1. INTRODUÇÃO
O recurso de apelação possui importância precípua na sistemática recursal do CPC/2015, tendo em vista que através deste recurso é possível verificar, de modo mais evidente, a incidência do duplo grau de jurisdição no processo civil, concretizando-o, desta forma:
A apelação é o recurso por excelência. E isto se diz por ser a apelação o recurso responsável por permitir o pleno exercício do duplo grau de jurisdição. É através da apelação por permitir um amplo e integral reexame da causa que, tendo sido submetido a julgamento no primeiro grau de jurisdição, poderá agora ser reapreciada por órgão de segundo grau. (CÂMARA, 2015, p. 508).
Ademais, o regramento do capítulo da apelação permite a aplicação de alguns de seus dispositivos ao processamento dos demais recursos, tal como ocorre quanto ao efeito devolutivo dos recursos na suas dimensões vertical e horizontal, em sede de julgamento pelo juízo ad quem, conforme o disposto pelos §§ 1º e 2º do art. 1.013. do CPC/2015.
A apelação trata-se de recuso adequado para impugnar, em regra, sentenças e decisões interlocutórias não agraváveis, isto nos moldes do art. 1.009, § 1º do CPC/2015, in verbis:
Art. 1.009. Da sentença cabe apelação.
§ 1º As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões
Cumpre salientar que o recurso em epígrafe, em regra, é cabível para fins de impugnação de quaisquer sentenças ou decisões interlocutórias não agraváveis, cujos conteúdos podem versar nas situações previstas pelo CPC/2015 no art. 485, na qual refere-se as decisões com exame de mérito, bem como aquelas previstas pelo art. 487, concernentes as decisões sem resolução do mérito. Desta forma, a apelação também será adequada para o exercício da jurisdição contenciosa ou voluntária, tomadas em processos de conhecimento ou de execução, nos termos do art. 724. do CPC/2015.
Neste viés, o Novo Código de Processo Civil apresentou importante avanço, sob o prisma da economia processual e celeridade, porque ampliou o âmbito de incidência da apelação, eliminando o recuso de agravo retido, tendo em vista que a impugnação perpetrada em sede de preliminar da apelação passou a incluir decisões interlocutórias não impugnáveis por agravo de instrumento.
2. A SISTEMÁTICA PROCESSUAL DA APELAÇÃO
A sistemática do diploma processual civil anterior (CPC/73) não imputava à apelação a possibilidade de impugnação expressa das decisões interlocutórias proferidas ao longo do módulo processual. Assim, o CPC/73 atribuía a função obstativa da preclusão das decisões interlocutórias, exclusivamente, à figura processual do recurso de agravo nas formas retida ou de instrumento.
No CPC/73 o agravo de instrumento era cabível contra decisões interlocutórias que ocasionassem risco de lesão ou de difícil reparação, não havendo rol numerus clausus de hipóteses para o manejo deste recurso, todavia, as demais decisões interlocutórias deveriam ser impugnadas mediante o agravo retido, sendo que, caso a parte não manejasse esta espécie recursal, operava-se a preclusão da decisão interlocutória, nos termos do art. 522. do CPC/73.
Diante da sistemática anterior, o recurso de apelação apresentava entre as suas funções a de reiterar, em sede de preliminar, a apreciação pelo órgão ad quem do conteúdo processual impugnado mediante o agravo retido juntado aos autos, conforme estabelecia o art. 523. do CPC/73. Logo, insta asseverar que o conteúdo da apelação não versava diretamente sobre a decisão interlocutória, limitando-se apenas a enunciar preliminarmente o interesse do recorrente na apreciação do agravo retido pelo tribunal.
Com base no CPC/2015, a apelação poderá impugnar tanto decisões interlocutórias não agraváveis quanto a sentença, podendo haver cumulação imprópria de perdidos recursais, já que o acolhimento da decisão interlocutória pode provocar o desfazimento da sentença e, consequentemente, afastar o interesse recursal quanto a impugnação da sentença (DIDIER, 2015).
Ademais, com base no §1º do art. 1.009. do CPC, verifica-se que o texto normativo faz referência expressa a suscitação da impugnação da decisão interlocutória na preliminar da apelação, porém, esta exigência mostra-se dispensável, tal como se manifesta Fredie Didier, aduz o ilustre processualista a existência de
“(...) uma dubiedade. Preliminar, aqui, não se refere a uma questão de admissibilidade; preliminar, no contexto do § 1° do art. 1.009, significa apenas que a impugnação será feita antes, o que é natural, tendo em vista a cronologia das decisões: a decisão interlocutória é anterior à sentença. O combate a uma interlocutória não agravável integra o mérito da apelação.” (DIDIER, P. 167)
Logo, o combate a uma decisão interlocutória integra efetivamente o mérito da apelação, podendo, inclusive, versar unicamente sobre esta espécie de decisão. Neste sentido, aduz Alexandre Freitas Câmara afirmando que “é, então, absolutamente fundamental admitir-se para impugnação da decisão interlocutória, somente” (2015, p 510).
