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Responsabilidade penal da pessoa jurídica: entendendo sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro

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26/12/2016 às 08:23
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Embora existam duas vertentes igualmente fundamentadas acerca da possibilidade de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, a aceitação é o caminho mais próspero para proteção dos direitos transindividuais, em especial, o meio ambiente.

RESUMO: O presente estudo visa discutir a possibilidade de se responsabilizar penalmente os entes coletivos, em crimes perpetrados em detrimento do meio ambiente. Considerando a sistemática altamente capitalista em que o mundo se situa atualmente, onde as empresas são muitas vezes o centro de comando da economia, a discussão ganha ainda mais enfoque, diante do desconhecimento de limites para se alcançar o lucro. A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, a par dos imensuráveis danos que vinha sofrendo o meio ambiente nessa incansável busca, elaborou uma norma específica em seu artigo 226 para proteção desse bem comum a todos os cidadãos. No entanto, todo o nosso ordenamento jurídico anterior, especialmente o Código Penal de 1940, foi elaborado pautado na penalização individual. Por essa razão, penalistas e ambientalistas/constitucionalistas não conseguem convergir na aceitação desse novo instituto. Ao final da pesquisa, espera-se demonstrar a compatibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica com a nova sistemática brasileira, bem como sua extrema importância para concreta defesa do meio ambiente.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Direito Processual Penal. Direito Ambiental. Pessoa Jurídica. Teorias. Responsabilidade Penal. Evolução. Aplicação.


INTRODUÇÃO

Face à atual realidade internacional do modelo capitalista de geração de lucro, elevando a competitividade a ponto de as empresas se descuidarem de aspectos fundamentais que até então, com a produção em níveis do essencial, não eram foco de atenção, tais como a degradação ambiental e a lesão a direitos do consumidor, diversos estudos debatem no cenário brasileiro acerca da possibilidade de responsabilizar penalmente as empresas pelos seus atos ilícitos, tal como acontece com as pessoas físicas, a fim de quebrar o “manto protetor” sob o qual aquelas se encontram quando a sistemática de divisão do trabalho impede a individualização das condutas.

Apesar de inúmeros estudos aprofundados a respeito, verifica-se que ainda persistem duas correntes doutrinárias que fundamentam a aceitação ou não de tal fenômeno: as defendidas pelos constitucionalistas/ambientalistas e as defendidas pelos criminalistas.

Os primeiros, visando principalmente a maior proteção ao meio ambiente, defendem a previsão expressa de tal responsabilidade ao ente coletivo na nossa Constituição Federal de 1988 (art. 225, §3º). Os criminalistas, por sua vez, alegam a impossibilidade de tal sanção sustentada nos dogmas e alicerces do Direito Penal, que seriam incompatíveis com a punição de um ente que não possui vontade própria desconectada a de seus representantes.

Iniciando com uma breve análise das teorias que se firmam em torno da natureza jurídica dos entes coletivos, passando pela previsão do instituto no ordenamento jurídico brasileiro, o presente trabalho visa oferecer uma visão clara sobre o assunto para que ao final se entenda por qual razão a responsabilização penal da pessoa jurídica é medida correta, justa e necessária no molde do sistema brasileiro atual, e como ela vem sendo aplicada.

1. ASPECTOS RELEVANTES DA PESSOA JURÍDICA

Superado o entendimento de que pessoa jurídica é um aglomerado de indivíduos, e de que, sendo o direito o ramo responsável por regular as relações sociais, nada mais natural que passasse a disciplinar essas novas unidades coletivas criadas pela vontade humana, para que pudessem participar da vida jurídica como sujeito de direitos, cabe a explicação técnica do termo para melhor compreensão da obra.

No sentido jurídico, pessoa é o ente que um ordenamento jurídico atribui a faculdade de adquirir e exercer direitos e também de assumir e cumprir obrigações. Modernamente, significa pontuar o homem, isoladamente (pessoa física), e as entidades personificadas, isto é, certos grupos sociais os quais o direito quis proteger dando-lhes aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações (pessoa jurídica).

Clóvis Bevilácqua conceitua pessoa jurídica como:

Todos os agrupamentos de homens que, reunidos para um fim, cuja realização procuram, mostram ter vida própria, distinta da dos indivíduos que os compõem, e necessitando, para a segurança dessa vida, de uma proteção particular do direito.

Quanto à natureza jurídica, a título de conhecimento, pontua-se existir aqueles que não admitem a pessoa jurídica como sujeito de direitos, entendendo que só as pessoas naturais podem ter essa qualidade. Tais estudiosos concentram-se em prestigiar a teoria negativista (Ihering, Brinz e Bekker, Planiol e Barthélémy), que na atualidade possui tão-somente valor histórico.

Na contramão encontra-se a teoria atualmente adotada, qual seja, a afirmativista, que entende pela viabilidade de ser a pessoa jurídica sujeito de direitos, dividindo-se entre os defensores da teoria da ficção e os defensores da teoria da realidade.

