5. Caracterização da responsabilidade civil do Estado
Chega o momento de se explicar o que seria, na prática, a responsabilidade civil do Estado. Quando esta estaria caracterizada? Ou em outras palavras, quando o Estado se obriga a indenizar alguém pelos danos que lhe causa.
5.1 Pressupostos ao direito à reparação
Para começar, devemos entender que para responsabilizar o Estado por um dano, é imprescindível que este dano seja atribuído ao Estado, melhor dizer, que seja fruto de uma atuação ou omissão dolosa de sua parte, e para haver esta atribuição é necessário que se entenda o conceito de nexo de causalidade, pois não vigora entre nós a teoria do risco integral, ou seja, o Estado não é um garantidor universal.
Aí estão os elementos bastante para caracterizar a responsabilidade civil do Estado: Ação ou omissão dolosa por parte do estado; efetivo dano e nexo de causalidade entre os primeiros e o último. Cada um desses elementos será melhor estudado em tópicos à parte a partir de agora.
5.1.1 A efetividade do dano
A demonstração do dano deve mostrar a ocorrência de abalo na situação econômica ou moral da vítima em virtude de ação ou omissão de atividade exercida pelo Estado através de seus agentes. Assim, o dano pode atingir tanto o patrimônio econômico da vítima, resultando em perdas pecuniárias, como também o seu patrimônio moral e social.
Nunca é demais lembrar que o dano que enseja a reparação estatal, para ser considerado efetivo, não pode ser um mero aborrecimento. Carlos Roberto Gonçalves, citando Agostinho Alvim assim descreve o que seria dano:
Para Agostinho Alvim, o termo ‘’ dano, em sentido amplo, vem a ser a lesão de qualquer bem jurídico, e aí se inclui o dano moral. Em sentido estrito, dano é, para nós a lesão do patrimônio; e patrimônio é o conjunto das relações jurídicas de uma pessoa, apreciáveis em dinheiro’’.(GONÇALVES, 2014, Pg. 365)
Das lições do renomado civilista é licito se concluir que o dano pode ser tanto patrimonial como moral, na verdade hodiernamente já é bastante difundido, na doutrina e na jurisprudência, o conceito de dano estético, autônomo em relação ao dano moral, nesse sentido, é bastante elucidativo o seguinte julgado do superior tribunal de justiça:
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO QUE SE MANTÉM POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DOS ARTS. 1.583 E 1.584 DO CÓDIGO CIVIL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. REPARAÇÃO DE DANOS ESTÉTICOS E MORAIS. ATAQUE DE ANIMAL. RESPONSABILIDADE DO DONO OU DETENTOR. SÚMULAS N. 7 E 83/STJ. QUANTUM INDENIZATÓRIO. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. BASES FÁTICAS DISTINTAS. RECURSO MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 557 § 2º, CPC. 1. O divórcio, por si só, não é capaz de alterar a guarda de menor reconhecida por decisão judicial. 2. Não há julgamento extra petita quando são apreciadas especificamente as questões objeto da lide. 3. Incide a Súmula n. 7 do STJ na hipótese em que a tese versada no recurso especial reclama a análise dos elementos probatórios produzidos ao longo da demanda. 4. É cabível a cumulação de danos morais com danos estéticos, ainda que decorrentes do mesmo fato, quando são passíveis de identificação em separado. 5. Não há como conhecer de recurso especial fundado em dissídio jurisprudencial ante a ausência de demonstração de similitude fática e jurídica entre os julgados. 6. Aplica-se a multa prevista no art. 557, § 2º, do CPC, na hipótese de agravo regimental manifestamente improcedente, ficando condicionada a interposição de qualquer outro apelo ao depósito do respectivo valor. Jurisprudência/STJ - Acórdãos Página 1 de 2 7. Agravo regimental desprovido. Aplicação de multa de 1% sobre o valor corrigido da causa.
(AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2012/0143198-6. JULGADO EM: 11/06/2013)
Apesar de existirem, além do dano patrimonial, o moral e o estético, sem sombra de dúvida, é o dano patrimonial aquele que o Estado mais provoca, este fica caracterizado quando a vítima sofre um desfalque em seus bens corpóreos, como no exemplo, já citado nesse trabalho, da obra do metrô que, por um erro técnico, danifica algumas residências ao seu redor.
O dano moral, por sua vez é algo que atingem o intimo da vítima, sua boa fama, seu bom conceito social, algo que não pode ser tocado fisicamente mas que estar igualmente protegido pelo direito.
Assim fica definido que, para efeitos de reparação civil de dano por parte do Estado, dano efetivo é aquele que causa significativo desfalque em qualquer bem da vítima que seja, juridicamente tutelado, seja ele material ou imaterial, e desde que tal desfalque seja superior àquele suportado por toda a coletividade.
5.1.2 O nexo causal
Na responsabilidade civil do Estado na modalidade objetiva, como é adota na Constituição brasileira, é possível que se tenha o direito à indenização sem que haja dolo ou culpa, porém é imprescindível a demonstração de uma relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o dano que se pretende reparar.
