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A Constituição Federal e o Tribunal Penal Internacional: a compatibilidade do ordenamento jurídico brasileiro com o Estatuto de Roma

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6. A EXTRADIÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

A Extradição, como já dito, é a entrega de indivíduos de um Estado a outro Estado com base em tratados, convenções ou no direito interno. Este Instituto está previsto em nossa constituição no artigo 5º que proíbe a extradição de brasileiro nato. De acordo com a nossa lei maior, os únicos a serem extraditados são os brasileiros naturalizados que cometerem crimes comuns antes da naturalização ou serem processados por tráfico ilícito de entorpecentes antes ou depois da naturalização. Por aditamento também nos convém falar que a nossa carta magna proíbe a extradição também em casos de crimes políticos ou de opinião, o que ela faz com base em seu artigo 4º, X, que prevê, entre um dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil, a concessão de asilo político.

No Estado brasileiro, a Extradição se dá através de um pedido diplomático do governo do país requerente ao governo brasileiro. No Instituto há a participação do judiciário, que se fará presente através do Supremo Tribunal Federal. O pedido de Extradição será submetido ao Supremo. Se este indeferir, o presidente fica vinculado a tal posicionamento e não pode extraditar, mas se o Supremo escolher pela Extradição, o presidente da república pode, discricionariamente, definir pela sua conveniência ou não49.

A discricionariedade, porém, é uma condição que fica adstrita à existência de tratado ou não entre o Brasil e o país requerente. Se o Brasil tiver realizado tratado com o país requerente, fica obrigado a conceder o pedido de extradição a este e não poderá avaliar critérios de conveniência. Contudo, se o tratado prever exceções ao deferimento da entrega, pode o presidente da república analisar sim a conveniência sobre sua concessão ou não50.

Segundo leciona Mazzuoli, o Instituto da Extradição é justificável pelo princípio da justiça. De acordo com esse entendimento, um indivíduo que cometeu crime em um país e se evadiu das fronteiras deste com o intuito de permanecer impune, não pode encontrar apoio nas leis do local onde se encontra para se manter livre. Nessa lógica, Mazzuoli também nos ensina que os motivos para a Extradição devem ser pautados em cometimento de crimes punidos na esfera penal, ou seja, não há que se falar em Extradição para ilícitos civis ou administrativos51.

As condições para que o Estado brasileiro conceda a Extradição são: a existência de um processo no Estado requerente; que o fato imputado como crime ao extraditando seja tipificado também no Brasil; a competência do Estado requerente para processar e julgar o extraditando; a não prescrição do crime no Estado requerente e no Brasil; a não ocorrência de bis in idem, ou seja, o extraditando não pode já ter sido julgado no Brasil pelo crime.

Segundo preceitua Cezar Roberto Bittencourt, a natureza jurídica da ação de Extradição é constitutiva, pois ela visa formar um título que autoriza o chefe do Executivo a realizar ato extraditório52. Já Mazzuoli, se refere ao caráter de medida de cooperação internacional, não caracterizando a Extradição como pena imposta ao extraditando53.

Importante se faz ressaltar, que o entendimento que prepondera no direito internacional é o de que realmente não deve ser realizada a extradição de indivíduos com qualidade de natos. Os únicos que fogem à regra são Estados Unidos e Inglaterra, pois extraditam seus natos. Interessante mencionar também as regras pelas quais é regida a União europeia, pois elas permitem que dentro da comunidade haja extradição de um país para outro também membro da comunidade54.

É necessário esclarecer, contudo, que a Extradição não se trata de uma obrigação entre Estados. Ela está muito mais relacionada à moral, à necessidade de cooperação entre países para que crimes não fiquem impunes, para que os indivíduos respeitem as leis penais e para que elas tenham o alcance necessário para a prevenção e repressão55. Um Estado que impeça a Extradição, se esta obedece às convenções e costumes internacionais, está contribuindo não apenas para a impunidade, mas para o pensamento de indivíduos que tenham intuito de praticar ações criminosas de que ao praticarem tal encontrarão respaldo nas leis deste Estado.


7. A POSSIBILIDADE DE ENTREGA DE BRASILEIROS AO TPI

O Instituto da Entrega é algo singular e com sua análise observamos que ele tem respaldo no próprio Direito Internacional. Sendo o Tribunal Penal Internacional um órgão criado com a tentativa de punir os transgressores dos Direitos Humanos, é íntegro pensarmos que o Tribunal tem por objetivo manter o respeito a tais direitos revelando seu total interesse à comunidade internacional. Sendo a Entrega diferente da extradição, é mister analisar porque é inconstitucional extraditar o brasileiro nato e ao mesmo tempo não é inconstitucional entregar um brasileiro nato para ser julgado pelo TPI e os argumentos para tal posicionamento são dos mais diversos embasamentos.

