitula a única eticamente em condições de determinar os destinos da Nação.
Diante dessas considerações, entende-se que a suspensão dos direitos políticos tem justamente a função de marcar o condenado, de humilhá-lo e estigmatizá-lo, perante si próprio - fazendo-o assimilar sua condição de mero súdito - e também frente o restante da comunidade, que geralmente vê nele um indivíduo indigno e sem qualquer direito.
Contudo, fica a advertência de que, da mesma forma que os suplícios e as mutilações dos corpos nunca serviram para tornar melhores os homens, como bem assinalou BECCARIA em sua obra, também a privação dos condenados de seus direitos políticos não pode se prestar para transformá-los em melhores cidadãos. Somente ao exercitarem efetivamente a cidadania, considerando a si mesmos como sujeitos de direitos, é que os indivíduos tidos como delinqüentes poderão transformar-se em cidadãos e, assim, compreenderão o valor de respeitar os direitos de seus semelhantes.
Ademais, como bem firmou o Marquês de BECCARIA, quando rebateu a utilidade e a justiça da imposição da pena de morte, afirmando que a soma das liberdades particulares de cada um representado na vontade geral jamais outorgara ao homem o direito de matar outro homem, e que, do sacrifício da menor parcela da liberdade de cada um, também nunca poderá resultar o sacrifício do bem maior de todos - que é a vida -, também a renúncia da menor parcela de soberania de cada indivíduo em prol do pacto social não autoriza a revogação do bem maior daquele que subscreveu o contrato social, que é sua participação na vontade geral.
Se um determinado número de indivíduos livres e independentes pactua entre si certas regras de conduta, abrindo mão de alguns poucos interesses particulares, a fim de manter unido e coeso o grupo, visando sempre ao benefício de todos, disso resulta que a violação de qualquer dessas regras jamais poderá ter como conseqüência a expulsão do infrator do grupo, porque tal punição atingiria o propósito primeiro do pacto, o seu fundamento, que é a formação de uma unidade. Se tal ocorresse, quebrar-se-ia o vínculo entre aquele que assim foi punido e a unidade, e o grupo, conseqüentemente, não mais teria legitimidade para impor-lhe qualquer sanção.
3.3. REALIDADE CARCERÁRIA BRASILEIRA
Segundo levantamento divulgado pela Ordem dos Advogados do Brasil, existiam em 1997 quase 150 mil presos no Brasil. Além desses, há considerável número de pessoas condenadas que não cumprem pena restritiva de liberdade, pois ou foram beneficiadas pelo sursis ou cumprem pena alternativa.
Mas quem são essas pessoas que têm contra si todo o aparato penal?
A realidade brasileira mostra que, na sua quase totalidade, são jovens oriundos das camadas mais pobres da sociedade, já marginalizados socialmente, estereotipados, filhos de famílias desestruturadas e que não tiveram e não têm acesso à educação nem à formação profissional.
Essa estatística evidencia duas realidades: a primeira é a luta de classes, as desigualdades sociais, a má distribuição de renda, que faz com que cresça o número de pessoas sem acesso aos bens de consumo mínimos e que, portanto, se vêem obrigadas a atacar o patrimônio alheio para sobreviverem ou mesmo para demonstrarem sua indignação, sua revolta ante a miséria. De outro, mostra a concentração da atuação do aparelho repressor do Estado justamente nas áreas sociais já marginalizadas.
Assim, não é sem propósito que as ‘batidas policiais’ ocorrem sempre nos morros, nas favelas, nos bairros das periferias, onde residem as pessoas mais pobres. Será que nas áreas das mansões, nos bairros de classe média e alta, a delinqüência passa ao largo? Certamente que não, mas é que a sociedade, por conta da ideologia dominante, construiu estereótipos de que quem delinqüi são sempre os pobres, os mendigos, os miseráveis.
Nesse aspecto, adverte Alessandro BARATTA que o sistema penal, desde a tipificação dos delitos, até as técnicas de individualização da pena - que se vale de mecanismos tais como as circunstâncias atenuantes e/ou agravantes para aplicar ao réu menor ou maior pena - reflete "predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando maior ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados".