Essa relação de causa e efeito é o que se entende por nexo causal, sem este elo não há razão para cobrar qualquer tipo de indenização ao Estado. Antes de se prosseguir e passar para o próximo tópico caba aqui fazer uma importante observação sobre a conduta do agente estatal. É preciso se diferencia, com base na dicção do parágrafo sexto do artigo 37 da Constituição, o dano causado pelo agente do Estado nesta condição, ou seja, agindo em nome do Estado, e o dano causado por aquele que ostente a qualidade de agente público, mas que age por sua conta e risco.
Para chegar a um concito sobre quem seria considerado agente estatal, muitos autores se valem da dicção do artigo 327 do código penal brasileiro, que aqui se faz indispensável a transcrição.
Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
Desta forma, é indiferente se há remuneração ou não, se a função é transitória ou permanente. É por isso mesmo que o mesário que serve à justiça eleitoral em dia de eleição é considerado agente público para efeitos de responsabilidade civil do Estado.
A importância desta diferenciação se revela no momento em que se vai determinar quem deve indenizar o lesado, pois o Estado não responde por danos causados por aqueles que mesmo sendo agente seu não esteja agindo em seu nome no momento do dano, em casos como esses o lesado deve buscar a reparação diretamente do agente público.
Outra discussão bem recente sobre a relação entre o agente estatal e sua conduta causadora de dano é acerca do chamado benefício de ordem, ou seja, se o lesado pode acionar diretamente o agente púbico ou se somente a pessoa do Estado.
Entendemos que diante de situações como essas não há que se falar em acionar diretamente o servidor que praticou o ato lesivo, isso se deve à teoria do órgão que significa que os atos praticados por servidor estatal, em nome deste, só ao Estado pode ser imputado, portanto o servidor só pode ser acionado pelo próprio Estado, em ação regressiva, se este agiu com culpa ou dolo, além disso ao particular lesado é bem mais interessante acionar o Estado que certamente tem mais condições financeiras de ressarcir o dano lesado.
É o que o Supremo Tribunal Federal chama de teoria da dupla garantia, que garante à vítima o direito de ser lesado, porém também garante ao servidor o direito de ser cobrado apenas pelo Estado.
Veja nesse sentido o julgado do STF.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: §6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PROPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO. O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicas, é que podem responder, objetivamente, pela reparação de dano a terceiro. Isso por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito, ou de direito privado que preste de serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativamente e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(RE 327904 / SP- SÃO PAULO. Julgamento: 15/08/2006. Órgão julgador: primeira turma)
É importante, por fim, pontuar que em determinados casos o Estado pode ser chamado para responder por atos de terceiros, tanto de forma solidaria como subsidiaria.
Podemos citar como exemplo em que o Estado responde por ato de terceiro a situação em que pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviço público por delegação, causa dano ao usuário do dito serviço e este ao acionar o delegatório do serviço, o encontra totalmente insolvente, não pode o particular, em situações como essas ficar com seu patrimônio desfalcado, tem ele o direito de acionar o Estado para ver reposto os seus bens.
Para a maioria da doutrina especializada no assunto, caso como o acima citado são exemplo de responsabilidade na modalidade subsidiaria, uma vez que se entende que ao particular somente é lícito acionar o Estado depois de esgotadas as esperanças de ser ressarcido pelo particular delegatário do serviço público.
Braga Netto nos traz o seguinte exemplo:
Pensemos numa empresa de ônibus. Há um acidente terrível, com muitas dezenas de mortos. A empresa, já economicamente instável, não suporta o ônus das indenizações. O Estado pode ser chamado a responder, porém em caráter subsidiário, isto é, só depois que a empresa, acionada, comprovadamente não tiver como fazê-lo. (BRAGA NETTO, 2012, Pg. 135)
Exemplo semelhante é trazido por Celso Antônio Bandeira de Mello.
5.1.3 Causas que excluem a responsabilidade civil do Estado.
Felipe Peixoto Braga Netto, discorrendo sobre o assunto em questão assim se manifesta:
À luz da teoria do risco administrativo, adotada pelo Brasil desde a Constituição de 1946, o Estado responde objetivamente pelos danos que causar, ficando, porém, isento desse dever se conseguir provar alguma das excludentes de responsabilidade civil (caso fortuito e força maior; culpa exclusiva da vítima). (BRAGA NETO, 2012, Pg.131)
Uma das grandes diferenças entre a teoria do risco administrativo e do risco integral é na primeira o Estado pode se eximir do dever de reparar o dano, desde que o dano seja proveniente de culpa de terceiro, força maior, culpa exclusiva da vítima ou culpa concorrente, neste último caso responderá na medida em que concorreu para o dano, sendo mais adequado falar-se em causa que atenua e não que exclui a responsabilidade civil do Estado.
É interessante dizer que na ocorrência de uma destas situações acima descritas, à exceção da culpa concorrente, que apenas atenua, fica rompido o elo denominado nexo causal, o que faz desaparecer a responsabilidade que o Estado teria de indenizar o atingido pelo dano.
