O Direito Penal é a forma juridicamente válida mais violenta que o Estado dispõe para resolver os conflitos de interesses surgidos no meio social.
As consequências do descumprimento das normas penais incriminadoras faz surgir para o Estado o jus puniendi e, não obstante as limitações impostas ao exercício desse direito, a força punitiva à disposição do sistema de persecução penal estatal é imensa.
O princípio da intervenção mínima, também denominado de princípio da necessidade, surgido, juridicamente, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, com previsão no artigo 8º (ESTEFAM e GONÇALVES, 2015), estabelece que o Direito Penal é a última trincheira no controle social. Exatamente pelas consequências gravosas que a intervenção do Direito Penal acarreta ao indivíduo, deve ser a ultima ratio.
Infelizmente, temos visto, nos últimos tempos, uma inflação do Direito Penal, basta ver, no Brasil, a criminalização da conduta daquele que invade local restrito aos competidores em eventos esportivos, previsto como delito punido com reclusão de 01 (um) a 02 (dois) anos e multa, inserido no Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671/2003) pela Lei nº 12.299/2010. Esta, como outras normas penais incriminadoras versando sobre condutas banais, parece fazer com que o Direito Penal seja a prima ratio ou a sola ratio.
Decerto que o clamor momentâneo, a exposição reiterada de determinados delitos pelos veículos de comunicação, o interesse político em angariar votos através da defesa da criminalização exacerbada e outros tantos fatores da mais variada ordem contribuem para o crescimento do número de normas incriminadoras.
Já não bastassem a completa falta de método técnico na criação das normas incriminadoras e a abstração e impessoalidade das descrições típicas com o condão de abranger o maior número de pessoas e de comportamentos, o uso irresponsável e indiscriminado de normas incriminadoras causa preocupação entre os estudiosos das ciências criminais.
Com precisão cirúrgica, trazemos à baila o escólio do Professor gaúcho Cezar Roberto Bitencourt (2013, p. 54 e 55) a respeito do tema:
Apesar de o princípio da intervenção mínima ter sido consagrado pelo Iluminismo a partir da Revolução Francesa, “a verdade é que, a partir da segunda década do século XIX, as normas penais incriminadoras cresceram desmedidamente, a ponto de alarmar os penalistas dos mais diferentes parâmetros culturais”. Os legisladores contemporâneos, nas mais diversas partes do mundo, têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo a sua força intimidativa diante da “inflação legislativa” reinante nos ordenamentos positivos.
O princípio da necessidade, portanto, deve funcionar como um instrumento interpretativo de contenção ao uso do Direito Penal para solucionar comportamentos indesejados, vez que esse ramo do Direito deve ser manejado apenas em prol da preservação das condições indispensáveis ao convívio pacífico no meio social, evitando-se o fenômeno da nomonia ou nomorréia, consistente no crescimento anormal da legislação penal (ESTEFAM e GONÇALVES, 2015).
Decorrentes do princípio da intervenção mínima são a fragmentariedade e a subsidiariedade, ora considerados como princípios autônomos (MASSON, 2014), ora como meras características (CAPEZ, 2014) ou simples coadjuvantes (NUCCI, 2014) daquele. Ambos serão mencionados, aqui, como características da intervenção mínima.
A fragmentariedade é a característica da intervenção mínima projetada “no plano abstrato” (BARROS, 2014), dirigida ao legislador. Considera que o Estado só deve criar uma norma incriminadora para salvaguardar os mais preciosos bens jurídicos das mais perniciosas condutas. Assim, no universo de ilícitos, as infrações penais devem representar fragmentos, ou seja, partes desse universo, de modo que todo ilícito penal será também ilícito perante os demais ramos do Direito, mas a recíproca não será verdadeira. (MASSON, 2014).
O excessivo número de infrações penais no ordenamento jurídico tem o condão de tirar do Direito Penal o cumprimento reverencial que lhe é devido.
Quando este ramo do Direito intervém em quase tudo, o sistema criminal entra em crise, impondo aos operadores desse sistema fazer “vista grossa” àquelas condutas punidas de modo menos gravoso, dada a impossibilidade humana e material de fiscalizar a efetiva observância de todos os comportamentos penalmente relevantes.
Outro problema decorrente do desrespeito à fragmentariedade volta-se à redução do temor social das consequências inerentes à prática das infrações penais.
A excessiva quantidade de crimes punidos de modo brando, admitindo, portanto, institutos despenalizadores diversos levam o indivíduo a arriscar praticar determinadas condutas que, embora criminosas, cominam penas pequenas e que não acarretará para ele, um prejuízo maior que o benefício conseguido com delito.
Assim, o legislador deve ser bastante cauteloso e responsável ao propor a criminalização deste ou daquele comportamento, sob pena de afrontar a fragmentariedade e, consequentemente, o princípio da intervenção mínima, aumentando desmedidamente o poder punitivo estatal e reduzindo o espectro de liberdade individual.
Por sua banda, a subsidiariedade é a característica da intervenção mínima projetada “no plano concreto” (BARROS, 2014), voltada ao operador do Direito e consistente em um instrumento interpretativo apto a afastar a incidência de uma norma penal incriminadora sempre que o bem jurídico tutelado se mostrar protegido eficientemente por meio da aplicação de regras jurídicas inerentes a outros ramos do Direito, como o Civil, o Administrativo, o Tributário et coetera.