Destarte, torna-se imprescindível salientar que a interposição da apelação, neste viés, é cabível inclusive pelo vencedor, tendo em vista que o mesmo eventualmente pode apresentar interesse recursal no tocante ao teor de uma decisão interlocutória proferida no processo, razão pela qual o § 1º do art. 1.009. do CPC faz menção a impugnação nas contrarrazões.
3. A TEORIA DA CAUSA MADURA NO NCPC
Dentre os princípios constitucionais que orientaram a elaboração do CPC/2015, destacam-se o princípio da primazia da decisão de mérito (art. 40, CPC) e da duração razoável do processo (art. 50, LXXVIII, CF c/c art. 40, CPC), cujos preceitos influem diretamente no procedimento de julgamento da apelação pelo tribunal.
Neste liame, destaca-se a teoria da causa madura, introduzida no sistema processual pátrio com a Lei 10.352/01 que incluiu o parágrafo 3º do art. 515. do CPC/73, dispondo que o tribunal poderia julgar diretamente a lide nas hipóteses de extinção do processo sem resolução do mérito, relativo as questões exclusivamente de direito com condições para imediato julgamento.
A importância prática da teoria da causa madura é notória, razão pela qual o CPC/2015 novamente a positivou, bem como explicitou as suas hipóteses de aplicação pelo órgão ad quem, nos moldes do disposto pelo §3º do art. 1.013, in verbis:
§ 3º Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando:
I - reformar sentença fundada no art. 485;
II - decretar a nulidade da sentença por não ser ela congruente com os limites do pedido ou da causa de pedir;
III - constatar a omissão no exame de um dos pedidos, hipótese em que poderá julgá-lo;
IV - decretar a nulidade de sentença por falta de fundamentação.
Como se vê, comparativamente, o CPC/2015 avançou na temática, tendo em vista que o diploma processual passou a enumerar as hipóteses nas quais o tribunal, durante o julgamento da apelação, passará ao julgamento de mérito, ainda que o juízo a quo não o tenha apreciado, elucidando o seu âmbito de incidência. Desta forma, a teoria da causa madura implica no permissivo legal para a pronúncia pelo tribunal sobre o mérito da causa, mesmo que o juízo a quo não tenha formado o seu convencimento sobre a matéria, isto diante das hipóteses legais.
Cabe verificar a existência de controvérsia doutrinária quanto a necessidade de manifestação das partes para fins de aplicação da regra em epígrafe. Trata-se de debate de grande importância prática, porque sendo tal julgamento de mérito um mero efeito da apelação, resulta que para a sua incidência deve haver manifestação do apelante, sob o prisma do princípio dispositivo, não podendo o tribunal decidir ex officio diretamente o mérito da demanda. Entretanto, ao entender que a aplicação da teoria da causa madura é provocado por um efeito anexo do próprio julgamento recursal, caracteriza-se como dispensável a provocação do interessado.
Logo, parcela da doutrina entende que o julgamento de mérito pelo tribunal, sem necessidade do retorno dos autos ao juízo a quo para realização de um novo pronunciamento judicial, representa um efeito da própria apelação, denominado de efeito translativo. Este efeito é assinalado como um corolário do efeito devolutivo da apelação na sua dimensão vertical, o que permite, desde que preenchido os pressupostos legais, o conhecimento pelo tribunal até mesmo de questões não apreciadas pelo juízo de origem.
Neste sentido, leciona Alexandre Freitas Câmara, aduzindo que “por força do efeito translativo da apelação (previsto no art. 1.013, §3º), fica o tribunal de segundo grau incumbido de decidir desde logo o mérito, desde que esteja já em condições de receber imediato julgamento” (2015, p. 518). Assim, para esta corrente doutrinária, a aplicação da teoria da causa madura importa na incumbência do juízo ad quem na análise do mérito, independente de requerimento do interessado.