Assim, o direito tende a criminalizar com mais freqüência as condutas típicas da população pobre e miserável. E a construção do sistema penal, portanto, responderia à exigência de reproduzir as relações sociais de desigualdades, conservando o status quo existente, ao selecionar como condutas repreensíveis justamente aquelas mais comuns das camadas menos favorecidas da população, como os saques ao patrimônio alheio - os furtos, roubos, assaltos -, deixando à margem do alcance da lei, de outro lado, condutas próprias das camadas mais esclarecidas, tais como as falcatruas financeiras, a sonegação fiscal, os crimes de "colarinho branco", sempre de difícil apuração e, portanto, de punição.
Sem dúvida é muito mais fácil e corriqueiro ao sistema repressivo comprovar e punir o fato de um "favelado" ter furtado uma bicicleta, do que ‘apanhar’ um banqueiro que, valendo-se dos meandros do poder e do tráfico de influências, desviou do patrimônio público milhões de dólares, que repousam sãos e salvos em paraísos fiscais, por este mundo afora.
A solução do problema da criminalidade, deve passar, necessariamente, também por reformulação dos valores da sociedade. Por isso, como enfatiza a Profª Graça BELOV:
Estamos muito longe de poder resolver os conflitos sociais nos grandes centros urbanos, que apresentam hoje níveis de criminalidade violenta consideráveis. Acreditamos que conviveremos ainda, por muito tempo, com sistemas penais cujo último patamar é a prisão, o que vale dizer, a pena privativa de liberdade, embora saibamos que criminalidade não se resolve com justiça criminal ou com prisões.
O estado de miséria do povo tem sido alimentado e realimentado justamente para preservar o status quo das classes dominantes, tanto que, segundo BARATTA, já não se fala em reinserção ou reeducação do condenado para a vida social, pois com a ampliação do ‘exército de reserva’, com o crescimento da massa marginalizada e excluída socialmente, a condição em que vive o condenado dentro das prisões se transforma no status habitual das pessoas não garantidas, daquelas que não são sujeitos, mas apenas objetos do ‘novo pacto social’. .
Também quanto à função da pena, leciona o mestre italiano que há mais de dois séculos dividem-se as teorias. A premissa fundamental da pena é de que se constitui numa resposta à criminalidade, numa forma de impedi-la. Assim, há quem sustente que a pena deve ter função retributiva pelo dano causado; outros valorizam-lhe o caráter intimidativo, consubstanciando-se em uma prevenção geral contra a criminalidade. Mais recentemente, sobreleva-se da pena o seu caráter reeducativo.
No Brasil, entretanto, em que pese hodiernamente ninguém mais sustentar a função retributiva da pena, do simples castigo pelo delito cometido, da vingança pública, mas apregoar-se sua função ressocializadora, a condenação ainda deve marcar o delinqüente com um sinal negativo, não em seu corpo físico, mas em sua alma, sua psique, seu intelecto. Assim:
À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade [...].
O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.
Nunca é demais repetir que o sistema punitivo no Brasil em nada tem contribuído para a ressocialização do delinqüente. Ao contrário, nosso sistema prisional tem servido de escola da marginalidade, não apenas pelo convívio de presos dos mais diversos graus de periculosidade, mas também e principalmente pelo abandono em que vivem os condenados, relegados à própria sorte.
A prisão, assim, promove no condenado dois tipos de processos que, segundo BARATTA, são complementares: a desculturização do indivíduo para conviver em sociedade, pois dentro do cárcere tem ele reduzida sua vontade, sua auto-estima, seu senso de responsabilidade. Promove-se-lhe um distanciamento dos valores da sociedade. E, de outra parte, uma aculturação, onde o preso é obrigado a apreender as regras de convivência dentro da instituição, adotando comportamentos próprios dela, para assumir o papel de "bom preso", com atitudes de bom comportamento e conformismo, ou a se agregar a lideranças que dominam o ambiente carcerário pela violência, assumindo assim definitivamente o papel do criminoso.
