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A Constituição Federal e o Tribunal Penal Internacional: a compatibilidade do ordenamento jurídico brasileiro com o Estatuto de Roma

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4. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

O Estatuto de Roma, quando da sua ratificação pelo Brasil em 2002, enfrentou a oposição de juristas e doutrinadores brasileiros pelas possíveis incompatibilidades que ele teria com a Constituição do país.

As divergências residem em diversos pontos e podemos citar o fato de o Estatuto prever: o Instituto da Entrega, sendo este o objeto de maior relevância do presente estudo, com a vedação por parte da Constituição da República Federativa do Brasil em seu artigo 5º, inciso LI de extraditar brasileiro nato; a pena de prisão perpétua sendo que a CF no mesmo artigo, em seu inciso XLVII, b, condena penas de caráter perpétuo; a impossibilidade de aplicar imunidades e prerrogativas de foro ao passo que a CF institui estas a diversas autoridades; a possibilidade de um nacional que já foi julgado no Brasil ser julgado novamente pelo TPI ou uma sentença proferida aqui em último grau ser revisada pela corte do TPI, o que teoricamente vai contra a CF que em seu artigo 5º, inciso XXXVI ressalta o respeito à coisa julgada.

Outras questões foram levantadas contra a ratificação do Estatuto pelo Brasil. Dentre elas iremos refletir também a questão da Reserva Legal que dita o princípio de não haver pena ou crime sem prévia cominação legal e que, segundo doutrinadores e juristas, seria desrespeitada pela adesão do Brasil ao TPI. Outro ponto é o fato de o artigo 105 da CF direcionar ao Superior Tribunal de Justiça a competência para a homologação das sentenças estrangeiras em oposição à qualidade do TPI de obter competência internacional34.

Os crimes tipificados no Estatuto de Roma são tidos como imprescritíveis em seu artigo 29 e este é outro ponto de possível contraposição entre ele e a constituição brasileira. Segundo opositores, os crimes aceitos como imprescritíveis pelo Brasil já estão previstos também no artigo 5º da CF, sendo eles o racismo e a ação de grupos civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado

Democrático. O argumento deles é que não poderia o Estatuto ampliar o rol de crimes com a qualidade da imprescritibilidade.

4.1. O Instituto da Entrega e a Vedação à Extradição

Dando início às possíveis incompatibilidades do Estatuto de Roma com a Constituição Federal brasileira, vamos resumidamente expor o presente ponto que será objeto de amplo debate posteriormente.

O Instituto da Entrega é o dever de o Brasil efetivamente entregar ao TPI, como Estado-membro e colaborador, qualquer indivíduo que esteja dentro de seu território nacional para ser julgado pela corte internacional. O embate se dá a medida que a Constituição do nosso país proíbe a extradição de brasileiros natos, assim como a extradição de estrangeiro julgado ou acusado de crime político ou de opinião.

No Estatuto de Roma, O Instituto está previsto no artigo 89 e estudaremos mais a frente a admissibilidade ou não de o Brasil apelar à inconstitucionalidade da norma, sendo ele um ratificador do tratado.

4.2. A Pena de Prisão Perpétua

A pena de prisão perpétua é aceita pelo Estatuto de Roma em seu artigo 77 e, em uma abordagem rápida, pode ser tida como incompatível com a constituição brasileira que proíbe penas de caráter perpétuo.

Mas um estudo mais detalhado sobre o tema há de ser considerado. Em uma primeira abordagem faz-se mister expor que a pena de prisão perpétua prevista no Estatuto há de ser aplicada quando a gravidade do crime foi em grau bastante relevante ou as condições pessoais do condenado o justificarem, ou seja, ela será exceção35. É o que dita o artigo 77:

Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5º do presente Estatuto uma das seguintes penas:

b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem, (...)

Ademais, a Pena de Prisão Perpétua deve ser revisada pelo TPI após 25 anos do cumprimento da pena e da revisão poderá resultar diminuição do seu tempo. É o que dita o artigo 110 do Estatuto. Os requisitos do artigo 110 determinam que a pena poderá ser reduzida se constatar a presença de determinadas condições. As condições são as seguintes:

  1. A pessoa tiver manifestado, desde o início e de forma contínua, a sua vontade em cooperar com o Tribunal no inquérito e no procedimento;

  2. A pessoa tiver, voluntariamente, facilitado a execução das decisões e despachos do Tribunal em outros casos, nomeadamente ajudando-o a localizar bens sobre os quais recaíam decisões de perda, de multa ou de reparação que poderão ser usados em benefício das vítimas; ou

  3. Outros fatores que conduzam a uma clara e significativa alteração das circunstâncias suficiente para justificar a redução da pena, conforme previsto no Regulamento Processual.

