1. INTRODUÇÃO
Primeiramente deve ser entendido que uma relação processual é composta por pessoas, pessoas que recorrem ao judiciário na esperança de resolverem seu litígio, recorrem ao judiciário, pois sabem que por meio da forma jurídica é que haverá a proteção de um interesse juridicamente tutelado. Se esse interesse juridicamente tutelado não é efetivado normalmente, é necessário pretendê-lo, para que um juiz através de um processo o torne efetivo, ou seja, para que um juiz declare a existência do direito e diga como esse direito, em termos de resultados práticos será concretizado e satisfeito.
O cidadão leigo de conhecimento jurídico tem pouco ou nenhum conhecimento de como funciona o procedimento para a solução de seus conflitos, por isso há a necessidade de uma humanização do processo, no sentido de que a veneração pela forma processual e de todos os seus ritos deve ser deixada de lado para que a finalidade precípua de um processo seja alcançada, a solução dos conflitos de interesses das partes envolvidas. Pois como bem aponta Carnelutti (1999, p.72), “o processo é um conjunto de atos dirigidos à formação ou à aplicação dos preceitos (...) um método para formação ou para a aplicação do direito que visa a garantir o bom resultado, ou seja, uma tal regulação do conflito de interesses que consiga realmente a paz e, portanto, seja justa e certa”.
Josef K., personagem de “O Processo”, irá ser utilizado no presente artigo à titulo exemplificativo de como a primazia da forma processual acaba desumanizando a relação processual. No caso em comento, esta desumanização, como observado da leitura do livro de Kafka, acabou por ser fatal ao personagem.
A existência dos aspectos humano e dialógico do processo são mais do que óbvios, entretanto não é incomum que sejam esquecidos pela ciência processual e pelo próprio Estado em sua atuação jurisdicional, eis, portanto, a justificativa deste trabalho, o de combater a “ensimesmação” processual. Utilizando-se de princípios processuais e garantias fundamentais, busca a valorização do jurisdicionado e da estrutura dialógica do processo, de forma que a efetividade do sistema processual de solução de conflitos seja concretizada.
2. O DEVIDO PROCESSO LEGAL, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO NO PROCESSO KAFKIANO
A Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo 11°, n°1, garante que: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias lhe sejam asseguradas”.
Nas palavras de Candice de Jesus (2009, p.3), a ampla defesa e o contraditório são as bases do devido processo legal. A ampla defesa consiste em assegurar que o réu tenha condições de trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. Já o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa. A todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de oposição por parte do réu, bem como de trazer a versão que melhor lhe apresente ou fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.
A ampla defesa, de acordo com Didier, é direito fundamental de ambas as partes, consistindo no conjunto de meios adequados para o exercício do adequado contraditório e que devido ao desenvolvimento da dimensão substancial do principio do contraditório (poder de influência), a ampla defesa corresponderia ao aspecto substancial do principio do contraditório.
Josef K, personagem principal do livro “O Processo” (ou na verdade, o personagem principal seria o processo em si? Fica a reflexão) é réu em um processo criminal e não sabe do que está sendo acusado e nem qual é o tribunal que lhe acusa. Ao ser notificado de que é réu no processo e está detido, não lhe é dito o porquê da detenção, os próprios guardas que lhe detém desconhecem o teor da acusação, conforme pode ser observado a seguir:
O senhor está detido. É o que parece – disse K. – Mas por quê? – perguntou então. – Não fomos incumbidos de dizê-lo. Vá para o seu quarto e espere. O procedimento acaba de ser iniciado e o senhor ficará sabendo de tudo no devido tempo (...). Como posso estar detido? E deste modo? Lá vem o senhor de novo – disse o guarda, mergulhando um pão com manteiga no potinho de mel. – Não respondemos a perguntas como essa. (KAFKA, 2005, p.9)
O principio do contraditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder e nas palavras de Fredie Didier Jr (2013, p.56), “o princípio do contraditório pode ser decomposto em duas garantias: participação (audiência; comunicação; ciência) e possibilidade de influência na decisão”.