Para os primeiros, o legislador apenas aceitou a criação de outra pessoa, jurídica, fictícia e abstrata, como meio jurídico para realizar um interesse geral de um agrupamento de pessoas e bens, não sendo possível, portanto, falar em vontade e capacidade de ação próprias, o que inviabiliza a responsabilização penal do ente (expressa no brocardo societas delinquere non potest).

Por outro lado, os defensores da teoria da realidade afirmam ser a pessoa jurídica um ser real, vivo, ativo e com vontade que não é simplesmente a soma de vontade dos associados, nem o querer dos administradores. Dessa forma, do mesmo modo que uma pessoa física, possuindo capacidade volitiva e de ações próprias, a pessoa jurídica poderia praticar ilícitos penais. A esta segunda corrente se filia o direito brasileiro através do Código Civil de 2002.

Ultrapassados estes conceitos iniciais, cabe responder à pergunta: quando se inaugura a preocupação do Estado e da sociedade na atuação das empresas no mundo moderno?

Para respondê-la, importante fazer um link com o conceito de direitos fundamentais fornecido por José Afonso da Silva, para quem o termo “direitos fundamentais constitui a expressão (...) reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”. Ou seja, são condições mínimas definidas pelo Estado como merecedores de especial proteção para a existência digna e igualitária de todos os seres humanos.

Ao longo da história, com a evolução das sociedades e o surgimento de novas garantias mínimas a serem previstas, várias classes de direitos foram assimiladas, ao que a doutrina passou a dividi-las em gerações ou, mais corretamente, dimensões. Os direitos de primeira dimensão são os mais primitivos, e, por isso, correspondem aos direitos políticos e àqueles ligados à propriedade, liberdade e segurança individual. Os direitos de segunda dimensão, ligados historicamente à Revolução Industrial e à reivindicação operária por melhores condições de trabalho, correspondem aos direitos sociais, econômicos e culturais.

Por fim, após as duas grandes guerras, com o crescimento da poluição ambiental gerada pela busca incessante pelo lucro, da concorrência desleal, das lesões aos direitos do consumidor na sociedade de massa, da disseminação do terrorismo, da produção de armas químicas e biológicas, dentre outros exemplos, a humanidade passou a ter novas preocupações, inaugurando a terceira dimensão dos direitos fundamentais, que, ao prever direitos de solidariedade ou fraternidade, passava a se atentar com a proteção da coletividade. É nessa realidade que se inaugura a preocupação do Estado e da sociedade na atuação das empresas no mundo moderno, quando os recursos naturais passaram a ser não mais utilizados, e sim explorados, de forma a desequilibrar o meio ambiente e esgotar suas fontes.

Andando lado a lado com esse novo ritmo da sociedade moderna, a possibilidade de se responsabilizar a pessoa jurídica por seus atos foi expressamente prevista no Brasil na Constituição de 1988, nas seções que tratam da ordem econômica e financeira (artigo 173, §5º) e do meio ambiente (artigo 225, §3º), admitindo três formas de responsabilização do ente coletivo: a punição administrativa, a punição civil e a punição penal.

A sanção civil visa recompor o dano patrimonial e/ou moral causado a outrem por uma ação ou omissão do agente responsável, nos limites da extensão do prejuízo (artigo 944 do Código Civil), e está prevista expressamente no Código Civil de 2002 em seu artigo 927: “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

A sanção administrativa, por sua vez, apesar de também objetivar coibir atos contrários à ordem jurídica, é aplicada pelos próprios administradores, afora da via judicial, face à supremacia do interesse público sobre o privado. Nesse ponto, destaca-se a necessidade de o transgressor ser responsabilizado pelo custo social do Estado na proteção do coletivo.

2. A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NO BRASIL

Considera-se que na responsabilidade penal o agente infringe uma norma de direito público, de interesse da sociedade, ao passo que na responsabilidade civil, o interesse lesado é de caráter privado, sendo de faculdade de quem sofreu o prejuízo pleitear por sua reparação.

Traduz-se de Roberto José Vernengo:

As sanções civis seriam meramente ressarcitórias, enquanto a privação patrimonial sofrida pelo sancionado não teria outro alcance do que o de repassar o dano ocasionado; as sanções penais, ao contrário, seriam impostas para dissuadir a outros possíveis delinquentes de incorrerem em ações delituosas.

No âmbito civil, se o responsável não tem patrimônio suficiente a vítima permanece irressarcida, ao passo que no âmbito penal não há tal equivalência justamente por servir para proteger os bens jurídicos especialmente relevantes para a vida social.

Com o protagonismo crescente das organizações empresariais em práticas ilícitas, a estrutura unificada da pessoa jurídica vem sendo considerada um obstáculo significativo à atuação do sistema na prevenção e punição de tais infrações. Isso porque a própria definição de pessoa jurídica impossibilita muitas vezes encontrar os três componentes fundamentais da responsabilização em um único indivíduo, já que a decisão, ação e capacidade de compreensão da ilicitude do fato se pulverizam em mais de uma pessoa.