Desse modo, podemos observar que a Pena de Prisão Perpétua no TPI será aplicada somente nos casos considerados mais graves e poderá, inclusive, ser revista.

Outro pondo importante sobre o assunto é o fato de a constituição brasileira proibir penas de caráter perpétuo, mas ter casos no STF de deferimento de extradição para países que aplicam tal pena. O que podemos observar é que não faz sentido um entendimento nacional no sentido de que não é possível entregar um indivíduo para ser julgada no TPI tendo este indivíduo a possibilidade de sofrer pena que a constituição brasileira veda, sendo o Supremo já praticante de tal conduta no Instituto da Extradição36.

O entendimento do STF sobre o assunto é que a lei penal brasileira tem aplicação interna e ela não pode ser imposta a países estrangeiros ou órgãos de aplicação de normas do Direito Internacional37.

Um argumento importante para rechaçar qualquer oposição ao Estatuto do TPI dentro do ordenamento jurídico brasileiro é o fato de que a negação daquele traria algo que a comunidade internacional não deseja: a impunidade de indivíduos que cometem os crimes mais atrozes.

O TPI zela pela manutenção da ordem internacional, seus esforços são no sentido de que prevaleçam os Direitos Humanos em detrimento de ações que subtraiam ou diminuam esses direitos. Não se pode, então, com fundamento em antinomias nos sistemas jurídicos nacionais, impedir a atuação do TPI, pois seu âmbito de tutela é bem mais abrangente, visando a garantia de direitos e da ordem internacional38.

4.3. As Imunidades e Prerrogativas de Foro

As Imunidades e Prerrogativas de Foro têm previsão na CF em relação a várias autoridades. O presidente da república, por exemplo, será julgado pelo Supremo quando cometer crimes comuns ou pelo Senado por crimes de responsabilidade. Sabemos, porém, que a maioria dos crimes previstos no artigo 5º do Estatuto de Roma, quando cometidos, o são por indivíduos que possuem prerrogativas de foro e imunidades garantidas nas constituições de seu país.

Com o intuito de impedir que esses agentes criminosos se fizessem valer de tais prerrogativas para permanecerem impunes, o Estatuto de Roma previu em seu artigo 27 que ele seria aplicável a todas as pessoas, desconsiderando distinções baseadas na qualidade de oficial.

Dessa forma, o Estatuto afastou qualquer possibilidade de não entrega do indivíduo para ser julgado pelo TPI com fundamento em sua imunidade ou prerrogativa de foro. Isso se faz bastante claro no parágrafo 2º do artigo 27 que expõe o fato de que as imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade de oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre a pessoa.

O que o artigo 27 quer referenciar ao proferir a sentença “nos termos do direito interno ou internacional” é que existem imunidades internacionais ratificadas em tratados. É exemplo disso as imunidades de embaixadores que têm total imunidade penal nos locais em que exercem sua função. O que o Estatuto dita é que também essas normas de imunidade na seara internacional não poderão ser arguidas com o intuito de manter impunes tais agentes se praticarem crimes de competência do TPI39.

4.4. Reserva Legal

O Princípio da Reserva Legal dita o postulado nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege. De acordo com referido Princípio, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal e ele está consagrado no inciso XXXIX do artigo 5º da CF.

A possível incompatibilidade do Princípio da Reserva Legal consagrado na constituição com o Estatuto de Roma é até mais branda que as demais, como também de fácil reflexão. Como o TPI tem jurisdição permanente e um Estatuto previamente formulado, como já se tornou evidente em vários pontos ressaltados no presente estudo, não há que se falar em não previsão legal, pois os crimes já se encontram tipificados de forma que existem imparcialidade e legalidade na tipificação dos crimes e cominação das penas40.

4.5. A Possível Ofensa à Coisa Julgada

A Coisa Julgada é de extrema relevância em nosso ordenamento jurídico e tem previsão no artigo 5º da CF que diz que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

A Coisa Julgada é a impossibilidade de reforma em uma decisão judicial que já tenha transitado em julgado, ou seja, sem condições de mais recurso ordinário ou extraordinário, de acordo com o artigo 467 do Código de Processo Civil.

De acordo com Mazzuoli, a discussão está centrada em dois pontos: o primeiro é o fato de um indivíduo que já tenha sido julgado aqui no Brasil ser submetido novamente à jurisdição do TPI; o segundo é a possibilidade de o TPI reexaminar sentenças prolatadas e já transitadas em julgado aqui no Brasil41.

Referente ao primeiro ponto, Mazzuoli42 nos remete ao artigo 20 do Estatuto de Roma para falar da qualidade da complementariedade do TPI, portanto, se uma pessoa foi julgada de forma justa, respeitando os princípios decorrentes do Devido Processo Legal e teve uma pena igualmente justa, ela não será submetida novamente à jurisdição do TPI. Mas ainda de acordo com o artigo 20, tal não acontecerá se o processo: tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.

