1 INTRODUÇÃO
Nosso estudo se embasa na necessidade de discussão sobre um tema ainda hoje contemporâneo, que diz respeito à descriminalização do aborto no Brasil. Existe um prisma muito grande de discussões a respeito deste tema, com as mais diversas opiniões. Analisaremos a problemática sobre a ótica do direito penal e da jurisprudência.
Nosso enfoque principal se dará a respeito do direito a vida, e desde quando essa vida é considerada através de nossos preceitos legais. Sabemos que segundo nosso ordenamento, o direito a vida começa com a atribuição de direitos ao nascituro, que já pode gozar de direitos, como por exemplo, sobre sua personalidade.
Vale salientar que não pode haver confusão entre o nascituro e o embrião decorrente da utilização da fertilização in vitro, já que um dos requisitos essenciais para ser considerado nascituro é que o óvulo fecundado deverá estar dentro do ventre materno. Deste modo a sua existência é intrauterina. Logo, nos casos em que a fecundação tenha sido realizada de forma extracorpórea, enquanto não for implantado no útero feminino, o óvulo fecundado não poderá ser considerado nascituro.
Essa diferenciação é importante principalmente nas discussões sobre o uso de embriões para pesquisa com utilização de células tronco. Existe uma corrente doutrinária ligada à igreja que defende a não utilização do embrião, pois considera já haver vida assim que o óvulo é fecundado. Esse debate é tão amplo que mereceu atenção do Supremo Tribunal Federal (STF), através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510), proposta pelo Ex-Procurador Geral da República Claudio Fonteles, em que a deliberação provou que a discussão esta longe de uma posição unânime. O STF julgou improcedente o pedido de Claudio Fonteles com margem apertada de 6 votos a 5.
Também foi objeto de apreciação pelo pleno do STF o chamado aborto terapêutico, que considerou legítimo, através do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental Nº54 (ADPF 54), desde que com autorização e vontade declarada da mãe e laudo pericial do médico comprovando a enfermidade, o aborto realizado em feto anencéfalo, por considerar que este ainda não possui direitos, por não haver vida, e, portanto, não ser sujeito de direitos.
Neste estudo também abordaremos com maior profundidade as causas permissivas do aborto contidas dentro do nosso código penal. As duas causas permissivas são o chamado aborto necessário e o aborto sentimental, inseridas nos incisos I e II do artigo 128, respectivamente.
O aborto necessário, previsto no artigo 128, inciso I, expressa que em caso de risco de vida para a mãe o feto poderá ser abortado.
Já o aborto sentimental, contida no artigo 128 inciso II, consta que caso a gravidez seja decorrente de estupro sofrido pela gestante, esta poderá abortar, exigindo-se para isso apenas três condições, a saber, vontade da mãe, apresentação de um documento oficial, Boletim de Ocorrência e Inquérito Policial são alguns exemplos, não se exigindo homologação judicial para tal, e também deverá ser realizado por médico, e este terá a responsabilidade de checar a veracidade do(s) documento(s) apresentado(s).
2 A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL
A descriminalização do aborto é um tema muito polêmico e complexo, pois trata-se de um caso típico onde as disposições quanto ao fundamento ético são inconciliáveis. Para alguns se trata do direito à vida, para outros é evidente que envolve o direito da mulher decidir sobre seu próprio corpo. Contemporaneamente têm-se duas correntes que manifestam a respeito da matéria, a saber, a antiabortiva, mais conhecida como pró-vida, e a corrente pró-escolha. Neste primeiro momento daremos mais enfoque nas correntes contrárias, uma vez que estas exibem uma maior força quanto ao cunho religioso e social.
Numa primeira instância observamos que o Brasil, desde a elaboração da Constituição de 1891, no período imperial, se oficializou como um Estado Secular, ou seja, laico, onde se segregou o poder político do poder religioso, sendo que este tem total proteção quanto a sua exteriorização, porém não interfere mais nas questões sociopolíticas e culturais referentes ao Estado. No entanto entre as discussões abordadas a respeito do tema, a religião tem se posicionado veementemente contra a prática do aborto através dos princípios bíblicos instituídos desde os primórdios. Deste modo a religião vem influenciando a sociedade e sua cultura seja no seu modo de viver seja na sua formação intelectual.