Muitas vezes a sanção cominada em outros ramos do Direito causa no indivíduo um efeito psicológico mais forte que aquelas previstas no preceito secundário da norma penal incriminadora.
Determinadas infrações de trânsito, em razão do valor da multa, quantidade de pontos anotados no prontuário do infrator, suspensão do direito de dirigir, dentre outras punições, repercutem com muito mais eficácia psicológica que uma sanção penal de detenção ou reclusão.
Nesses casos, já que o legislador não usou o bom senso em evitar uma pluralidade punitiva excessiva, o operador do Direito tem a importante missão de realizar um trabalho interpretativo, refletindo sobre a necessidade ou não de aplicação das penas cominadas à infração penal originada do mesmo fato da infração administrativa de trânsito.
Os bens jurídicos também são tutelados por outras normas existentes no ordenamento jurídico, não sendo uma exclusividade do Direito Penal tal proteção. Apenas diante do fracasso daquelas normas, deverá o Direito Penal ser chamado a intervir, representando, figurativamente, um soldado de reserva, convocado ao combate apenas quando os outros não conseguirem defender o bem jurídico com a eficiência esperada.
O crime de calúnia, bem como os demais crimes contra a honra, em geral, busca proteger o patrimônio moral da pessoa (MASSON, 2015), servindo-lhe como fundamento constitucional, a norma insculpida no artigo 5º, X da Constituição Federal, figurando no rol dos direitos fundamentais individuais.
No âmbito criminal, ao delito de calúnia é cominada pena de detenção de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos e multa. Quando praticado contra o presidente da República, por força da causa de aumento de pena prevista no artigo 141 do Código Penal, aumentando-as em 1/3 (um terço), passando a variar entre 08 (oito) meses a 02 (dois) anos e 08 (oito) meses.
Com essa variação punitiva muito dificilmente o condenado será levado à prisão, considerando os diversos benefícios penais aplicáveis, tais como a suspensão condicional do processo, a conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, a suspensão condicional da pena ou livramento condicional, por exemplo.
Não queremos aqui defender que a pena de prisão seja a mais adequada à reprimenda de todos os crimes. Absolutamente! A realidade do sistema prisional brasileiro tem demonstrado a completa falência da pena privativa de liberdade. Entretanto, ela ainda é a que mais surte efeito psicológico, incutindo o temor no indivíduo em ser privado da sua liberdade de locomoção, dissuadindo-lhe da prática de delitos e fazendo-lhe respeitar os valores sociais mais comezinhos. O caráter de prevenção geral faz da pena de prisão um mal necessário.
No âmbito do Direito Civil, o Código Civil, no artigo 953, autoriza que o ofendido busque reparação civil por danos materiais (caput) e/ou morais (parágrafo único) daquele que violou sua honra através da prática de injúria, difamação e calúnia. Somando esse preceito legal às características civilistas dos direitos da personalidade, percebemos que o Direito Civil, a partir do Código Civil de 2002, dispensa proteção suficiente ao bem jurídico honra, possibilitando a exoneração do Direito Penal de continuar criminalizando a conduta descrita no preceito primário da norma insculpida no artigo 138 do Código Penal.
Decerto que os valores sociais vigentes quando da edição do Código Penal eram diferentes, afinal entre 1941 e 2016, a sociedade passou por várias transformações. O legislador, atento às mudanças, revogou o artigo 240 do Código Penal através da edição da Lei nº 11.106/2005, retirando do adultério o seu caráter criminoso, embora mantenha a fidelidade como um dever inerente ao casamento e considerando o seu descumprimento como causa à dissolução da sociedade conjugal.
Não vemos qualquer óbice para que o mesmo se proceda com o crime de calúnia, bem como com os demais crimes contra a honra.
Estaríamos diante da fragmentariedade às avessas (MASSON, 2014), permitindo que o ordenamento jurídico-penal se coadune com os valores sociais atuais, deixando ao Direito Civil a tutela do bem jurídico honra, considerando possuir, este ramo do Direito, plena capacidade de proteger eficientemente o referido valor.
A respeito dessa possibilidade, temos os ensinamentos do Professor Rogério Greco (2015, p. 99) como se vê a seguir:
As vertentes do princípio da intervenção mínima são, portanto, como que duas faces de uma mesma moeda. De um lado, orientando o legislador na seleção dos bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade; de outro, também servindo de norte ao legislador para retirar a proteção do Direito Penal sobre aqueles bem que, no passado, gozavam de especial importância, mas que hoje, com a evolução da sociedade, já podem ser satisfatoriamente protegidos pelas demais ramos do ordenamento jurídico.
Assim, percebemos que a manutenção da conduta prevista como calúnia, bem assim, de todos os crimes contra honra, não se mostra consentânea com os valores sociais contemporâneos, tampouco respeita o princípio da intervenção mínima, pois já figura como objeto de tutela do Direito Civil, com regulação capaz de proporcionar a proteção necessária e suficiente ao referido bem jurídico.