Não é interessante para nenhum povo ou nação assistir a episódios como os massacres na Ex-Iugoslávia ou Ruanda, ou mesmo o inacreditável holocausto, que matou milhares de judeus. Por isso é tão importante pensar na existência de um Tribunal de jurisdição internacional que garanta que os Direitos Humanos sejam respeitados e prevaleçam em detrimento de governos ditadores, totalitários ou culturas que preguem qualquer tipo de mitigação desses direitos. A ideologia Hitleriana que chocou o mundo com o enaltecimento de uma raça pura, ainda que a custa da destruição de outros povos, demonstrou o quão frágil os Direitos Humanos podem ser se líderes não tiverem o dever de cooperação internacional assim como também o temor de serem punidos fora de seus estados de origem.

Sob essa perspectiva o Instituto da Entrega é de ímpar relevância, pois não há como vislumbrar uma atuação totalmente eficiente do TPI se um ditador ou qualquer outro indivíduo que tenha poder de decisão política dentro do Estado não puder ser extraditado pelo simples fato de ser nato.

Ademais, o Tribunal Penal Internacional não faz parte do sistema judiciário de um país. No ato de entrega de um brasileiro nato ao TPI, o Brasil estará enviando o indivíduo a um Tribunal com jurisdição internacional de cuja constituição o nosso país participou. Eis então um grande diferencial da Entrega para a Extradição. Na Extradição o Brasil encaminha o indivíduo a outro Estado para que lá seja julgado pelo crime que cometeu. Na Extradição, então, acaba por restar um receio quanto à existência de um julgamento que respeite o devido processo legal juntamente com todas as suas garantias. Já na Entrega, o Brasil encaminha o indivíduo requisitado ao TPI, que é um Tribunal previamente constituído, imparcial e do qual o Brasil participou da criação e da formação do estatuto.

Conseguimos observar isso com precisão no artigo 102 do Estatuto de Roma que aduz, ipsis litteris:

Para os fins do presente Estatuto:

  • a) Por "entrega", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.

  • b) Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.

Desse modo não há que se falar na atuação de um Tribunal que fará um julgamento embasado em interesses de um país específico, pois o TPI não está vinculado a nenhum país, ele é fruto da união e interesse de vários países sendo, portanto, seu julgamento imparcial.

Outro ponto relevante é o repúdio ao bis in idem: o TPI não aceita que o mesmo indivíduo seja julgado duas vezes pelo mesmo crime. Assim sendo o Estatuto de Roma possui caráter subsidiário e o TPI só julgará aqueles que não o foram devidamente em seus estados por razões de precariedade da justiça ou porque os estados em questão não quiseram julgá-los. É o que preceitua o artigo 20 do Estatuto:

1. Salvo disposição contrária do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por atos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido.

2. Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5°,relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.

3. O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos artigos 6o, 7o ou 8o, a menos que o processo nesse outro tribunal:

a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou

b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.

Com este artigo se faz evidente que a intenção da Corte Penal Internacional não é invadir a esfera de competência da justiça dos países envolvidos, o que o TPI preza é pela punição dos culpados se os países não puderem garanti-lo. Como expresso pelo artigo 20, o Tribunal não condenará uma pessoa que já tenha sido submetida a devido processo legal em um país, mas caso o processo que tramita dentro de um Estado contra o acusado tenha sido movido com o objetivo de livrar o réu da influência do TPI, caso o processo não tenha sido fidedigno aos princípios processuais consagrados internacionalmente como a imparcialidade, contraditório e ampla defesa, então o TPI realizará sua jurisdição.

Entretanto é importante ponderar sobre a hierarquia do Estatuto de Roma dentro do sistema de leis brasileiro. É interessante observar que em nosso país os tratados internacionais sobre direitos humanos votados em cada casa do congresso em dois turnos e aprovados por 3/5 dos votos, são equivalentes às emendas constitucionais. Tal preceito foi introduzido através da Emenda Constitucional 45/0456.

Isso considerado e, tendo em vista que o Estatuto de Roma entrou em vigor em nosso ordenamento em 2002, pode ser atribuída a este diploma legal a natureza de norma supralegal, pois não pode ser considerado sob a mesma ótica de emenda constitucional uma vez que é anterior à emenda e não respeitou os preceitos para tal57.

