3. EFICÁCIA VERTICAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Para se consolidar a democracia é importante estabelecer maneiras de combater as arbitrariedades que porventura possam aparecer considerando as relações de poder. Os direitos de defesa qualificam-se como direitos públicos subjetivos e, portanto, oponíveis exclusivamente nas relações entre Estado e particulares. Trata-se da maneira que um indivíduo tem de se defender de ações negativas do Estado.
Atualmente há um consenso doutrinário que tais defesas possam englobar direitos fundamentais individuais, coletivos e sociais. Conforme preceitua a Constituição Federal em seu art. 5º, §1º[IX], possuem aplicabilidade imediata.
Nesse mesmo sentido, é o entendimento do ministro Gilmar Mendes[X] acerca do direito de defesa:
Importante consequência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais está em ensejar um dever de proteção pelo Estado dos direitos fundamentais contra agressões dos próprios Poderes Públicos, provindas de particulares ou de outros Estados.
Esse dever de proteção mostra-se associado, sobretudo, mas não exclusivamente, aos direitos à vida, à liberdade e à integridade física (incluindo o direito à saúde). O Estado deve adotar medidas — até mesmo de ordem penal — que protejam efetivamente os direitos fundamentais.
Como o intuito do nosso trabalho é fazer uma análise específica sobre o direito à moradia, verificaremos a seguir como os governos têm trabalhado para proporcionar à sociedade tal direito e suas implicações na relação Estado-indivíduo. Mais do que isso, verificaremos as falhas na execução de políticas públicas, em especial no que corresponde à moradia digna.
3.1 Crescimento Populacional x Diminuição de Recursos
O crescimento populacional de um país é definido por dois fatores: a migração e o crescimento vegetativo (diferença entre taxa de natalidade e de mortalidade). No Brasil o fluxo migratório ocorreu de forma mais intensa no período colonial se estendendo até a década de 50. Após esse período, o crescimento vegetativo passou a ser a maior causa de aumento populacional, segundo Wagner de Cerqueira[XI]. No período compreendido entre 1930 e 1955 o declínio do café fez o movimento do campo para as cidades aumentar sobremaneira. Trouxe notórios ganhos à capacidade produtiva de algumas regiões do país, no entanto, iniciou-se também um problema que perdura até hoje e acompanha as trocas de governo: a formação de áreas urbanas irregulares.
Nas grandes cidades esse problema é mais visível, e a despeito de regras e normas estabelecidas para construções civis, a demanda por moradia é maior do que a fiscalização é capaz de coibir, e dessa forma, vão surgindo cada vez mais favelas e comunidades que claramente não respeitam as normas de segurança básicas estabelecidos pelos estatutos das cidades.
Para piorar, a capacidade de planejamento e fiscalização do Estado é inversamente proporcional ao crescimento populacional. Segundo dados do IBGE[XII] (2013) o salto populacional no Brasil passou de 119.002.706 pessoas na década de 80 para uma projeção de 205.156.540 pessoas em 2015, um crescimento de 172,4% da população brasileira.
Desde 1988 quando a moradia passou a ser uma preocupação mais efetiva prevista na Constituição Brasileira, diversos programas habitacionais foram criados no intuito de solucionar essa questão. Infelizmente, esse é um problema longe do fim. Até porque o investimento nessa área que deveria aumentar a cada ano, considerando o aumento populacional, está fazendo o caminho inverso. De acordo com o relatório de execução orçamentária do Ministério das Cidades[XIII], o orçamento do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social destinado a moradia digna vem caindo ano a ano. Em 2012 foi de R$ 548.305.850,34 (quinhentos e quarenta e oito milhões, trezentos e cinco mil, oitocentos e cinquenta reais e trinta e quatro centavos), em 2013 foi de R$ 213.203.575,30 (duzentos e treze milhões, duzentos e três mil, quinhentos e setenta e cinco reais e trinta centavos), e em 2014 foi de somente R$ 46.843.068,33 (quarenta e seis milhões, oitocentos e quarenta e três mil e sessenta e oito reais e trinta e três centavos).