Cada uma destas causa de exclusão de responsabilidade que é apontada pela doutrina mais tradicional será estudada de forma mais detalhada à diante. Deixando, contudo, o alerta de que existe uma tendência de autores mais modernos, como Matheus Carvalho, por exemplo, de considerar essas causas apenas com exemplos de situações que excluem a responsabilidade civil do Estado, não como as únicas.
5.1.3.1 A culpa de terceiros
Trata-se de excludente bem óbvia, sob o ponto de vista da teoria do risco administrativo, é certo que essa teoria reconhece que toda atividade estatal tem intrínseco, o que não significa que tal risco de fato vai se efetivar.
Assim sendo, se o dano sofrido por um particular veio exclusivamente de uma ação de um terceiro, sem qualquer vínculo com o Estado, não agindo em seu nome de nenhuma forma admitida, não se pode falar em nexo de causalidade, e por não se pode falar em dano.
Imaginemos um exemplo hipotético em que alguém, violando todas as medidas de segurança tomadas, invade determinado prédio do governo, rouba um veículo da que órgão e em seguida atropela alguém. O atropelamento não pode ser cobrado como responsabilidade do Estado a culpa nesse caso é exclusiva de terceiro.
O mesmo entendimento vale para aquele que, tomado por incontrolável desejo de suicídio se joga do decimo quarto andar de um prédio público, vindo a falecer com a queda, ficando claro a culpa exclusiva da vítima, como será melhor explicado no próximo tópico.
5.1.3.2 A culpa exclusiva da vítima
De mesma forma que se viu na causa de excludente estudada no item anterior, neste a dona não proveio de uma ação ou omissão dolosa do Estado, foi a própria vítima o agente determinante para que tal sinistro viesse a ocorres. Quando isso ocorre estaremos diante de mais uma causa que exclui a responsabilidade civil do Estado.
Sobre o tema colheu-se interessante julgado recente do TRF da quinta região, cuja ementa é a seguintes:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DNIT. ACIDENTE DE TRÂNSITO (ATROPELAMENTO DE PEDESTRE). VÍTIMA QUE ADENTRA RODOVIA PARA RETIRADA DE SEMOVENTE (ANIMAL). RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. EXCLUDENTE DO NEXO DE CAUSALIDADE. 1. Narram os autos que o Autor foi vítima de atropelamento na BR-230, KM 19.7, no Estado da Paraíba, quando adentrou na pista de rolamento para a retirada de um cachorro que fora atropelado. 2. 2. A teoria da responsabilidade objetiva do Estado, consagrada no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, impõe ao poder público o dever de ressarcir os danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, independentemente da comprovação de culpa. 3. Para a caracterização da obrigação de indenizar, exige-se a presença de certos elementos, quais sejam: a ação estatal, a ocorrência de dano e o nexo de causalidade entre a ação estatal e o dano. Na ausência de algum desses requisitos ou na presença de causa excludente ou atenuante - culpa exclusiva ou concorrente da vítima no evento danoso -, a responsabilidade estatal será afastada ou mitigada. 4. Do que há nos autos, verifica-se que o acidente que vitimou o Autor decorreu de sua culpa exclusiva culpa, visto ter agido negligentemente com a sua própria segurança, ao atravessar a rodovia para a retirada de um animal, assumindo riscos ao fazê-lo. E, sendo a culpa exclusiva da vítima uma circunstância excludente do nexo causal, não há como responsabilizar o Estado pelos danos decorrentes do acidente, por estar ausente um dos requisitos indispensáveis da reparação civil. 5. Indenização dos danos morais que se faz indevida. 6. Apelação do Particular prejudicada e Apelação do DNIT provida.
(TRF-5.AC Apelação Cível 30178620124058200; julgado em 20/02/1014)
Ainda sobre excludentes de responsabilidade civil do Estado, chama muito a atenção as observações feitas por Matheus Carvalho em seu manual de direito administrativo. Para este autor, a doutrina que aponta caso fortuito, força maior, e culpa exclusiva da vítima como as únicas causas de excludente de responsabilidade estatal estar totalmente equivocada, já que estas hipóteses são apenas exemplos dessas situações.
Para sustentar esta tese o autor mencionado explica que para haver dano são necessários a ocorrência cumulativa de três elementos, a saber: conduta do agente, atuando nessa qualidade, dano causado a um particular e nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
O raciocínio é o seguinte: se para caracterizar o dever estatal são necessários os três elementos supracitados, a ausência de qualquer deles já é suficiente para excluir a responsabilidade de indenizar por parte do Estado, não importando se tal ausência se deu em decorrência de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.
Para nós, fazem muito sentido os argumentos do autor, basta pensar, por exemplo que outros doutrinadores apontam como sendo causa de exclusão da responsabilidade estatal a culpa exclusiva de terceiros.
De forma que o entendimento desse trabalho é o mesmo do autor acima citado, pois qualquer que seja a causa que quebre o nexo de causalidade entre o dano e uma atividade estatal, faz desaparecer para este o dever de indenizar, ou seja, não é somente o caso fortuito, a força maior e a culpa exclusiva da vítima que exclui a responsabilidade do Estado, basta que qualquer evento tire a relação de causa e efeito entre conduta estatal e dano sofrido.