Com efeito, verifica-se na prática que o ato punível é normalmente consequência de uma soma de atos parciais e fragmentários que, avaliados individualmente, costumam apresentar-se atípicos, acarretando na cisão dos elementos do tipo penal.

Assim, considerando a dinâmica fragmentária e coletiva das atividades empresariais e dos processos decisórios da pessoa jurídica, a observância do princípio da individualização das condutas criminais dificulta a persecução de perpetradores de crimes, apresentando o novo modelo de responsabilização algumas vantagens nesse ponto.

Independentemente das posições adotadas pelos doutrinadores e juristas no sentido de não admitir tal responsabilização, fato é que a Constituição a abarca em seu texto, defendendo sua plena execução. Desta forma, até que a norma seja retirada da nossa lei superior, o Estado deve velar por sua aplicação.

3. A DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA

Partindo da premissa de que as empresas passaram a ter cada vez papel mais fundamental na sociedade mundial, nada mais natural que os ordenamentos jurídicos passassem a considerar esse novo valor para adaptação de suas normas. Foi o que o Brasil fez na Constituição de 1988, declarando expressamente a possibilidade de se responsabilizar a pessoa jurídica nas três esferas de direito (civil, administrativa e penal).

No entanto, ainda é grande o número de resistentes ao novo paradigma, especialmente os criminalistas, apregoados aos institutos do Direito Penal, que entendem que a responsabilização criminal do ente coletivo sufocaria a tradicional dogmática penal, em particular no que tange aos ideais individualistas que deram sustento ao garantismo penal.

A resistência, que pode parecer bastante natural em um primeiro momento, só tem cabimento quando se ignora o atual contexto criminal mundial, procurando-se dar respostas a situações até pouco tempo inusitadas, com antigas orientações de uma dogmática adaptada à repressão do crime num mundo em que a atuação das empresas não era tão relevante e destacada.

Conforme a partir de agora se demonstra, para cada argumento negativo existe um contra-argumento equivalente, visando a uma conscientização sobre a necessidade de modernização do Direito Penal e da adaptação das regras materiais e formais às alterações sociais.

O primeiro ponto controverso acerca da responsabilidade penal do ente coletivo diz respeito à sua previsão constitucional para os crimes econômicos e ambientais, por força dos artigos 173, §5º e 225, §3º.

Com efeito, prescreve o §5º do artigo 173 da Constituição Federal que lei estabelecerá a responsabilidade da pessoa jurídica, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica.

O trecho “sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza” é utilizado pela minoria defensora da dogmática penal tradicional para garantir a impossibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, por entenderem ser a pena incompatível com a natureza jurídica do ente coletivo. Entendem que estar-se-ia claramente reafirmando o postulado que limita a responsabilidade penal às pessoas físicas.

Já o §3º do artigo 225, que trata do meio ambiente, estabelece que as condutas e atividades consideradas lesivas àquele, sujeitarão os infratores “pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas”. Ao utilizar de dois vocábulos distintos (“condutas” e “atividades”), os constitucionalistas entendem que o primeiro se liga com a pessoa física, por tratar de um comportamento humano, ao passo que o segundo o faz com a pessoa jurídica, por ser-lhe uma função inerente. Na sequência, a norma fala primeiro em pessoas físicas e depois em pessoas jurídicas, indicando, por fim, sanções penais e sanções administrativas, nesta ordem.

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Com essa redação, seguindo a lógica inicial, ficaria patente que o legislador não teria atribuído a sanção penal aos entes coletivos, mas apenas sanções administrativas por suas atividades. Às pessoas físicas, por sua vez, teria sido reservada a sanção penal em razão de suas condutas.

Em diâmetro oposto encontra-se José Afonso da Silva, que, apesar de também constitucionalista, defende a interpretação da previsão constitucional adotada por este trabalho, fundamentando-o na inexistência de disposição expressa em seu texto vedando a responsabilidade criminal aos entes coletivos, como ocorre por exemplo com a Carta Italiana.

Este também é o entendimento de Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas ao comentarem a previsão da lei 9.605/98: “a verdade é que a Carta Magna foi clara e, ao usar a preposição 'e' entre as palavras penais e administrativas, desejou penalizar as pessoas jurídicas das duas formas cumulativamente." 

Por fim, quanto ao artigo 173, o pedaço destacado da norma apenas demonstra a coerência do legislador em evitar incompatibilidades como a atribuição de penas privativas de liberdade a uma empresa, considerando ser de conhecimento geral que o Direito Penal não possui como exclusiva sanção o encarceramento. E, no que tange ao artigo 225, se fossemos pelo raciocínio dos primeiros, a pessoa física só poderia receber sanções penais, e não administrativas, o que não se mostra de acordo com o ordenamento pátrio.