A religião posiciona-se a favor da vida. Primeiramente não nos é permitido ceifá-la, por ser um mandamento bíblico instituído por Deus, “não matarás” (Ex. 20:13). A ciência destaca que a vida começa com a fusão do espermatozoide e o óvulo, chamada de fecundação, a partir disso começa a existir um novo ser vivo. Portanto, o feto não é uma extensão do corpo da mulher, mas sim uma vida. De modo que o aborto, em qualquer estágio de desenvolvimento fetal, significa tirar uma vida humana inocente, e este se caracteriza não só um atentado contra a vida, mas, também contra o direito e a moral.
A legalização do aborto seria a banalização da vida, pois esta perde o valor diante da sociedade, que sempre procura formas de mascarar a agressividade do aborto, com argumentos infundados. Nesses casos o desejo de interromper a gravidez, que resultaria em uma criança, denotaria uma inversão de valores, de frieza e desrespeito total à vida, uma vez que a legalização da prática não simboliza a diminuição de riscos de vida da gestante e do feto, mas o aumento de morte violenta de um ser que lhe foi negado o direito de nascer.
As correntes que defendem o aborto são usualmente chamadas de pró-escolha (pro-choice) e defendem a liberação total sobre a prática ou, geralmente a legalização desta, de forma a torná-la mais segura uma vez que sendo reconhecida pelo Estado possa assim vir a ser garantida por este, seja na questão de direitos, seja na questão prática, com o fornecimento gratuito dos procedimentos abortivos, quais sejam farmacológico, cirúrgico ou quaisquer outros procedimentos que visem a realização do aborto de forma segura.
A maior parte da Europa, bem como um número considerável de países desenvolvidos e em desenvolvimento (a de exemplo os BRICS com exceção ao Brasil), possuem em suas legislações uma permissividade bem grande em relação à prática abortiva, predominantemente até as 12 semanas de gestação, que normalmente seria o período ao qual o feto ainda não possui o sistema nervoso formado propriamente, e outras das principais características para que desse modo venha a ser reconhecido como ser humano.
Neste ponto há grande polêmica e controvérsia no sentido de se definir qual seria o ponto exato em que a vida começaria, se na concepção ou na formação do sistema nervoso, o que acarretaria esse último, fator determinístico de divisão entre os que apoiam os movimentos pró-escolha, já que a partir daí tem-se a chamada dor do feto (dor fetal) e por conseguinte seria considerada uma forma de infanticídio uma prática que vise a remoção e assassinato de um incapaz do ventre materno, haja visto que este reconhece e reage a estímulos externos a partir deste ponto, como por exemplo a voz materna.
Talvez o maior motivo da atuação dos movimentos a favor da legalização do aborto seria o fato de que o aborto ilegal dentre as 22 milhões de vezes que é praticado ao redor do mundo, mata por ano cerca de 47 mil mulheres em decorrência das práticas realizadas sem supervisão estatal, profissionais habilitados a realizarem esta e também a utilização de procedimentos adequados por estes.
Soma-se o fato de que o aborto legalizado realizado em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, alcançam uma taxa de mortalidade menor à gestante do que a prática do parto como ocorreu em comparação aos abortos realizados entre 1998 e 2005 onde a taxa foi de 0,6 morte por 100.000 procedimentos, tornando-o cerca de 14 vezes mais seguro que o parto o qual possuiu em igual período a relação de 8,8 mortes por 100.000 nascidos vivos; rendendo ao aborto legal, ao menos em países desenvolvidos (onde os procedimentos são realizados em sua maioria esmagadora de forma correta) uma posição de conceituação dentre os procedimentos mais seguros da medicina.
A restrição à liberdade das mulheres sobre seus próprios corpos e também do direito fundamental a saúde pelo cerceamento de direitos relativos ao aborto de forma legal e segura, configuram um forte argumento defendido pelos defensores da liberdade de escolha. Tal entendimento é utilizado por grande parte dos intelectuais favoráveis a tal prática, juntamente a indivíduos que se encontram em posições de comando ou que podem influenciar em decorrência de seus cargos às autoridades competentes que legalizem a prática, mas que não o fazem por não conseguirem ir contra fatores externos, como os políticos, sociais, culturais e religiosos. Entretanto tal atitude de defesa aos direitos da mulher por estas pessoas é de fundamental importância aos grupos pró-escolha, pois observa-se o apoio de autoridades à causa configurando mais confiabilidade no discurso destes, fundamentado no famigerado “argumento de autoridade.”