Tendo a natureza hierárquica de norma supralegal, é lícito dizer que o Estatuto de Roma se encontra em posição inferior à constituição e superior às demais leis. Assim dito, pode-se concluir que o Estatuto, em nosso país, deve respeitar a todos os preceitos constitucionais.

Todavia, não é prudente deixar de considerar que o Instituto da Extradição observa alguns critérios que, como iremos analisar, não podem ser ignorado quando falamos do Instituto da Entrega. E à medida que examinamos o Estatuto de Roma, vemos que ele coaduna com possíveis restrições referentes à Entrega dentro do ordenamento jurídico dos países participantes58.

É o que expressa o parágrafo 1º do artigo 89 do Estatuto:

1. O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.(Grifo nosso)

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Como se pode notar o TPI permite que haja limitações do Instituto da Entrega dentro dos respectivos ordenamentos jurídicos dos países e que estas limitações sejam respeitadas. No caso do Brasil, podemos vislumbrar em nossa Magna Carta que não há penas de caráter perpétuo e, ademais, que por crimes imprescritíveis temos somente o racismo e a ação de grupos civis e militares que atentem contra a ordem constitucional.

Eis então uma barreira contra o Estatuto de Roma que, por sua vez, prevê a imprescritibilidade dos crimes previstos em seu corpo assim como também a aplicação da pena de prisão perpétua.

Desse modo, não é lícito falar em uma Entrega sem um mínimo de condições, pois não seria plausível entregar o nato para ser julgado pelo TPI e permitir que ele fosse condenado a pena perpétua ou maior que a máxima de 30 anos praticada no Brasil. De igual modo, entregar o brasileiro nato para ser condenado a crime que, de acordo com as leis brasileiras, já teria prescrito porque o Estatuto de Roma considera os crimes imprescritíveis, seria impraticável.

Sob esse aspecto, nada mais sensato que falar em uma Entrega com restrições. É o mais correto se pensarmos que na Extradição há tais limites. Tal pode ser observado no julgado do Supremo Tribunal Federal sobre pedido de Extradição: Extradição nº 1151, que resolveu a controvérsia da seguinte forma59:

“Não se concederá a extradição, quando se achar extinta, em decorrência de qualquer causa legal, a punibilidade do extraditando, notadamente se se verificar a consumação da prescrição penal, seja nos termos da lei brasileira, seja segundo o ordenamento positivo do Estado requerente.

(...)

A extradição somente será efetivada pelo Brasil, depois de deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua ou pena superior a 30 anos, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a elas, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-las em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais – considerado o que dispõe o art. 5º, XLVII, “b” da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo – estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico-normativa da Lei Fundamental brasileira.”

É notória, então, a tendência da jurisprudência em defender a prevalência das normas de direito interno, até quando se trata de extraditar o brasileiro naturalizado. Se assim o é, não é acertado defender o Instituto da Entrega sem ressalvas. Um brasileiro nato que se encontrasse em tal situação apelaria para a justiça brasileira tendo em vista o seu direito a uma pena mais branda ou a garantia de que não fosse julgado por crime já prescrito pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Não obstante, percebemos que o Estatuto de Roma não veda tal conduta, pois vimos que em seu artigo 89 ele permite que a Entrega se dê em conformidade com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos dos países envolvidos.

Ademais, o artigo 91 do Estatuto deixa expresso que podem sim haver condições para a realização da Entrega. Isso se faz notável no ponto em que a alínea c do parágrafo 2º do referido artigo aduz o fato de que o pedido de detenção e entrega de uma pessoa ao TPI deve conter os documentos, declarações e informações necessários para satisfazer os requisitos do processo e que tais requisitos não podem ser mais rigorosos que no caso da Extradição.

É o bastante para percebermos que o próprio Tratado previu que atritos seriam possíveis com o direito interno dos países membros, mas, como é evidente, o Estatuto de Roma não trata isso como barreira e sim como possibilidade de negociação, deixando expressa a ideia de que respeita as normas de direito e a soberania dos países.

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Sobre o autor
Charles Reginaldo Guimarães Oliveira

Sou estudante de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Charles Reginaldo Guimarães. A Constituição Federal e o Tribunal Penal Internacional: a compatibilidade do ordenamento jurídico brasileiro com o Estatuto de Roma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5206, 2 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53922. Acesso em: 22 nov. 2024.

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