O segundo ponto divergente tem ligação direta com as teorias da pessoa jurídica vistas no início deste trabalho. Aqui, os doutrinadores adeptos da teoria da ficção defendem o caráter abstrato das empresas, que não teriam inteligência e vontade próprias. Por consequência, não havendo falar em dolo e culpa, seriam incapazes de cometer crime, por ser vedado no direito criminal a responsabilidade penal objetiva (nullum crimen sine conduta).

No entanto, para Rothemburg, “a censura da pessoa jurídica não se confunde com a reprovação individual essencial, assim como o patrimônio da pessoa jurídica e toda sua atividade estão de alguma forma ligados aos indivíduos que a integram”.

No mesmo caminho anda Günther Jakobs ao defender a inadmissibilidade da ideia de que o Direito Penal trabalha com a definição de sujeito sempre envolvendo corpo e psique, elementos extraídos de pessoas naturais, e nunca constituição e membros, extraídos de pessoas jurídicas. Ele diz: “pelo contrário, também estes podem ser definidos como um sistema imputável”.

Sendo assim, maior parte da doutrina hoje entende que a empresa seria capaz de uma vontade coletiva que poderia inclusive diferir totalmente da vontade de um ou alguns de seus membros individualmente, afastando a tese de responsabilidade objetiva por ausência de dolo ou culpa. Considera-se que a atuação dos entes coletivos surge não como mera ficção, mas nos dias atuais especialmente, como uma avassaladora realidade, principalmente nos campos da atividade econômica e das questões ambientais.

O terceiro ponto divergente tem ligação direta com o conceito de culpabilidade para o Direito Penal, representando um juízo de reprovação social exercido sobre alguém que praticou um fato ilícito definido como crime, desde que presentes a imputabilidade, a potencial consciência de ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

Para a doutrina negativista da responsabilidade penal da pessoa jurídica, seria inadmissível que o ente coletivo praticasse um fato criminoso justamente por faltar um dos requisito caracterizadores da culpabilidade: a potencial consciência de ilicitude. Régis Prado defende que a culpabilidade como juízo de censura pela realização de injusto típico só pode ser endereçada a um indivíduo, que possui conduta humana livre.

No entanto, os contra-argumentos rebatem afirmando que:

A base do pensamento segundo o qual a culpabilidade pode  ser  conceito  presente  na  atitude  da  pessoa  jurídica  surge  da certeza de que culpa  não é algo que possa fluir de uma realidade natural e que possa ser provada com  base em uma atitude científica. Culpa é, na verdade, um conceito de natureza filosófica que pode ser flexibilizado ou revisto a partir de uma tomada de postura diferenciada frente ao fenômeno que se quer estudar. Quando um comportamento está agredindo bens jurídicos tidos por relevantes, há um rompimento de regras de  natureza social; é o próprio direito que conceitua o que vem a ser culpa, tratando-se, pois, de um conceito normativo e não de um conceito natural.

Dessa forma, haveria uma flexibilização no conceito da culpabilidade para adequá-lo às novas realidades mundiais, já que é considerada reprovável a conduta da empresa que descumpre normas de comportamento social.

O quarto ponto controverso acerca da responsabilidade penal do ente coletivo tem por base o direito e garantia fundamental da personalidade da pena, estampado no inciso XLV do artigo 5º da Constituição.

Infere-se da norma que a pena deve atingir somente a pessoa do condenado, o que, segundo os negativistas, não ocorreria na responsabilização criminal das pessoas jurídicas. Isso porque, no entendimento destes, eventual condenação de uma empresa atingiria sócios minoritários inocentes, que não atuaram na tomada da decisão, ou até mesmo foram vencidos por maioria. Ocorre que o atingimento de terceiros não é vedado no ordenamento jurídico. O que é vedado é o atingimento direto de terceiros inocentes.

Aliás, esse prejuízo a terceiros é tão inseparável de qualquer punição que o mesmo problema persistiria se a responsabilidade das pessoas jurídicas se mantivesse somente nas esferas civil e administrativa. Dependendo da multa civil ou administrativa, pensando somente na pecúnia, ela igualmente atingiria os sócios minoritários inocentes da mesma forma que a pena resultante de processo criminal imputado à empresa.

Por fim, lembra-se que as penas aplicadas às pessoas jurídicas não atingem seus membros societários, uma vez que o ente coletivo responde com seu próprio patrimônio, em razão de sua personalidade jurídica não se confundir com a das pessoas humanas que a integram.

O quinto ponto na qual divergem defensores e negativistas da responsabilização criminal dos entes coletivos baseia-se na impossibilidade de aplicação de penas privativas de liberdade às empresas.

A partir do século XVIII, com a expansão das cidades e o consequente aumento da criminalidade, o encarceramento se tornou a principal medida institucional aplicada em face de agentes que cometem condutas criminosas. Em vista disso, tem-se defendido a tese de que, como não se pode “prender” a pessoa jurídica, não haveria falar em responsabilização criminal, já que a concretização da sanção seria impossível.

