1.Evolução das relações familiares
O Direito de Família é um dos ramos do direito dos mais dinâmicos, porque seu objeto de estudo, a família, tem por sujeito o ser humano, dinâmico por natureza. Em razão disso, faz-se necessário acompanhar as evoluções ocorridas neste campo, principalmente a legislação, mesmo que às vezes de forma mais lenta.
Isto se dá, segundo Giselda Hironaka, porque a família é uma entidade histórica, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos. Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história, e que a história da família se confunde com a história da própria humanidade(1).
Neste âmbito, considerando que o fim do Estado é promover o bem de todos, e se todos perseguem a felicidade, só acessível por meio de uma relação a dois, nítido o interesse da Constituição Federal em pontificar: "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado"(2). A própria organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar, e não em torno de outros grupos ou dos indivíduos em si mesmos(3).
O Direito de Família, ao receber o influxo do Direito Constitucional, foi alvo de uma profunda transformação. Assim, desde a nova Constituição Brasileira, em 1988, ocorreu, no âmbito do direito de família uma constitucionalização(4) das relações familiares, o que leva a estudar uma nova conformação nessa área jurídica, em especial, uma breve análise do reconhecimento como entidade familiar àquelas não fundadas no casamento.
2. O Estado e a Proteção da Família
O Código Civil Brasileiro, datado de 1916, somente admitia como entidade familiar aquela instituída pelo casamento, livre de impedimentos e cumpridas as formalidades legais. Ou seja, o matrimônio era o único laço legítimo e legal de constituir família e somente quem era ligado por tal vínculo tinha proteção do Estado.
Tal concepção é fruto da influência sócio-religiosa, que concebia o casamento com nítido interesse procriativo e a continuidade da família, em que todos os partícipes tinham seus papéis bem definidos: o homem como provedor, responsável pelo sustento da família e a mulher como mera reprodutora, restrita ao ambiente doméstico, à administração da casa e à criação dos filhos.
Do Código Civil até a Constituição Federal de 1988 a herança se manteve quase indivisa, impondo seus valores e gerando contradições. Ao aportar no texto constitucional o conjunto de transformações embaladas pela viragem cultural do final do século XX, com os princípios da igualdade, da não discriminação e da neutralidade, o modelo ancorado no Código e nas leis esparsas, mesmo resistindo, cede lugar à "constitucionalização" do Direito de Família(5).
O art. 226 da Constituição Federal trouxe o reconhecimento de entidades familiares não instituídas pelo matrimônio. Sendo assim, além da família oriunda do casamento, passou-se a admitir a união estável como entidade familiar e o Estado legou proteção também a família monoparental(6).
A união estável, novo nome que ganhou o concubinato, que antes da Constituição Federal não surtia efeitos no âmbito do direito familiar, e sim, no direito obrigacional(7), passou a ter o privilégio de "ter sua conversão em casamento facilitada". Ou seja, a partir da abertura que a Constituição trouxe, além da evolução legislativa e jurisprudencial acabou por demonstrar que o concubinato, desde que não concorra com o casamento(8), passou a ser reconhecido como relação válida, produzindo efeitos jurídicos independentemente do direito obrigacional.
Houve portanto uma grande evolução no direito de família, tendo o atual texto constitucional retirado a união estável do limbo da sociedade de fato, para dar-lhe o status de entidade familiar. O triângulo: pai-mãe-filhos, muda de conformação. No mesmo sentido, a adoção de uma criança é permitida aos solteiros, sendo reconhecido também como família.
Assim, a família é um fato natural, o casamento é uma convenção social(9). Nessa nova paisagem, não mais se distingue a família pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de ser seu único traço diferencial(10).