Josef K. tomou ciência de que estava sendo processado criminalmente e chegou a participar de uma audiência de instrução, entretanto como observado na narrativa, Josef K. por mais que tivesse tido a oportunidade de discursar, de nada influenciaria o magistrado ou os dois partidos presentes na audiência de instrução, pois K. estava apenas sendo testado, como se estivesse encenando um papel pré-definido em um teatro de fantoches, conforme se observa:
Então é isso – bradou K. lançando os braços para o alto, o súbito reconhecimento queria espaço –, todos vocês são funcionários; pelo que estou vendo, são vocês o bando corrupto contra o qual eu falei, vocês se reuniram aqui como ouvintes e espias, formaram partidos de fachada, um dos quais aplaudiu para me testar; vocês queriam aprender como se deve enganar um inocente! (KAFKA, 2005, p.51)
Como bem observa Didier (2013, p.57), não adianta permitir que a parte simplesmente participe do processo. Somente isso não é suficiente para que se efetive o principio do contraditório. Didier aponta ainda que é necessário que se permita que a parte seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do Magistrado. Josef K não tinha como exercer esse poder de influência, uma vez que o tribunal o considerava culpado antes mesmo de K. ser inquirido, tal raciocínio apreende-se de uma passagem da narrativa, na qual, os guardas ao fazerem a detenção de K. dizem que as autoridades não buscam a culpa na população, mas conforme consta na lei, são atraídas pela culpa. Por raciocínio lógico, já que K. atraiu a atenção da lei, deve ser culpado.
Como visto o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório são garantias necessárias que devem ser asseguradas no decorrer do processo judicial, pois o devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder5. Tais garantias não foram observadas para Josef K., que sofreu abuso de poder desde o momento em que foi citado, de tal forma teve prejudicada sua defesa, pois, não há como K. se defender da acusação uma vez que não sabe do que está sendo acusado.
3. A DESUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES PROCESSUAIS
A Veneração de cumprir o processo priorizando a forma determinada pela lei, em Kafka, acaba por desumanizar as relações processuais, porque como se apreende da narrativa, é indiferente saber qual o interesse de Josef K no processo, tanto faz se ele é pessoa humana ou mera peça processual, pois a forma da lei há de prevalecer, pouco importa se a ele não foi observado a ampla defesa e o contraditório, pois neste processo, a finalidade não é a composição do litigio, não é a busca da verdade real, não é a construção de uma dialética processual para saber se Josef K. é realmente culpado, pois no caso, o processo é fim em si mesmo, essa é a lei e não há nada de errado nisso. Conforme se observa:
É tudo o que somos, mas a despeito disso somos capazes de perceber que as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui não há erro. Nossas autoridades até onde conheço, e só conheço seus níveis mais baixos, não buscam a culpa na população, mas conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar – a nós, guardas. Esta é a lei. Onde aí haveria erro? (KAFKA, 2005, p.12.)
Podemos entender que a obra “O Processo” não se trata somente de uma critica à burocracia e à administração, mas é retrato de um sistema de rede com regulamentos internos que são tidos como contingentes, incompreensíveis e inacessíveis. É como se o sistema processual funcionasse sozinho. Logo, o processo fim em si mesmo é fator desumanizador do processo, pois não há uma adequada valorização das partes interessadas, uma vez que bastaria colocar o nome do acusado no sistema que seria dado início ao programa.
Essa incompreensibilidade e inacessibilidade de um processo fim em si mesmo acabam sendo retroalimentadas pelos próprios juristas ao utilizarem uma linguagem em latim e de sinônimos rebuscados, que dificultam a compreensão da mensagem jurídica para os cidadãos que não conseguem entender seus direitos e deveres.
O indivíduo desconhece a lei, não a compreende e quando a tenta entender se depara com esse obstáculo de rebuscamento linguístico. Pela falta de compreensão da linguagem jurídica, acaba por ter seu acesso ao direito cerceado, o que só contribui para desumanização do processo, uma vez que o jurisdicionado não consegue entender o que está acontecendo no processo, não consegue entender o que o juiz quis dizer ao proferir a sentença e não consegue entender as orientações de seu advogado.
A desumanização das relações processuais decorrente da “ensimesmação” processual pode ocorrer também:
1) pela não observância de princípios jurídicos que devem reger um sistema processual, pois os princípios são normas imediatamente finalísticas, estabelecem um fim a ser atingido. Tratando do principio do devido processo legal (e de maneira decorrente, o principio do contraditório e da ampla defesa), o fim pretendido é que a todo sujeito de direito deve ser conferido o direito fundamental a um processo devido, justo, equitativo. Ora, se este é o fim ora pretendido por tais princípios, a não observância dos referidos princípios acarreta prejuízo ao fim pretendido e consequente desumanização das relações processuais, uma vez que o individuo é o objeto do fim almejado.·.