Somam-se a isso outros fatores que tornam relevantes a temática sobre a moradia, e que, apesar de figurarem em outros planos do governo, acabam por influenciar no direito constitucional da moradia digna. São eles: o saneamento básico, o transporte público, o lazer e a segurança. São direitos que se complementam para trazer dignidade ao cidadão brasileiro.
Diante desse quadro, onde os investimentos estão reduzindo a cada ano quando deveriam aumentar, uma parcela da população brasileira sem uma resposta afirmativa do Estado busca meios alternativos para enfrentar uma situação degradante e indigna que é a falta de moradia.
3.2 Falhas na execução de programas habitacionais
Não bastasse a diminuição de recursos destinados à moradia, o setor ainda enfrenta problemas na execução dos projetos habitacionais. Em 2009 o governo federal lançou o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) operacionalizado pelo Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) com intuito de beneficiar famílias carentes com ganhos não superiores a R$ 1.600,00 (hum mil e seiscentos reais) mensais. O investimento nos quatro primeiros anos foi de R$ 36,1 bilhões para 737 mil unidades habitacionais. Diante desse quadro de investimentos vultuosos, foi autorizado em 2012 uma auditoria pelo Tribunal de Contas da União através do Acórdão 2431 que buscou avaliar aspectos relacionados às qualidades das construções e à infraestrutura no entorno dos empreendimentos além de verificar se as metas governamentais estavam sendo cumpridas e se os beneficiários estavam recebendo trabalho técnico social. Todas as informações foram retiradas do Relatório de Auditoria[XIV] de outubro de 2013 referentes à análise do período de 2012. Ainda não foi feita uma auditoria posterior.
A constatação desse relatório é alarmante se considerarmos a grandiosidade e amplitude do programa. Foram entregues empreendimentos com problemas relacionados às fases de concepção e execução das obras, como defeitos ou vícios construtivos, dimensões inadequadas, instalações e materiais empregados de baixa qualidade. Além disso, foi constatada a indisponibilidade de equipamentos de lazer bem como deficiências na pavimentação asfáltica, calçamento, drenagem urbana e sistema de esgoto sanitário ou pluvial. No que tange ao desenvolvimento do Trabalho Técnico Social junto aos beneficiários os problemas são vislumbrados tanto na fase de pré-ocupação quanto na fase de pós-ocupação. Diante do exposto, é importante ressaltar os pontos cruciais do relatório onde se averigua as falhas mais recorrentes à aplicação do referido programa social habitacional:
3.2.1 Atrasos nas obras e custo elevado de escrituração
É comum todo empreendimento, seja de pequeno, médio ou grande porte seguir um cronograma de execução tendo como base a fase de planejamento. Como já visto, o ideal para a aplicação das políticas públicas seria adotar o PDCA. De fato, o atraso médio para entrega das obras foi de 15 meses, o que não chega a ser tão substancial. Segundo informações coletadas pela auditoria junto à CEF, a situação das obras contratadas e entregues por região em dezembro de 2012 era a seguinte: região norte (71,9%), região nordeste (73,7%), região centro-oeste (96,5%), região sudeste (77,3%) e região sul (89,1%). Por esse prisma, pode-se ingerir que a maioria dos empreendimentos seguiu o cronograma corretamente. No entanto, outros fatores devem ser considerados, o que analisaremos mais à frente.
Nesse momento torna-se conveniente abordar a questão da escrituração que é primeiro passo após a entrega das casas aos beneficiários. A Lei 11.977/2009 estabelecia um desconto de 100% nas custas e emolumentos referentes a escritura pública para os beneficiários do PMCMV com renda familiar mensal até três salários mínimos. Posteriormente, a Lei 12.424/2011 diminuiu esse desconto para 75%. Mas o que a auditoria identificou foi a prática recorrente de cartórios ignorando essa desoneração e cobrando pelo registro cartorial e outras despesas. Com isso, muitas famílias que não conseguiram arcar com esses custos, ou se endividaram ou continuam sem a escritura do seu imóvel. Nesse mesmo sentido, percebeu-se que não há no texto de lei nada que indique aos municípios a importância de se reduzir o ônus tributário referente à transmissão de bens imóveis (ITBI) e por conseguinte foi mais um fator negativo a ser considerado.