A realidade do sistema punitivo brasileiro demonstra que a situação dos condenados, especialmente aqueles que se encontram encarcerados, é efetivamente desoladora. A par de liderarem a massa dos excluídos sociais, na qual são muito de perto seguidos pelos sem-terra, sem-teto, desempregados, pobres, pelas pessoas que não têm acesso à alimentação mínima, à escola, à saúde, à moradia, ao saneamento básico, os condenados vivenciam ainda uma dupla exclusão: fisicamente, estão afastados da sociedade, quando encarcerados, e politicamente, afastados da cidadania, do poder soberano.
"Vivendo como animais. Eles vivem enjaulados e amontoados em pequenos espaços úmidos e sujos. Esta é a realidade dos quase 150 mil presos brasileiros". Este é o título de matéria publicada no Jornal do Conselho Federal da OAB, que descortina a realidade dos nossos presídios:
O ambiente é úmido e escuro. Lá 64 pessoas amontoam-se em um espaço projetado para abrigar apenas 20. O endereço é a 26ª Delegacia Policial de Samambaia, cidade-satélite de Brasília [...], mas poderia ser qualquer uma das delegacias brasileiras. A superlotação da 26ª DP levou os presos a uma atitude drástica: ameaçaram matar um companheiro de cela por semana até que o governo local tomasse providência. [...] Essa é a realidade do Brasil, onde 148.760 presidiários - equivalente a um Maracanã lotado - vivem em condições subumanas, amontoados como animais em espaços exíguos e sujos, sujeitos a doenças e mortes. [...] São Paulo apresenta o quadro mais crítico do País, abrigando em média até quatro pessoas em um espaço físico reservado para uma. [...] O quadro mais dramático brasileiro é o da Prisão Feminina de Monte Mor, município da região de Campinas. Lá, cada detenta ocupa 45 centímetros de espaço físico. Por sua vez, o Pavilhão 8 da Casa de Detenção, também em São Paulo, abriga 110 presos amontoados em uma única cela de triagem. Lá, convivem lado a lado assassinos, seqüestradores, traficantes, com presos que cometeram pequenos delitos contra o patrimônio.
O encarceramento, nessas condições, não tem qualquer caráter educativo, pois ao invés de promover o auto-respeito do condenado, de propiciar-lhe uma convivência com os outros detentos num ambiente de cordialidade e de mútuo respeito, humilha-o, degrada-o, obrigando-o a permanecer num espaço intimidatório, onde a força do mais forte é que faz a lei.
E essa prática de humilhação não se circunscreve apenas à pessoa do detento, mas se dá também em relação a seus familiares. Quem já teve a infelicidade de ver um familiar ou algum conhecido encarcerado sabe muito bem como são feitas as revistas das esposas, das namoradas e até das irmãs e mães dos presos. São despidas e revistadas inclusive nas partes internas de seu corpo - órgãos genitais -, para ver se não estão transportando para dentro da penitenciária alguma espécie de droga.
A fim de que possam reivindicar mudanças nas políticas públicas que alterem essa dura realidade, faz-se necessário então que os condenados disponham de um poder de ação no espaço público, por meio do exercício da cidadania.
3.4 O CIDADÃO CONDENADO
Embora com as limitações que lhe sejam impostas pela sentença, tais como encarceramento, prestação de serviços à comunidade, pagamento de multa, dentre outras, por certo ninguém haverá de sustentar que o condenado não subsiste como sujeito de direitos. Ele está inserido no processo social de construção de direitos, afetando e sendo afetado pelas opções que o mundo livre faz.
Exatamente por isso, há quem sustente que a relação jurídica de subordinação do condenado ao Estado é ainda mais forte que a do cidadão livre, tanto que se submete ao império da lei e do Direito, curvando-se ao julgamento pelos seus pares, seja por intermédio do Estado-Juiz ou do Júri Popular, e sujeitando-se à sentença que lhe é imposta. É partícipe, portanto, de um Estado Democrático de Direito, revelando sua sujeição à punição do Estado precisamente uma das conseqüências de sua condição de cidadão: a de subordinação à lei, sob pena de sanções.