3. A nova concepção de família
Após 11 anos de constitucionalização do Direito de Família houveram muitos avanços, e outras tantas conquistas, mas, com certeza, este fenômeno ainda reserva outras mudanças. Enfim, o casamento não deve ter um aspecto meramente contratual, econômico ou de procriação. O casamento é uma opção, livre de barreiras e preconceitos, em que as pessoas buscam uma ligação baseadas no sentimento de amor, respeito e confiança recíproca, independente de sexo, cor, posição econômica ou religião.
Hegel, em Filosofia do Direito dizia ser o casamento "a união moral do sentimento, no amor e confiança recíprocos, que faz de duas pessoas uma só". O casamento deixou de ser um instituto preordenado à reprodução, para se constituir essencialmente em espaço de companheirismo e de camaradagem, e, como diz Alice Ross, o sexo recreativo se impôs sobre o reprodutivo(11).
Sem dúvida, hoje, o modelo de família que prevalece é o eudemonista, ou seja, aquele pelo qual cada um busca na própria família, ou por meio dela, a sua própria realização, seu próprio bem-estar(12).
Seguindo esta tendência das relações familiares, que já evoluiu a ponto de dar à união estável, desde que reconhecida, os mesmos efeitos do casamento civil, além de dar um novo conceito ou concepção ao matrimônio, o próximo passo a ser dado é o reconhecimento da união entre homossexuais. Talvez esta seja a barreira mais eminente a ser superada pelo direito de família, já que o próprio texto constitucional reconhece, para efeitos de tutela familiar, somente aquela formada por pessoas de sexos diferentes.
Cabe, principalmente aos estudantes do direito, ver mais longe, em razão das transformações e exigências das relações familiares. Por mais que às vezes não se tenham leis infraconstitucionais que regulamentem às situações de fato, há que se ter em mente que existem garantias constitucionais, que, de uma forma ou de outra protegerão às novas formas de constituição familiar.
Há portanto, que se fazer uma releitura do modelo patriarcal do Código Civil para aplicabilidade do direito, sem medo nenhum de enxergar o novo. É preciso desmistificar a concepção de que a família só se constitui a partir do casamento civilmente celebrado.
Enfim, tem razão Marcos Colares ao dizer:
"Creio que há algo de novo no Direito de Família: a vontade de vencer os limites ridículos da acomodação intelectual. Porém, tudo será vão sem a assunção pela sociedade enquanto Estado, comunidade acadêmica, organizações não governamentais de uma postura responsável em relação à família lato sensu. Transformando o texto da Constituição Federal em letra viva"(13).
Neste tempo em que até o milênio muda, muda a família, mudam as pessoas que a compõe, mudam seus motivos, que passam a ser de meramente procriativos, à união de pessoas por afeto e amor, fato este que a torna um reduto com enormes possibilidades da concretização de projetos e da conquista da felicidade.
NOTAS
01. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. In: Revista Brasileira de Direito de Família n.º 1. p. 7.
02. Artigo 226, caput da Constituição Federal de 1988.
03. DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: O preconceito & a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 49.
04. Constituicionalização é a expressão usada pelos doutrinadores na aplicação de preceitos da Constituição Federal de 1988 nas relações familiares, já que o Código Civil, datado de 1916, ainda não sofreu as alterações.
05. FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 73.
06. Art. 226, § 4º CF: "Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes."
07. Eis que com a dissolução da relação concubinária, haveria divisão de bens entre os companheiros desde que comprovada a participação de um ou outro para a formação da fortuna, ou, caso não fosse possível prová-lo, poder-se-ia exigir indenização por prestação de serviços.
08. Concubinato impuro é considerado aquele em que um ou ambos dos partícipes têm vínculo matrimonial com outra pessoa.
09. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 13.
10. DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 69.
11. As novas relações de família. Anais da XV Conferência Nacional da OAB em Foz de Iguaçu. São Paulo: JBA Comunicações, 1995, p. 642.
12. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 8.
13. COLARES, Marcos. O que há de novo em Direito de Família? In Revista Brasileira de Direito deFamília n.º 4 Jan-Fev-Mar 2000. p. 46.