O Brasil, sendo tradicionalmente cristão e ainda possuir grande influência religiosa nas tomadas de decisões políticas, encontra-se por vezes fora do compasso em relação a outros países quando se trata deste aspecto. Grande debate é gerado sempre que o Estado nacional age em questões sensíveis aos mais diversos grupos da sociedade, agravando-se quando tais ações esbarram com preceitos religiosos como as acepções do direito à vida e a definição de quando esta se iniciaria. Portanto, segundo as correntes defensoras pro-choice, este impedimento da concessão à garantia de direitos se materializaria nas atitudes conservadoras de determinados grupos da sociedade, visando proteger seus princípios seriam fator fundamental para o não avanço a tais concessões estatais de direitos.
Várias são as razões apresentadas para que ocorra a descriminalização da prática do aborto e para que em via de consequência, independentemente da decisão, a escolha certa seja tomada. Um destes argumentos é o de que ao longo da vida, a criança indesejada possa a vir sofrer consequências de longo prazo, decorrentes do fato de não ser almejada e planejada, que influenciariam no seu estado psicoemocional e em sua personalidade, tendo um nível de felicidade inferior às das demais crianças, segundo alguns integrantes do movimento pró-escolha.
Dentre os diversos exemplos dos reflexos negativos que este indivíduo poderá sofrer e/ou praticar a longo prazo pode-se citar, doença e morte prematura, pobreza, problemas de desenvolvimento, abandono escolar, delinquência juvenil, abuso de menores, instabilidade familiar e divórcio, necessidade de apoio psiquiátrico, falta de autoestima, dentre outros. Vale ressaltar que o fato desses fatores poderem a vir influenciar todas estas consequências, não seriam determinísticos para que ocorram sendo mais como acessórios para que venham a se consolidar. Já no que se refere à argumentação contrária desta ideia, os membros do movimento pró-vida discorrem que não há como se comparar uma situação precária de vida com uma em que ela inexiste.
Uma consequência a longo prazo do aborto, relacionada à gestante que o pratica, seria a especulação do desenvolvimento de uma síndrome pós-abortiva, conhecida também como síndrome pós-traumático, pós-abortivo ou por síndrome do trauma abortivo a qual seria uma série de reações de natureza psicológica apresentadas pela mulher após a realização da prática como culpa, ansiedade, alheamento, depressão, tendências suicidas, interrupção dos laços de afeto com crianças, etc. Apesar de pesquisas sobre tal patologia terem sido realizadas em diferentes partes do globo, seus resultados são deveras contrastantes e inconclusivos, mesmo que seus sintomas tenham sido encontrados em grande quantidade de estudos. No entanto, há de se salientar que tais características psicopatológicas poderiam advir, alguns destes sintomas, da proibição legal e/ou moral do aborto e não do ato propriamente. Soma-se também a esta questão o fato que sintomas como os já citados e demais relacionados à síndrome pós-abortiva são encontrados em portadores de Desordem Ansiosa Pós-Traumática (DAPT), presente em ex-combatentes da guerra do Vietnã onde a maioria esmagadora destes era do sexo masculino como comprovou a pesquisa do Dr. Vincent Rue.
A defesa ao direito de escolha hoje em dia transcende as barreiras nacionais tendo a atuação de grupos ativistas ao redor do mundo que visam conscientizar a população de diversos países sobre a prática segura do aborto assim como provir educação sexual adequada como forma de se ensinar sobre os métodos contraceptivos com o intuito de prevenir a prática abortiva. Dentre esses grupos ativistas podemos citar o WoW (Women on Waves), fundada pela médica holandesa Rebecca Gomperts em 1999, que busca viabilizar o aborto farmacológico em águas internacionais fornecendo os medicamentos necessários para que este se realize, visto que o navio utilizado pela organização é registrado na Holanda onde o procedimento é legalizado.