No entanto, conforme bem esclarece o artigo 32 do Código Penal, a privação de liberdade é apenas uma das espécies de penas criminais, ao lado da restrição de direitos e da multa, entre outras previstas em leis esparsas.

Não obstante, em face do atual estágio da política criminal mundial, as penas privativas de liberdade não são as mais desejáveis nem para os indivíduos por si só considerados. O encarceramento sempre foi uma medida extrema a ser utilizada quando nenhuma outra pena fosse suficiente para sancionar o agente causador do delito (ultima ratio), em respeito ao pilar da dignidade da pessoa humana.

O sexto ponto de divergência se fixa na ideia de que à pessoa jurídica é impossível atingir as funções da pena, da mesma forma que se chega no indivíduo. Explica-se.

A sanção penal exerce inúmeras funções, dentre as quais a preventiva é destaque. Dividida em preventiva geral (quando intimida a sociedade a não praticar o delito graças à previsão abstrata na lei) e preventiva especial (quando a sociedade vê que o autor de fato criminoso não ficou impune, sendo a ameaça séria), a pena impõe medo ao cidadão, inibindo o máximo possível a realização de novos atos ilícitos.

A pena é tratada como uma coação psicológica, espécie de ameaça aos indivíduos que se recusam a observar e obedecer as ordens jurídicas da sociedade. É justamente essa coação psicológica que impede os negativistas de aceitarem a responsabilização penal dos entes coletivos, ao defenderem a impossibilidade de intimidação da empresa, tampouco de arrependimento e conscientização ao cumprir uma sanção penal que lhe seja imposta, atributos exclusivos do ser humano.

Entretanto, tal argumentação conflita com a moderna concepção das finalidades da pena. O “conserto” do criminoso e sua reinserção social através da reprimenda são objetivos que estão cada vez mais distantes de serem alcançados, pela própria natureza da sanção. O encarceramento e a vida livre são conceitos antinômicos e ajustar alguém a controles institucionais fornece mísera segurança de que assim permanecerá depois que os controles sejam removidos.

Portanto, a reeducação e a intimidação pela pena vêm sendo cada vez menos reconhecidas como finalidades palpáveis, inclusive para os seres humanos: “o ato criminoso não deriva de um cálculo matemático prévio do delinquente entre custos e benefícios ocasionados por sua conduta”.

O sétimo ponto controverso reside na ideia de que ao se admitir a responsabilização penal do ente coletivo, o Direito Penal estaria atestando sua inoperância e ineficácia. Ao seguir o caminho “mais fácil” (tanto burocrático quanto probatório), admitira sua incapacidade em chegar à identificação completa do fato, seus autores e suas motivações.

Os penalistas, nesse sentido, entendem que a adoção da responsabilidade empresarial não passaria de uma solução simbólica que carregaria uma aparência de punição, apta a conter os ânimos dos cidadãos, consumidores e mídia, mas que, na verdade, geraria impunidade nas pessoas físicas controladoras da atividade da empresa.

Desta forma, justamente ao contrário do que defende este trabalho, os estudiosos entendem que responsabilizando criminalmente as empresas, as pessoas físicas delas se utilizariam como um “manto protetor” para seus crimes. Em muitos casos poderia acontecer de existir uma mera fachada de negócios para receber a penalização, ao passo que os indivíduos diretamente responsáveis ficariam acobertados.

Na contramão, no entanto, entende Shecaira. Para ele, o funcionário que pratica conduta ilícita no exercício de suas funções age, no mínimo, com o consentimento tácito dos sócios ou a mando de dirigentes. Desta forma, não estaria obtendo vantagens diretas, mas tão-somente atuando no exclusivo interesse da empresa. Estaríamos, assim, agora, diante de uma ineficácia prática do Direito Penal, ao passo que a condenação criminal individual do funcionário provavelmente o levaria ao encarceramento, o que não acarretará maiores consequências para a empregadora:

Quando um crime é cometido de forma a beneficiar uma empresa, é normal que a própria empresa decida pagar o montante da pena pecuniária sofrida pelo seu representante, arcar com as despesas do advogado, compensar a eventual pena privativa de liberdade ou a perda da condição de réu primário com vantagens pecuniárias. Como prêmio poderá o agente pessoal ter uma promoção, férias suplementares, um 14º salário ou qualquer outra vantagem análoga. Disso deriva que nem o representante da pessoa coletiva, nem esta mesma vêm a sentir os efeitos da pena que se venha a aplicar ao primeiro.

Assim, as pessoas jurídicas aufeririam vantagens ao colocar as pessoas físicas na linha de frente da responsabilização criminal. Com a punição destas, os entes coletivos sairiam praticamente ilesos, podendo propiciar condições atrativas à assunção do risco pelas pessoas naturais.