2) ao fato de que o cidadão, parte dessa relação processual, ser visto como mera peça processual, ou seja, o individuo é visto como mais um número de processo que abarrota o judiciário, não é visto como pessoa humana detentora de um direito que está em conflito, ao qual o processo deve existir como meio para atender à finalidade de solucionar esse conflito. É necessário, portanto, que haja uma valorização do individuo como parte, que haja uma participação mais efetiva. Pedro Bentes Filho fala dessa participação efetiva quando trata da oralidade no processo:
A verdadeira oralidade é aquela que concretiza a dialética processual, em que as partes realmente “falam” entre si e com o juiz e são realmente “escutadas”, ao mesmo tempo em que “escutam”, tudo gerando uma participação efetiva, concreta e real na atuação do poder jurisdicional, tornando-se co-participes da produção da decisão. (BENTES FILHO, 2002, p.90)
As partes são os verdadeiros protagonistas do processo, devem, portanto, deixar de serem sujeitos processuais ocultos que meramente suplicam ou são suplicados.
Nas palavras de Jaqueline Mielke, existe um modelo de processo elaborado a partir das teorias que sustentaram a modernidade. Entretanto, a sociedade se transformou. Portanto, o que talvez fosse perfeitamente compatível com a era moderna, apresenta problemas com o atual momento vivenciado, a chamada pós-modernidade, idealizada por Franz Kafka.
Tal premissa ratifica o pensamento de que a primazia pela forma processual, talvez, antes compatível com a era moderna, acarreta problemas graves com o atual momento da pós-modernidade. Sob o nosso prisma, um destes graves problemas decorrentes da veneração pela forma processual como ser místico onipotente capaz de criar um mundo paralelo fantasioso – “o que não está no processo não está no mundo e, portanto, não existe” – é a desumanização das relações processuais.
4. SUPERAÇÃO DO PROBLEMA E A RECENTE EXPERIÊNCIA BRASILEIRA COM O NOVO CPC
A “ensimesmação” processual como já visto, é grave problema que desumaniza o processo em muitos aspectos.
Pedro Bentes Filho defende a implementação de uma nova oralidade como instrumento de humanização do processo. Para o referido autor, deve ser dado destaque a aspectos cruciais que afirmam a oralidade como participação política; como fator de influência do jurisdicionado frente ao poder estatal; como meio de garantir voz às partes, principalmente aos excluídos; como manifestação de humanidade/humanização da relação processual. O fator de humanização do processo está no fato dessa nova oralidade valorizar o homem que nele comparece.
Segundo Pedro Bentes Filho:
A nova oralidade, assim, é um antídoto eficiente à esquizofrenia processual do mundo formal paralelo dos autos, dos argumentos “sem rosto”, dos discursos jurídicos frios, constantes de escritos técnicos assépticos e falaciosos, às vezes preparados com o deliberado propósito de confundir, complicar e esconder a realidade, e que escondem o drama humano cru e nu existente por de trás das paginas dos autos. (BENTES FILHO, 2002, p. 166)
J. J. Calmon de Passos (2000, p.93), defende que o processo de produção do Direito é sempre dependente da realidade social que busca ordenar e a ela se vincula, objetivando emprestar-lhe a segurança, mediante a predeterminação e institucionalização de modelos de solução de conflitos que são aplicados aos casos concretos. Em função disso, somente se pode falar em uma real pacificação social se tivermos um Direito Processual Civil adequado à realidade moderna, e não a outros momentos históricos. Assim, podem existir mecanismos processuais ainda vigentes, que talvez muito tenham servido no passado em certo momento histórico, mas que hoje estão absolutamente superados. Cita como exemplo, o moroso procedimento ordinário.
Para Mielke Silva, é preciso (re) construir o Direito Processual Civil a partir da sociedade em que vivemos atualmente. Para isso, é preciso reconhecer que ele está adaptado a uma tradição da era moderna e que, por esta razão, é imperfeito e insuficiente para resolver os conflitos que emergiram nesta nova era.
Neste sentido, a recente experiência brasileira com a elaboração do Código de Processo Civil de 2015 representou um grande avanço na superação da ideia de processo como mero instrumento, e consequentemente um avanço para superar a desumanização existente nas relações processuais ao tornar as ações cíveis mais simples e mais céleres, reduzindo recursos e diminuindo formalidades, por exemplo.
A previsão no novo diploma processual civil de uma audiência preliminar de conciliação é exemplo de importante valorização humana do processo, uma vez que agora os Tribunais terão que criar centros judiciários de conciliação e mediação, com profissionais especializados, para tentativa de acordos. Será designada audiência de conciliação prévia antes mesmo do oferecimento de contestação do réu.
Segundo o referido diploma processual, o réu receberá citação, não para apresentar a contestação e sim para comparecer a uma audiência de conciliação ou mediação. Apenas se não houver a transação é que o prazo para contestação será iniciado, de modo que o processo se torna mais célere, pois uma série de procedimentos que ocorriam antes das partes serem ouvidas, agora com este novo código passa a ser dispensada, se houver transação, de forma que tal simplicidade não acarreta prejuízo algum ao processo.