É precisamente fundado nesse aspecto que Pedro Armando Egydio de CARVALHO, em artigo publicado na Revista de Direito Militar, revela que o ser humano preso, em verdade, reflete o "modelo de cidadania plena".
Escreve o autor:
À primeira vista, o título do artigo configura um absurdo. Quem cometeu um crime e, por isso, está metido a ferros, aparece ao nosso olhar como o avesso do cidadão, do homem livre e honesto; ainda que muitos direitos sejam reconhecidos ao preso, por força de leis [...], a perda da liberdade ambulatória e o lançamento de seu nome no livro dos culpados, convenhamos, tornam-no, mercê de uma interpretação benigna, o último dos cidadãos, jamais o modelo ideal deles.
E prossegue o autor, mais adiante:
O homem preso não é um delinqüente. Por causa de um delito, é certo, veio a ser encarcerado. Mas, agora, sob a dura mão da execução penal, é um sujeito de direitos e deveres, todos vigentes no espaço físico da pena e no tempo de sua duração. Portanto, no instante mesmo em que o criminoso é detido e algemado, perde sua condição de facínora: o homem ressurge.
O condenado, encarcerado ou não, tem um papel social, e como tal se relaciona com os demais segmentos da sociedade. Tem, portanto, o direito e o dever de reivindicar seu espaço civil e político, até como forma de obter das políticas públicas a devida atenção para os cruciais problemas do sistema punitivo nacional. A cidadania, como já se disse, não apenas é um meio para o respeito aos demais direitos do ser humano, mas fixa-se também como o princípio ensejador da conquista de novos direitos. A suspensão dos direitos políticos do condenado, assim, além de vulnerar o princípio constitucional da soberania popular, caracteriza-se como a violação de um direito fundamental da pessoa humana.
Nesse aspecto, oportuna é a reflexão de Celso LAFER sobre o pensamento de Hannah ARENDT:
[...] os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades acidentais - o seu estatuto político - vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante".
[....]
De fato, o processo de asserção dos direitos humanos, enquanto invenção para a convivência coletiva, exige espaço público, a que só se tem acesso por meio da cidadania. Por isso, como apontou a Suprema Corte dos EUA, no mundo contemporâneo destituir alguém de sua cidadania é tendencialmente expulsá-lo do mundo, tornando-o supérfluo e descartável [....].
Esse, aliás, tem sido o comportamento de nossa sociedade, que vê no condenado apenas a figura do marginal, do delinqüente que violou normas, no mais das vezes injustas, já que nosso ordenamento jurídico privilegia o patrimônio em detrimento do ser humano. Os condenados, especialmente aqueles que se encontram encarcerados, amontoados e esquecidos em nossos presídios, têm tido acesso a um único instrumento de reivindicação, quando as condições de convivência os fazem extrapolar qualquer senso de racionalidade: é a rebelião, cujas conseqüências desastrosas é de todos sabida.
Os massacres, as torturas, a desconsideração total do ser humano aprisionado tem sido a rotina dos presídios, cadeias públicas ou casas de detenção em nosso País. A sociedade livre, anestesiada, nem mais se choca com esses acontecimentos; passa ao largo deles, incólume, como quem assiste a um filme na telinha da tevê.
Desviando-se o enfoque agora para a questão da justiça da pena, é de se enfatizar que, como fixou definitivamente Cesare BECCARIA, a pena só é justa quando necessária. Assim, de acordo com o que já se assentou, todas as penas que ultrapassem a necessidade de conservar o vínculo social são injustas pela própria natureza.
Ademais, a Constituição da República de 1988, ao inaugurar uma nova ordem no Direito pátrio, fez emergir discussões sobre o que se deve punir, a quem se deve punir e como se deve aplicar essa punição.
Por isso, estão expressamente previstos no texto constitucional os princípios da legalidade, da pessoalidade, da individualização e da humanização das penas. Além desses, é possível inferir-se outros princípios implícitos, tais como o da necessidade, da proporcionalidade e da função ressocializadora da sanção penal.