Por fim, importante ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro tem norma impeditiva à impunidade de pessoas físicas envolvidas em crimes empresariais, a exemplo do parágrafo único do artigo 3º da Lei nº 9.605/98, tornando completamente inadmissível a tese de que os dirigentes estariam se beneficiando com a punição do ente coletivo.

4. OS CRIMES AMBIENTAIS

A atenção a temas relacionados com a proteção do meio ambiente não é atual no Brasil, a exemplo do Código de Águas criado em 1934 (Decreto 24.643), em meio a cenário político conturbado. No entanto, a preocupação efetiva com sua degradação somente ganhou espaço considerável a partir da Constituição da República de 1988, conhecida como Constituição Cidadã.

Ao tratar sobre o assunto em um capítulo exclusivo, o legislador reconheceu a urgente necessidade de impor ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Nesse sentido colaciona-se julgado do Supremo Tribunal Federal que, embora proferido há cerca de vinte anos, permanece atual:

O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

Em decorrência dessa preocupação, de amplitude global, foram instituídos crimes contra o meio ambiente, os quais sujeitam o infrator, pessoa física ou jurídica, a uma sanção penal correspondente ao dano causado.

Apesar de a responsabilidade penal da pessoa jurídica ter sido prevista também no capítulo concernente à ordem econômica e financeira, somente a Lei de Crimes Ambientais regulamentou o instituto, fixando crimes específicos e sua sanção correspondente. Por essa razão, o presente trabalho abordará o instrumento normativo de forma sucinta, demonstrando que, apesar de defensores da via oposta, já está sendo aplicada a responsabilização criminal das empresas no cenário brasileiro atual.

A contento, passa-se ao seguinte questionamento: o que se quer com a proteção penal do meio ambiente?

A resposta é simples: proteger e criar condições para que tanto a geração presente como a geração futura possam gozar de direito fundamental constitucionalmente tutelado, qual seja, o equilíbrio ecológico.

Verifica-se na tutela penal ambiental uma antecipação do controle para além da lesão efetiva do bem juridicamente tutelado, de modo que em primeiro plano está a prevenção do dano, e somente em segundo plano, sua reparação. É nessa realidade que a Lei de Crimes Ambientais (n. 9.605/98) foi pensada. Com sua entrada em vigor, a legislação ambiental no que toca à proteção ao meio ambiente é centralizada, uniformizando as penas e graduando-as de acordo com as infrações claramente definidas:

As penas previstas pela Lei de Crimes Ambientais são aplicadas conforme a gravidade da infração: quanto mais reprovável a conduta, mais severa a punição. Ela pode ser privativa de liberdade, onde o sujeito condenado deverá cumprir sua pena em regime penitenciário; restritiva de direitos, quando for aplicada ao sujeito -- em substituição à prisão -- penalidades como a prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, suspensão de atividades, prestação pecuniária e recolhimento domiciliar; ou multa.

As infrações são divididas em cinco classes: contra a fauna, contra a flora, contra a administração ambiental, contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, e sobre a poluição.

Dos crimes contra a fauna, exemplifica-se a proibição de pesca em período no qual ela seja proibida ou em lugares interditados pelo órgão competente (art. 34); dos crimes contra a flora, destaca-se a vedação ao corte de árvores em floresta considerada de preservação permanente, sem autorização do órgão competente (art. 39); sobre a poluição, a lei pune aquele que a causa, em qualquer forma, em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora (art. 54); em relação às infrações contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, é proibida a pichação de edificação ou monumento urbano (art. 65) e; por fim, quanto aos crimes contra a administração ambiental, a lei prevê sanções ao funcionário público que concede licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização dependa de ato autorizativo do Poder Público (art. 67).

Verifica-se, então, que a entrada em vigor da Lei de Crimes Ambientais, com a consequente unificação das sanções administrativas e penais a que se sujeitam os infratores, foi um importante marco na concretização da proteção ambiental, principalmente no que tange ao seu aspecto preventivo, diante do próprio caráter invasivo da pena.

5. O RECONHECIMENTO DO INSTITUTO PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Como já discorrido no teor deste trabalho, apesar da divergência doutrinária ainda não colocada a termo, a responsabilidade penal da pessoa jurídica vem sendo hodiernamente aplicada pelos nossos Tribunais Inferiores, tendo, por essa razão, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal firmado algumas premissas sobre o assunto.

No âmbito do STF, o recurso extraordinário de nº 548181/PR decorreu do andamento de uma ação penal proposta pelo Ministério Público Federal, em 02.08.2001, em face da Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás, de seu presidente à época, Henri Philippe Reichstul, e Luiz Eduardo Valente Moreira, superintendente responsável pela unidade subsidiária do Paraná, onde ocorreram os fatos.