Dessa forma, atenta-se para o fato de que a intenção do TPI não é ferir normas de direito consagradas nas constituições internas dos Estados-membros, mas sim não permitir que os países invoquem as invoquem com o intuito de manter afastada a jurisdição do TPI e não punir os agentes criminosos.

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No segundo ponto, Mazzuoli afirma que em relação à possibilidade de reexame do TPI, da mesma forma que o Brasil aceita a Pena de Prisão Perpétua imposta pelo Estatuto, deveria aceitar a questão do reexame43. Esse ponto é bastante preocupante, pois se levarmos em consideração a soberania do Estado brasileiro, devemos considerar o reexame como legítimo apenas em casos em que o Estado tenha sido omisso ou insuficiente em sua obrigação de julgar e punir ou agido com o intuito de fraudar a competência do TPI.

4.6. Competência do STJ para Homologar Sentença Estrangeira e sua Incompatibilidade com o TPI

Seremos bastante breve nesse ponto, pois o artigo 105 da constituição brasileira atribui ao STJ a competência para homologar sentença estrangeira e o TPI não tem essa qualidade de estrangeiro. A qualidade dele é inconfundivelmente de órgão internacional44.

Ademais, como a constituição em seu artigo 5º, parágrafo 4º dita que o Brasil se submeterá à jurisdição do TPI, não há que se falar em homologação de suas sentenças em nosso país. O Brasil deve aceitar as decisões do Tribunal, pois colaborou com sua criação e ratificou o tratado45.

4.7. Crimes Imprescritíveis

Quanto à imprescritibilidade, a constituição brasileira designa como tais os crimes de racismo e ação civil de grupos armados e o TPI prevê que todos os crimes previstos em seu Estatuto são imprescritíveis.

Para rebater tal incompatibilidade temos o entendimento de que o Estatuto de Roma é norma supralegal e tem legitimidade para ampliar o rol de crimes imprescritíveis sem ofender a nossa constituição46.

Em um apanhado geral, podemos dizer que a constituição do Estado brasileiro é compatível com o Estatuto de Roma. Isso podemos verificar com os próprios princípios constantes na carta magna brasileira que ditam a submissão do Brasil ao TPI, o respeito aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos. Enfim, não há que se falar em incompatibilidades, uma vez que o Estatuto de Roma tem como um dos princípios norteadores a Dignidade da Pessoa Humana e este também é consagrado em nossa constituição.


5. O INSTITUTO DA ENTREGA DE NACIONAIS NO TRATADO DE ROMA

O Instituto da Entrega está previsto no Estatuto de Roma no artigo 89 e a ordem expressa neste artigo é concernente à obrigação do Estado de entregar qualquer pessoa em seu território que esteja sendo processada pelo TPI. A controvérsia discutida no presente estudo reside exatamente em tal ponto, pois seria a entrega de qualquer indivíduo, inclusive de brasileiro nato.

A constituição do Brasil proíbe a extradição de brasileiro nato, então com o objetivo de esclarecer todos os entendimentos sobre o assunto, vamos, primeiramente denominar o que é o Instituto da Entrega.

O Instituto da Entrega é, como já dissemos, a obrigação dos Estados em entregar os indivíduos para serem processados e julgados pelo TPI, é o que dita o artigo 89 do Estatuto que em sua literalidade diz que o Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa a qualquer Estado em cujo território essa pessoa possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa.

O Estatuto de Roma, já prevendo discussões internas nos Estados sobre a validade de tal Instituto, levando-se em conta que constituições de um número considerável de países vedam a extradição de natos, define o que entende por Entrega e Extradição no seu artigo 102. O Estatuto deixa evidente que a Entrega é feita por um Estado ao TPI, que é órgão internacional e é realizada nos termos do próprio diploma legal. Já a Extradição é a entrega de um Estado a outro Estado com base em tratados ou convenções realizadas entre estes Estados ou com base no direito interno47.

Observamos, então, que a Entrega não é de um Estado a outro, ou seja, não é realizada a outra jurisdição estrangeira. O TPI não é jurisdição estrangeira, ele é um organismo internacional que foi criado com a participação ativa de seus Estados-membros e visa a prevenção e repressão dos Direitos Humanos na seara internacional48.

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Sobre o autor
Charles Reginaldo Guimarães Oliveira

Sou estudante de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Charles Reginaldo Guimarães. A Constituição Federal e o Tribunal Penal Internacional: a compatibilidade do ordenamento jurídico brasileiro com o Estatuto de Roma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5206, 2 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53922. Acesso em: 5 nov. 2024.

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