Nesse ponto, dois desses princípios interessam mais de perto: o da individualização da pena e o da necessidade. A individualização da pena consiste em mensurar a pena de acordo com o caso concreto. Circunstâncias distintas entre os transgressores podem determinar punições diferentes.
O inciso LXVI do art. 5º do Texto Constitucional está assim redigido:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
[....]
e) suspensão ou interdição de direitos.
É certo, pois, que a aplicação da sanção restritiva do direito de voto a todo e qualquer condenado, sem a devida individualização e motivação no plano judicial, vulnera postulado básico de justiça.
Também quanto à finalidade ou necessidade da sanção penal, faz-se mister transcrever lição de Graça BELOV acerca das novas conquistas no campo da cidadania e da ética:
Também São Tomás de Aquino, em sua obra intitulada ‘Suma Teológica’ afirma, claramente, que o legislador da lei humana não pode castigar tudo que moralmente está proibido [...] Modernamente, com a influência da Sociologia do Direito, a maneira de conceber o fim e a função do direito Penal se tem generalizado na expressão ‘função social da lei’.
Perguntar-se-ia, então, que função social exerceria a lei que impede o condenado de ser cidadão? Nenhuma. E arremata a autora, afirmando que toda essa situação "justifica a luta para tornar o referido sistema" (punitivo) "menos perverso".
E a luta para tornar o sistema punitivo no Brasil menos perverso, fazendo com que os já excluídos socialmente não sejam mais uma vez segregados, passa, necessariamente, pela efetiva valorização da pessoa humana, a qual, num sistema democrático, decorre do efetivo exercício da cidadania, ensejando o respeito à igualdade entre os agentes sociais.
A Constituição Federal de 1988 propugna pelo Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF/88).
Demais disso, o art. 3º da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, (Lei de Execução Penal), estabelece:
Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.
Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.
Reafirma-se, assim, que a limitação ou a privação de outros direitos do condenado, que não os impostos expressamente na sentença, viola tanto o princípio da individualização da pena, quanto o sentido da proporcionalidade.
No mesmo enfoque, preconiza Dyrceu Aguiar Dias CINTRA JÚNIOR que:
Sendo o direito de votar e ser votado uma das mais caras expressões da cidadania, não se pode entender que o cidadão o tenha suspenso, sempre que condenado criminalmente - ainda que beneficiado com a suspensão condicional da pena ou punido com multa - experimentando, por força do artigo 15, III, da Constituição da República, outra pena. Isto significaria impor a todos, igualmente, uma sanção que pode, dependendo do caso, ter efeitos mais severos que a cominada na legislação penal, que é a própria do delito.
E acrescenta o autor:
A já referida sensação de injustiça em aplicar a suspensão de direitos políticos tanto a um grave violador da lei penal condenado a cumprir efetivamente a pena em regime fechado quanto a alguém que cometa, por exemplo, uma lesão corporal, e receba pena branda, com sursis, tem uma razão de ordem constitucional.
É que tal posicionamento implica, sob a ótica do direito punitivo do Estado, considerar a suspensão de direitos políticos uma outra pena, por mais que se queira dar-lhe a feição de mera decorrência da condenação.
E a interpretação mais severa e abrangente do preceito em exame [...] produz um grave descompasso pela quebra do princípio da individualização da pena (art. 5º, inc. XLVI, da Constituição Federal), que orienta não apenas o legislador, mas, também, o aplicador da lei penal.
[...]
Abre-se, por outrossim, caminho para o rompimento com o princípio da proporcionalidade, pelo qual a parte especial do Código Penal e as leis extravagantes que definem tipos penais devem ser encaradas como um sistema de tipos e penas que se relacionam uns com os outros.
Na mesma senda vai o ensinamento de Júlio Fabbrini MIRABETE, que, ao lembrar que algumas legislações modernas regulam o exercício do direito político aos presos e internados, entre elas as da França, Itália, Suécia, Alemanha e Espanha, afirma, textualmente:
O condenado conserva todos os direitos reconhecidos aos cidadãos pelas normas jurídicas vigentes, com exceção, naturalmente, daqueles cuja privação ou limitação constituem precisamente o conteúdo da pena imposta.