De relatoria da ministra Rosa Weber, o acórdão do recurso extraordinário entendeu que exigir a concomitante participação de pessoa física e pessoa jurídica no polo passivo de ação penal contra esta intentada seria uma forma de restringir a eficácia da norma constitucional analisada (artigo 225, §3º, da Carta Política). Do contrário, não foi essa a intenção do constituinte originário, que pretendeu não apenas ampliar o alcance das sanções penais, mas também evitar a impunidade ante as enormes dificuldades de individualização dos responsáveis internamente no modelo corporativo.

Conforme desenvolveu a ministra relatora:

Ao se adotar tal linha de compreensão, condicionando a imputabilidade da pessoa jurídica à da pessoa humana, estar-se-ia quase a subordinar a responsabilização jurídico-criminal do ente moral à efetiva condenação da pessoa física, pois, na vertente ora afastada, por exigência de coerência, não haveria sentido em absolver a pessoa física, dela retirando a responsabilidade pela prática de um delito ambiental, e, ato-contínuo, condenar a pessoa jurídica.

Assim, entendendo pela desnecessidade da dupla imputação, em um julgamento caracterizado como precedente, finaliza a ministra relatora, dando provimento ao recurso extraordinário e determinando o prosseguimento da ação penal quanto à Petrobrás:

Assim, em muitas situações a busca de responsabilização penal da pessoa jurídica, sem que o mesmo fato ilícito tenha sido atribuído a pessoa física precisamente identificada, poderá decorrer de uma quase impossibilidade prática de comprovar a responsabilidade humana no interior da corporação, ante divisão horizontal e vertical de atribuições; ou de uma reconhecida amenização das culpas individuais, em face da complexidade estrutural e orgânica do funcionamento e das deliberações do ente moral, levando a um abrandamento de responsabilidades pessoais a ponto de a colaboração de cada pessoa física tornar-se diluída no processo de imputação. Por esses motivos, a Constituição Federal de 1988 (art. 225, § 3o) permite a apenação da pessoa jurídica sem que, necessariamente, se atribua o mesmo fato delituoso à pessoa física, bastando que fique demonstrado que o ilícito decorreu de deliberações ou atos cometidos por indivíduos ou órgãos vinculados à empresa, no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, enquanto comportamentos aceitos pela pessoa jurídica, concernentes à sua atuação social ordinária; e ainda que tal atuação tenha se realizado no interesse ou em benefício da entidade coletiva.

É a ementa, proferida em 06.08.2013:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3o, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta.

3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3o, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. 5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido.

No âmbito do STJ, por sua vez, o entendimento foi por muito tempo o de que não poderia permanecer a pessoa jurídica no polo passivo de ação penal sem a concomitante persecução do indivíduo responsável. Após o acórdão exarado no recurso extraordinário supra, pelo Supremo, a Corte Cidadã adequou suas decisões, sendo o habeas corpus nº 248073/MT o precedente.

De relatoria da ministra Laurita Vaz, o acórdão do HC substitutivo entendeu que a denúncia estaria apta considerando que nos crimes de autoria coletiva o entendimento é no sentido de ser prescindível a descrição minuciosa e individualizada da ação de cada acusado “bastando a narrativa das condutas delituosas e da suposta autoria, com elementos suficientes para garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório, como verificado na hipótese”.

Quanto à teoria da dupla imputação, consignou a mudança de entendimento do Tribunal em razão do recurso extraordinário do Supremo:

Para fechar, a pessoa jurídica também denunciada deve permanecer no polo passivo da ação penal. Alerte-se, em obiter dictum, que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu que a necessidade de dupla imputação nos crimes ambientes viola o disposto no art. 225, 3.o, da Constituição Federal (RE 548.818 AgR/PR, 1.a Turma, Rel. Min. ROSA WEBER, Informativo n.o 714/STF).