O planejamento familiar adequado, bem como a utilização de métodos contraceptivos eficientes são de fundamental importância para se reduzir a prática abortiva, mas há de se ressalvar o fato de que não há método com tal finalidade que tenha sua eficácia garantida em cem por cento dos casos (com exceção ao celibato) e que portanto o aborto legal, feito por profissionais credenciados, e com a utilização de métodos e de procedimentos adequados e seguros, ainda seriam importantes para que o direito de escolha da mulher seja salvaguardado uma vez que, segundo a então psicóloga clínica e conselheira do Conselho Federal de Psicologia, Roseli Goffman “Embora haja pílula e muitas maneiras de evitar uma gravidez, a educação não é igual para as mulheres brasileiras. As repercussões disso para a saúde pública são imensas. A mulher tem que ter direito sobre a própria vida. Por causa dos preconceitos e religiões, não estão considerando a vida dela. A maioria dos projetos que estão no Congresso sobre o assunto são feitos por homens. Determinar o domínio feminino é uma violência.”
Além disso “É uma incoerência justificar a proibição do aborto como uma lei a favor da vida, quando sabemos que o aborto ilegal é a quarta causa mais comum de mortalidade materna” segundo apontou Gilda Paoliello psiquiatra e psicanalista, membro da diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista todo conteúdo de estudo, haja necessário observar que é através do que dispõe na Constituição da República Federativa do Brasil que temos positivado toda esta defesa em torno de um princípio fundamental, o da vida. Vem esta, como forma garantida desde nossa Constituição de 1942 quando o Brasil passava pelo período do chamado “Estado Novo”, época de regime ditatorial, entra em vigor o ainda atual Código Penal Brasileiro, promulgado via Decreto-lei nº 2.848/1940.
Onde até então era definido que o aborto previsto no Código Penal apenas poderia ser realizado sem punição em casos de aborto necessário, onde há o risco eminente de vida da gestante, ou quando haveria o caso de estupro.
Hoje observamos mais uma permissão, sem que haja qualquer punição do ato, o caso do feto anencéfalo, onde houve a discussão e votação pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao qual foi relatado entre os ministros a seguinte conclusão:
“De acordo com o entendimento firmado, o feto sem cérebro, mesmo que biologicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, principalmente, de proteção jurídico-penal”. "Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica".
Com isso, abriu-se a possibilidade de um aborto em caso de feto anencéfalo, não havendo qualquer punição por este ato, havendo até mesmo uma ajuda por parte do estado em caso declarado da falta cerebral do feto.
Segundo a porta-voz da ONU (Organização das Nações Unidas), Cecile Pouilly, que aqui no Brasil, a epidemia de zika vírus representou de certa forma uma oportunidade para que uma série de questões relacionadas aos direitos reprodutivos da mulher fossem revistas.
Para o Brasil, a descriminalização recomendada pela ONU retiraria a punição de até três anos prevista pelo código penal.
Segundo ela:
“O aborto já é feito”. “No mundo, 47 mil mulheres morrem em decorrência de abortos sem segurança”, disse, acrescentando que “países precisam também oferecer serviços de atendimento pós-aborto sem que haja o risco de punição às mulheres”.
Segundo disse Pouilly à BBC Brasil, a ONU recomenda ainda que o aborto seja legalizado em cinco diferentes situações:
"Em casos de estupro, incesto, risco à saúde física e mental da mãe e também em casos de bebês deficiências consideradas graves".
De maneira totalmente contrária ao pensamento da ONU, o Brasil tem subordinação com o Pacto de San Jose da Costa Rica, também referenciada como Convenção Americana de Direitos Humanos, sendo esta convenção defensora da criminalização em qualquer forma abortiva. Onde podemos observar em seu conteúdo o seguinte texto de acórdão (p. 36-37):
“Determina que o direito à vida deva ser protegido pela legislação em geral, desde a concepção. Assim, em razão desta previsão expressa, era de se esperar que os acórdãos não concessivos da autorização para a interrupção da gestação levantassem como fundamento este dispositivo.”
Ademais, mesmo depois de tanta discussão em grupo, não há total concordância com o conteúdo, sendo esta, uma ampla e complexa área de discussão, ao qual sempre haverá a parte defensora da descriminalização, visando a parte do aborto feito de maneira clandestina e ilegal, e há também a parte defensora da criminalização de forma total ou parcial, visando garantir o direito à vida.