Heleno FRAGOSO, a seu turno, também vê na suspensão dos direitos políticos do condenado punição infundada, servindo para estigmatizá-lo e para marcar ainda mais sua separação do mundo livre.
Os argumentos que se tem usado para fundamentar a suspensão dos direitos do condenado são de ordem ética, pois que o criminoso seria indigno de participar dos negócios públicos.
Fávila RIBEIRO, nesse sentido, assevera que:
A linguagem constitucional é fiadora de uma atitude ética, escoimando temporariamente da vida pública todo aquele que se não tenha revelado ajustado a uma vida lícita, descambando para o campo da criminalidade, enquanto não quitar-se com a sociedade pelo malefício que lhe infringiu.
Também Pedro Henrique Távora NIESS, em sua obra Direitos Políticos - Condições de Elegibilidade e Inelegibilidade, afirma ser tal sanção uma "conseqüência ética, inafastável da condenação".
Por isso, como se vê, os condenados no Brasil têm sofrido duplo julgamento: um jurídico, com base no delito que cometeram, do tipo penal que infringiram, merecendo a imposição da pena prevista na norma penal; e outro, moral, ético, pois o que se alega para impedi-los de votar é que não teriam dignidade suficiente para participar dos negócios da cidade.
Tal discriminação moral e ética, entretanto, como já visto neste estudo, não tem embasamento aceitável, pois toda pessoa tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesma, na expressão kantiana:
O homem [...] existe como fim em si mesmo, não só como meio para qualquer uso desta ou daquela vontade; em todas as suas ações deve, não só nas dirigidas a si mesmo, como também nas dirigidas aos demais seres racionais, ser considerado sempre ao mesmo tempo como fim.
A norma que, com base em argumentos puramente discriminatórios - sejam eles de ordem econômica (quando a prática era voto censitário); cultural (quando se adotou o voto capacitário); ou moral (quando se argumenta que o condenado é indigno de participar dos negócios públicos) - impede o exercício da cidadania deixa de atender aos princípios da Razão e da Democracia.
Como evidenciado pelo Juiz WARREN, da Suprema Corte Americana, no caso Trop versus Dulles, "a cidadania não é uma licença que expira com a má conduta [...]. A cidadania não se perde a cada vez que um dever de cidadania é esquivado. E a privação da cidadania não é uma arma que o governo pode usar para expressar seu descontentamento com a conduta do cidadão, por mais repreensível que esta conduta possa ser".
De mais a mais, como bem salientado por Alessandro BARATTA, já CARRARA fizera distinção entre a consideração jurídica do delito e a consideração ética do indivíduo.Isso significa que os delitos devem ser punidos levando-se em consideração o dano causado, não a moral, a ética do agente.
3.5 O EXERCÍCIO DO VOTO POR PARTE DO CONDENADO
A garantia do exercício de voto aos condenados, passa, necessariamente, por uma tomada de postura da sociedade civil, especialmente por parte dos Conselhos Penitenciários. Senão vejamos.
À Justiça Eleitoral cabe instalar seções eleitores onde existam, pelo menos, 50 (cinqüenta) eleitores aptos a votar, à medida que forem sendo deferidos os pedidos de inscrição ou de transferência (art. 117 do Código Eleitoral).
Também prevê o Código Eleitoral, em seu art. 136, que deverão ser instaladas Seções nas vilas e povoados, assim como nos estabelecimentos de internação coletiva, inclusive para cegos, e nos leprosários onde haja, pelos menos 50 (cinqüenta) eleitores.
Há, pois, determinação expressa no sentido de que a Justiça Eleitoral instale Mesas Receptoras de Votos nos presídios. Apesar disso, a prática tem mostrado exatamente o oposto. É preciso, pois, que a sociedade civil e os Conselhos Penitenciários passem a atuar mais decisivamente, reivindicando à Justiça Eleitoral o comparecimento de preparadores eleitorais nos presídios ou casas de detenção - antes da data prevista para o fechamento do Cadastro Nacional de Eleitores, que ocorre sempre 150 (cento e cinqüenta) dias antes de cada eleição -, a fim de procederem ao alistamento ou à transferência da inscrição eleitoral daqueles que se encontrem reclusos.