3.2.2 Infraestrutura dos empreendimentos
Como analisado anteriormente, o cronograma de entregas de empreendimentos não sofreu atrasos significantes, contudo a pergunta que fica é até que ponto as obras foram negligenciadas para se conseguir tal resultado? O relatório do TCU apontou falhas estruturais das mais diversas de acordo com reclamação dos beneficiários. Os problemas mais encontrados foram: vazamentos e infiltrações em paredes, pisos ou tetos (75,4%), fissuras e trincas em paredes, pisos ou tetos (61,5%), ausência de equipamentos de lazer e uso comum (49,2%), defeitos ou fixação deficientes em portas e janelas (41,5%), inexistência ou insuficiência de instalações elétricas, telefônicas ou de antenas (32,3%), isso para citar apenas algumas.
A origem das patologias encontradas pode estar associada à fase de concepção, com a aprovação de projetos em desacordo com as delimitações do programa e erros de dimensionamento, bem como à fase de execução da obra com o uso de materiais de baixa qualidade ou inadequados, isso sem contar com a pouca capacitação da mão de obra empregada. Só para exemplificar, diversas unidades projetadas para receber cadeirantes ficaram fora do padrão. As cadeiras de rodas não entravam no banheiro que não possuía barras laterais e também não permitiam o deslocamento do cadeirante dentro de casa.
Seja qual for o motivo que ocasionaram os problemas estruturais, não há dúvidas de que compromete o programa como um todo, se considerarmos que o objetivo não é só proporcionar um teto mas sim uma moradia digna.
3.2.3 Localização dos empreendimentos
Outro ponto controvertido encontrado pelos auditores do TCU diz respeito à inserção urbana dos empreendimentos. Na própria lei que institui o PMCMV, em seu artigo 5º-A, inciso IV é assegurado o compromisso com o poder público de proporcionar e ampliar quando necessário equipamentos e serviços relacionados à saúde, lazer e transporte público.
O que ser viu foram vários empreendimentos, alguns de proporções tão grandes que se comparam a bairros, e totalmente desprovidos do mínimo necessário para proporcionar conforto e segurança aos seus moradores. A maioria sem creches, unidades de saúde, sem escolas até mesmo sem comércio local. Consequentemente o gasto com transporte aumenta consideravelmente, isso sem contar os longos percursos à pé para se conseguir um transporte público.
A questão da insegurança também foi um item muito abordado pelos beneficiários do programa nesse relatório. Segundo eles, há pouca ronda policial e na maioria dos casos, nenhuma unidade policial instalada nesses novos conglomerados. Diante da ausência estatal, a criminalidade aumenta sobremaneira em virtude do tráfico de entorpecentes.
3.2.4 O Trabalho Técnico Social
Considerando a amplitude desse programa habitacional, é de extrema importância realizar um trabalho social com a população diretamente beneficiada com o intuito de otimizar os resultados. Nesse sentido, esse trabalho é dividido em duas partes: pré-contratual e pós-contratual. A primeira parte trata de orientar os beneficiários acerca dos critérios de participação e condições contratuais, procedimentos para a entrega dos imóveis, noções básicas sobre organização condominial entre outros. Já na segunda parte, as ações buscam fortalecer os laços de vizinhança, educação ambiental e patrimonial, planejamento e gestão de orçamento familiar, dentre outros.
Novamente, os auditores encontraram situação divergente do planejado. As ações educativas muitas vezes não ocorrem, ou quando ocorrem, são descontinuadas. Na fase pré-contratual destaca-se a demora na seleção dos beneficiários pelo poder público local além da morosidade para elaboração e apresentação do projeto de TTS (Trabalho Técnico Social). Na fase pós-contratual o ponto crítico é a pouca efetividade nas ações de apoio à gestão condominial. Com isso, há uma dificuldade de integração dos beneficiários do programa ao novo ambiente social em que ele vai ser inserido.