Finalizando o acórdão da seguinte maneira:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO-CABIMENTO. PROCESSUAL PENAL. CRIMES DOS ARTS. 54, CAPUT, E 60, AMBOS DA LEI N.o 9.605/98. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. MEDIDA EXCEPCIONAL. DENÚNCIA GERAL. POSSIBILIDADE. INÉPCIA NÃO CONFIGURADA. ATIPICIDADE DA CONDUTA ENQUADRADA COMO CRIME DE POLUIÇÃO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. VIA ELEITA INADEQUADA. EXCLUSÃO DA PESSOA JURÍDICA DO POLO PASSIVO DA AÇÃO PENAL. INVIABILIDADE. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE QUE PERMITA A CONCESSÃO DE ORDEM EX OFFICIO. ORDEM DE HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDA. 1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e ambas as Turmas desta Corte Superior, após evolução jurisprudencial, passaram a não mais admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso ordinário, nas hipóteses em que esse último é cabível, em razão da competência do Pretório Excelso e deste Tribunal Superior tratar-se de matéria de direito estrito, prevista taxativamente na Constituição da República. 2. Entretanto, a impetração de writ substitutivo de recurso ordinário não impede a concessão de ordem de habeas corpus de ofício, em situações de flagrante ilegalidade. 3. A teor do entendimento desta Corte, é possível o oferecimento de denúncia geral quando uma mesma conduta é imputada a todos os acusados e, apesar da aparente unidade de desígnios, não há como pormenorizar a atuação de cada um dos agentes na prática delitiva. No caso, a denúncia não é inepta, mas apenas possui caráter geral, e tampouco prescinde de um lastro mínimo probatório capaz de justificar o processo criminal. Precedentes. 4. Nos crimes de autoria coletiva, é prescindível a descrição minuciosa e individualizada da ação de cada acusado, bastando a narrativa das condutas delituosas e da suposta autoria, com elementos suficientes para garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório, como verificado na hipótese. 5. "[O]s denunciados causaram poluição em nível possível de resultar danos à saúde humana, bem como fizeram funcionar estabelecimento potencialmente poluidor contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes." Tais fatos, em tese, amoldam-se aos tipos penais descritos nos arts. 54 e 60, ambos da Lei n.o 9.605/98, a evidenciar que a denúncia atende o disposto no art. 41 do Código do Processo Penal, sendo inviável o prematuro encerramento da persecução penal. 6. A alegação de que o crime de poluição não se configurou, ante a falta de comprovação de perigo concreto à saúde humana, esbarra na necessidade de dilação probatória, incompatível com a via estreita do habeas corpus. 7. A pessoa jurídica também denunciada deve permanecer no polo passivo da ação penal. Alerte-se, em obiter dictum, que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu que a necessidade de dupla imputação nos crimes ambientes viola o disposto no art. 225, 3.o, da Constituição Federal (RE 548.818 AgR/PR, 1.a Turma, Rel. Min. ROSA WEBER, Informativo n.o 714/STF). 8. Ausência de patente constrangimento ilegal que, eventualmente, imponha a concessão de ordem ex officio. 9. Ordem de habeas corpus não conhecida.

Conclui-se, assim, que atualmente ambas as cortes superiores brasileiras entendem pela invalidade do condicionamento da persecução penal do responsável individual para penalização da pessoa jurídica, viabilizando o mandamento constitucional e possibilitando a punição de maneira prática.

CONCLUSÃO

Como premissa para que se entenda a relevância do debate acerca da aceitação ou negação da responsabilidade penal da pessoa jurídica na realidade brasileira, é preciso que se tenha em mente a atual conjuntura do capitalismo mundial. O mundo globalizado coloca a pessoa jurídica no centro das relações econômicas como sujeito principal do desenvolvimento de um país, ou, cabendo assim dizer, sua mola propulsora.

Seguindo esse raciocínio, o tema da responsabilidade penal é pauta recorrente no cenário jurídico nacional, especialmente quando o assunto é meio ambiente, diante do aumento do papel das empresas no desrespeito à legislação e da dificuldade de se localizar o autor e individualizar as condutas danosas dentro do ente coletivo.

No entanto, o desencontro de soluções existe porque, mesmo havendo expressa previsão constitucional garantindo a sanção penal às empresas, os penalistas, firmados nos dogmas tradicionais da sistemática penal, não a admitem, em respeito à natureza fictícia do ente coletivo (teoria desenvolvida pelo jurista alemão Friedrich Carl von Savigny).

Por outro lado, os ambientalistas e constitucionalistas, ao se apoiarem na ideia de natureza real das empresas (teoria desenvolvida por Otto Gierke), veem na pessoa jurídica um ser real, um verdadeiro organismo, tendo vontade que não é simplesmente a soma de vontade dos associados, nem o querer dos administradores. Dessa forma, do mesmo modo que uma pessoa física, possuindo capacidade volitiva e de ações próprias, a pessoa jurídica poderia praticar ilícitos penais.

Importante deixar claro que a relevância do assunto somente surgiu após as duas grandes guerras, com o crescimento da poluição ambiental gerada pela busca incessante pelo lucro, da concorrência desleal, das lesões aos direitos do consumidor na sociedade de massa, da disseminação do terrorismo, da produção de armas químicas e biológicas, dentre outros exemplos, nos quais as sanções civis e administrativas tornaram-se insuficientes.

Assim, atenta às novas tendências legislativas, a pesquisa buscou demonstrar que, embora existam duas vertentes igualmente fundamentadas acerca da possibilidade ou não de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, a aceitação é o caminho mais próspero e eficaz para alcançar os níveis máximos de proteção dos direitos transindividuais, em especial, o meio ambiente.

É sabido que a regulamentação existente ainda carece de aprimoramento para a total aplicação dessa nova modalidade de responsabilidade. No entanto, admiti-la é o primeiro passo para a punição efetiva dos novos atores de ilícitos ambientais.

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Sobre o autor
Jackson Frederico Vale

Advogado e Pós-Graduando em Direito Processual Penal e Legislação Penal Especial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALE, Jackson Frederico. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: entendendo sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4926, 26 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54370. Acesso em: 22 dez. 2024.

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