Esse tipo de providência, aliás, de há muito deveria estar sendo tomada, a fim de serem colhidos os votos dos detentos que ainda não têm contra si qualquer condenação criminal transitada em julgado, pois o exercício do voto desses cidadãos constitui direito líquido e certo, que deve ser assegurado inclusive via mandado de segurança.
Aliás, nesse sentido, Fávila RIBEIRO, ao tratar do alistamento eleitoral, comenta que os presos que aguardam julgamento ou trânsito em julgado da sentença, à luz da Constituição Federal, têm pleno direito ao exercício do voto:
O impedimento deles é circunstancial, de fato. Eles não estão impedidos, na acepção jurídica do termo, mas impossibilitados, na acepção fática, tanto quanto um cidadão comum, fora de seu domicílio eleitoral [...]. Deve-se ter em mente que tal restrição fática pode ser contornada assegurando-se aos presos, nessa condição, o exercício do voto, particularmente nas eleições gerais e presidenciais, com a providência da instalação de seção especial nos estabelecimentos correicionais.
Em relação a esse aspecto, portanto, tem havido expressa violação de norma constitucional por parte da Justiça Eleitoral, ao não propiciar as condições materiais para o exercício do direito de votar aos presos provisórios ou temporários - enfim daqueles que ainda não têm contra si condenação criminal transitada em julgado. E também, pelo menos com base nos estudos até agora empreendidos nesta monografia, em relação aos condenados com sentença já transitada em julgado.
Os demais condenados - aqueles cujo cumprimento da pena não lhes tolhe completamente a liberdade de ir e vir, quais sejam, os beneficiados com sursis, os que cumprem pena restritiva de liberdade em regime aberto ou semi-aberto, os que foram condenados à pena de multa, de prestação de serviços à comunidade ou de trabalhos alternativos - devem participar das eleições, comparecendo nas Seções Eleitorais em que se inscreverem, votando junto com o restante da população.
Desse modo, Orlando SOARES, advogando a idéia de que, ante a ausência de qualquer norma legal pertinente à suspensão de direitos políticos, qualquer medida restritiva ao exercício dos direitos de cidadania que implique o cerceamento do direito de votar e ser votado constituiu uma abusiva violação do princípio da reserva legal, assim se manifesta:
Em outras palavras, a perda do status libertatis, no caso, não implica a suspensão do direito-dever de voto, bastando que a autoridade competente providencie a colocação de urna nos estabelecimentos penais, para efeito da coleta de cédulas eleitorais, até porque o voto é obrigatório (art. 14, § 1º, I, da Lei Magna), constituindo manifestação de civismo.
De resto, o exercício desse direito-dever de votar se insere, em princípio, nas medidas reeducativas e nas políticas de tratamento do delinqüente, preconizadas pela Criminologia e pela Política Criminal [...].
De se concluir, então, que existem mecanismos para que a Justiça Eleitoral promova o efetivo exercício do direito de voto por parte do condenado. Ainda mais atualmente, com a implementação da votação eletrônica, não se observa inconveniente algum em instalar-se uma Mesa Receptora de Votos nos presídios, desde que tomadas as devidas cautelas com relação à segurança dos mesários, que muito bem poderiam ser nomeados dentre os familiares dos presos e/ou funcionários da instituição.
Aliás, nesse aspecto, compulsando a jurisprudência eleitoral acerca do assunto, constatou-se a existência de apenas dois julgados, um do Mato Grosso e outro do Distrito Federal, em que houve solicitação à Corte Superior Eleitoral no sentido da instalação de Mesas Receptoras de Voto em presídios, penitenciárias e delegacias de polícia, a fim de que os detentos provisórios pudessem votar. Tais solicitações, entretanto, foram indeferidas pela extemporaneidade do pedido. Importantíssima, assim, é a chamada de atenção das autoridades penitenciárias e mesmo dos membros dos Conselhos Penitenciários, a fim de que observem os prazos do calendário eleitoral, buscando com isso resguardar os direitos dos presos.