Todavia, para o doutrinador Fredie Didier é imprescindível a manifestação do apelante para o julgamento do mérito diretamente pelo tribunal, nas hipóteses de aplicação da teoria da causa madura, razão pela qual não poderá o mesmo atuar de ofício, sob penal do órgão ad quem proferir decisão extra petita. Vejamos:
“Mesmo que esse julgamento não decorra diretamente do efeito devolutivo do recurso, é certo que o § 3° do art. 1.013. amplia o thema decidendum na instância recursal. Razões de ordem sistemática aconselham que se exija a formulação de requerimento do recorrente para a aplicação da regra, tendo em vista que a delimitação "daquilo-que-tem-de-ser-decidido" pelo órgão jurisdicional é, no ordenamento brasileiro, matéria adstrita ao princípio dispositivo e, pois, à provocação da parte interessada.” (DIDIER, 2015, p. 194)
Em sentido diverso, verifica-se o entendimento da corrente doutrinária que aduz ser o efeito translativo diverso do devolutivo, o que justificaria a incidência da teoria da causa madura de ofício pelo tribunal, ainda que não houvesse sido suscitada pelo apelante, já que trata-se de norma de ordem pública com o objetivo de conferir maior celeridade e presteza jurisdicional, mesmo ocasionando uma reformatio in pejus. Dentre os partidários desta corrente, colacionamos a manifestação de Daniel Amorim Assumpção Neves, que aduz:
É natural que tenha ocorrido a reformatio in pejus, mas nenhuma ilegalidade ocorrerá nessa hipótese, considerando-se que a natureza de ordem pública da norma permite ao tribunal não só a sua aplicação de ofício, como também a piora da situação do recorrente. Conforme ensina a melhor doutrina, o conhecimento de matérias de ordem pública de ofício pelo tribunal pode gerar a reformatio in pejus. Por essa razão, apesar da alocação da teoria da causa madura no art. 515, § 3.º, do CPC/73 (equivalente ao art. 1.013, § do CPC/2015), parece que a sua aplicação deriva do efeito translativo do recurso, e não do efeito devolutivo. (NEVES, 2015, p. 859)
Diante dos posicionamentos divergentes entre os ilustres processualistas, entendemos ser imprescindível a provocação dos recorrentes interessados para fins de análise do mérito pelo tribunal. Afinal, a nova sistemática processual representada pelo CPC/2015 orienta-se no viés do protagonismo das partes na relação jurídico processual.
Neste sentido, para a adequada aplicação da regra do §3º do art. 1.013, deve haver a concordância dos seguintes pressupostos: requerimento do interessado, provimento da apelação e o processo encontrar-se em condições de imediato julgamento, conforme elucidado pelo douto processualista baiano Fredie Didier (2015, p. 195).
Insta salientar as hipóteses legais para aplicação dos ditames do dispositivo supramencionado, cuja norma estipula as situações que permitem o julgamento do mérito diretamente pelo tribunal, nos moldes do art. 1013, §3º, incisos I, II, III e IV, quais sejam:
Sentença de conteúdo processual – Ocorre nas hipóteses de reforma da sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, isto nas hipóteses da apelação fundar-se em error in iudicando e error in procedendo. Cabe salientar que verifica-se controvérsia doutrinária quanto a incidência da regra no tocante as sentenças viciadas por error in procedendo. Para Didier (2015, p. 197) é possível desde que o error in procedendo refira-se a defeito intrínseco da sentença, todavia, manifesta-se em sentido divergente Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 519) que entende o seu cabimento tão somente na ocorrência de error in iudicando.
Sentença que violar regra da congruência – Trata-se da impugnação e análise pelo juízo ad quem de decisões simultaneamente extra petita, o que resulta na invalidação do capítulo que extrapola o pedido e julgamento do capítulo não examinado (DIDIER, 2015, p. 198)
Sentença que não examinou um pedido – Ocorre nas hipóteses de decisões apenas citra petita, evidenciando a sua omissão quanto ao exame dos pedidos formulados pelo demandante, haverá integração do pronunciamento judicial, assim como resolvendo aquela parcela do mérito da causa que não tenha sido apreciada pela decisão do juízo a quo. (CÂMARA, 2015, p. 519)
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Sentença sem fundamentação – Verifica-se a inobservância aos basilares preceitos constitucionais exigidos pelo art. 93, IX da CF, diante de decisões que, por força do art. do CPC, são considerados não-fundamentados, caberá ao tribunal anular a sentença viciada e, constatando que o processo encontra-se em condições de imediato julgamento, reapreciando o mérito.
Sentença reformada pelo reconhecimento da decadência ou prescrição (art. 1013, § 4º) – Tendo em vistas que a prescrição e decadência são questões que integram o mérito da demanda, o seu reconhecimento pelo tribunal permite ao mesmo pronunciar-se sobre o “restante do mérito”, ou seja, aos demais capítulos não abrangidos pela prescrição ou decadência (CÂMARA, 2015, p. 520)
Destarte, a teoria da causa madura representa uma importante regra processual que mais uma vez encontra-se em plena consonância com as basilares perspectivas de celeridade abarcadas pela nova sistemática do CPC/2015, haja vista que impede a remessa dos autos ao juízo a quo, na hipótese dos elementos sub judice encontrarem-se em condições para o imediato julgamento, o que, sobremaneira, evita o prejuízo para as partes e concede maior presteza jurisdicional na resolução da lide.
REFERÊNCIAS
DIDIER, Fredie Jr, CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de direito processual civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nullitatis, incidentes de competência originária de tribunal. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015