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O poder do mercado sobre as constituições democráticas

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O CDC é imenso avanço na defesa dos consumidores, mas está sendo remodelado pela ação do mercado.

O CDC é sem qualquer dúvida uma conquista dos consumidores. Antes do CDC, os consumidores vagavam no deserto das lamentações. Vários abusos à dignidade humana eram cometidos pelos fornecedores de produtos e serviços.

Sensíveis aos apelos dos consumidores contra os abusos dos fornecedores, o Poder Constituinte Originário criou norma constitucional para defender, com maestria, os consumidores:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

A proteção ao consumidor ganhou status prioritário na CRFB de 1998, pois outras normas reforçavam [hermenêutica e silogismo] à defesa do consumidor:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

V - defesa do consumidor;

Historicamente, a partir da Revolução Industrial, a produção passou a ser vertiginosa. Em pouco tempo, quando comparado com o quanto de produção era feita pelas mãos habilidosas dos artesões, os produtos eram produzidos mais rápidos em escalas inimagináveis. Beneficiou alguns, prejudicou outros. É a vida. Maior produção e maior consumo favorece o preço baixo? Somente nas utopias dos grandes filósofos e economistas. A natureza humana é diversa do que é escrito e pensado, pois o ser humano não é máquina. Em tempos de crises humanas, como guerras e efeitos destrutivos climáticos ou geológicos, os fornecedores veem tais acontecimentos como oportunidades de alavancarem seus ganhos, mesmo que seja pela dor alheia — exemplo, que cito, do caso em Mariana, em MG, onde os preços das águas minerais triplicaram; comerciantes de outras cidades viram, na desgraça dos moradores com lama até os seus pescoços, oportunidades de lucrarem através da "necessidade e desespero". O lado "moral" do Livre Mercado!


OS PREÇOS DIFERENCIADOS

Habitual o consumidor ter que decidir — faca na goela — a "liberdade" de escolha sobre a forma de pagamento:

  • Com cartão de crédito ou débito — R$ 150,00 [cento e cinquenta reais];
  • Pagamento em espécie [cédula ou moeda] — R$ 100,00 [cem reais].

OS fornecedores alegavam que o pagamento por cartão de crédito ou débito, pelos consumidores, não era compensador, pois as operadoras de cartões cobravam um porcentual — taxas pagas às administradoras. Assim, o fornecedor não poderia ser lesado, mas o consumidor poderia. Tal prática assemelha-se ao caso que contei alhures sobre os moradores de Mariana e fornecedores que viram na desgraça imensas oportunidades de lucros.

Em algumas lojas, para o conforto do consumidor, tabelas explicando os preços conforme os tipos de pagamentos. Já presenciei muito, e avisei que era contra o CDC — quem tem smartphone com Android recomendo instalação do aplicativo Avogrado, o qual tem todos os códigos e leis internacionais sobre direitos humanos. É possível atualizá-los. É gratuito o aplicativo. Também tem o pago.

A discussão sobre diferenciação de preço na forma de pagamento não é recente. Em 2009, os parlamentares já articulavam — favorecer quem realmente? — para permitir os preços diferenciados quanto às formas de pagamentos. Neste ano de 2016, pela crise econômica desencadeada pelas inúmeras corruptelas, na PPPI [Parceira Público-Privada Ímproba], a União e, principalmente, os Municípios e Estado, não têm dinheiro nos [roubados] cofres públicos. Mensalão do PT, falta outros Mensalões para demais partidos políticos, a Lava Jato, e tantas outras operações desencadeadas pela Polícia Federal e Ministério Público, não desmentem que a PPPI confirma à necessidade de ampla mobilização social cobrando aplicação imediata e eficiente da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção [DECRETO Nº 5.687, DE 31 DE JANEIRO DE 2006].

Retornando à questão dos preços diferenciados. A tutela dos consumidores é um direito que mostra a posição de inferioridade do consumidor em face ao poder econômico do fornecedor.

A Lei 8.078/90 foi criada por expressa disposição constitucional, e a Lei é uma cláusula pétrea: a defesa do consumidor. Destarte, qualquer modificação na Lei que retire ou diminua seu princípio [hermenêutico e silogístico] constitucional à defesa do hipossuficiente consumidor, para favorecer os fornecedores, é inconstitucional. Se os comerciantes reclamam das altas taxas cobradas pelas instituições financeiras nas operações com cartões, que podem ser de 4%, 5%, 8%, ou sabe lá mais quanto, o Estado não deve proteger os comerciantes? Vejam que os juros no Brasil não são baixos, mas astronômicos quando comparados com demais países. Se o crédito facilitou o consumidor, já que não tem ativo para comprar à vista, por outro lado criou superindividados.

Fico perplexo quando economistas brasileiros dizem que o brasileiro não sabe controlar seus gastos. O mínimo existencial, para o cidadão ter padrão médio de vida — geladeira, fogão, máquina de lavar roupa, televisão etc. —, ainda está longínquo da realidade brasileira. A partir da década de 1990, os programas sociais permitiram que a maioria dos brasileiros (párias) conseguisse alcançar um padrão médio de vida. E os programas sociais foram duramente criticados pelos brasileiros utilitaristas "Chicote no lombo ou trabalho". Repergunto: o Estado não deve proteger os comerciantes contra as altas taxas cobradas pelas instituições financeiras nas operações com cartões? Digo que sim, pois muitos dos comerciantes são hipossuficientes diante das instituições financeiras.


INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS, OS DONOS DO PODER

A Crise de 2008 trouxe prejuízos aos direitos humanos por empréstimos de valores fictícios [passivo], sem qualquer reserva [ativo] para eventuais oscilações do mercado. É uma lição de que algo tem que ser feito em relação ao poder das instituições financeiras diante das constituições democráticas. A renda do trabalhador, no caso do Brasil e dos EUA, não aumentou. A possibilidade de aquisição de moradia e compra de eletroeletrônicos e eletrodomésticos se dá por, na maioria das vezes, por empréstimos ou créditos conseguidos nas instituições bancárias ou financeiras. Ou seja, o trabalhador não tem ativo. No Brasil, o cartão de crédito era um luxo para poucos brasileiros. A partir da década de 1990, a aquisição de crédito se tornou menos burocrático. Na década de 2000, quase qualquer brasileiro possuía um cartão de crédito. As operadoras de cartão ligavam para os possíveis clientes, ou mandavam cartões sem o devido pedido do cidadão. Tal prática, de envio sem autorização, causou vários aborrecimentos, pois ao chegar do cartão na residência da vítima [consumidor], esta, mesmo não usando o cartão, era cobrada pelas operadoras.

Transcrevo do elucidativo livro Obamanomics:

Além dos benefícios fiscais corporativos, como créditos fiscais diretos, benefícios de depreciação acelerada, créditos fiscais R&D e outras deduções de impostos generosas, os enor­mes subsídios pagos à indústria, pelo Congresso, assumem muitas formas, inclusive apoios a preços mínimos e a subsídios, proteção tarifária, lucros de monopólio, proteção favorável a patente, liberação de fundos de pensão, legislação antissindicalista e liberação em relação a leis onerosas que dizem respeito ao consumidor, ao trabalho e ao ambiente.

E impossível medir a magnitude da colheita dos gran­des esforços do lobismo nos negócios e na contribuição para campanhas. Mas, para demonstrar como funciona o lobby, vamos examinar cada dólar das economias salariais resultante dos grandes esforços dos negócios na luta contra aumentos salariais em Washington. Vamos presumir que, como resul­tado dos esforços corporativos para quebrar os sindicatos e estimular a imigração de mão de obra barata do exterior, a exportação de empregos manufatureiros para países emer­gentes, a contratação de serviços pela internet e a luta contra o aumento do salário mínimo, cada empregado nos Estados Unidos receba US$ 1 a menos por hora—uma transferência de riqueza da ordem de US$ 250 bilhões por ano do trabalhador norte-americano diretamente aos donos de negócios norte- americanos. Um cálculo conservador referente à diminuição de US$ 1 nos salários, capitalizada em relação a 12 vezes de ga­nhos, mostra que isso causaria um aumento real aproximado de US$ 3 trilhões nas capitalizações de mercado dos negócios norte-americanos. Não é coincidência que o mercado de ações' tenha subido mais de US$ 3 trilhões em termos reais ao longo dos últimos sete anos. Em vez de felicitar os negócios pelo trabalho tão bom que fizeram abrindo novos mercados e de­senvolvendo novos produtos, parece que muito de seu sucesso proveio do lobismo junto ao governo para manter o custo da mão de obra baixo e, com efeito, transferir US$ 3 trilhões de salários de seus trabalhadores para seus acionistas. E claro, o impacto real pode ser muito mais de US$ 1 por hora e pode explicar todo o aumento conjunto no valor do mercado acioná­rio nos últimos quarenta anos, um período de tempos difíceis para os trabalhadores e os sindicatos norte-americanos.

Esse é apenas o impacto de US$ 1 por hora economizado com a mão de obra. Quando se incluem as economias que os Estados Unidos corporativos alcançaram por meio do lobismo e das contribuições de campanha em relação a outras ativida­des, os números tornam-se verdadeiramente assombrosos. Centenas de bilhões de dólares de economias corporativas são realizadas a cada ano, impedindo o Congresso de promulgar a legislação ambiental necessária e permitindo às empresas controlarem as pensões dos trabalhadores e evitarem a respon­sabilidade pela saúde do trabalhador. Os grupos corporativos evitam centenas de bilhões de dólares de perdas potenciais e responsabilidadepelo produto por meio da nomeação de juízes a favor dos negócios nos tribunais. E os grupos corporativos colhem centenas de bilhões de dólares de economias porque o Congresso afrouxou a pressão sobre organismos reguladores como a Occupational Safety and Health Administra tion (OSHA ou Administração da Saúde e da Segurança Ocupacional norte- americana), a Food and Drug Administration (FDA, cargo de alimentos e remédios) a Security and Exchange Commission (SEC, ou Comissão de Títulos e Câmbio), responsável pela regulamentação da área de valores mobiliário) e outras. (1)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como bem salientou Milton Friedma em “Capitalismo e Liberdade”, num mundo de homens imperfeitos não pode ter plena liberdade (Livre Mercado). Adam Smith dizia que a “mão invisível” coordenaria as escolhas individuais e que os indivíduos tornar-se-iam em "seres éticos”. Uma filosofia moral de Smith muito utópica. Smith também dizia que a competição ou concorrência forçariam os preços dos produtos para baixo até seus níveis" naturais "— custo de produção. Na prática, o lado sombrio da Máquina Antropofágica.

Notem que o Estado em si é benevolente com as operadoras de cartão de crédito, do contrário limitaria as taxas. O Estado já fez isso no CDC — art. 52, § 1º, na redação dada pela Lei nº 9.298, de 1º.8.1996. O fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor prejudicou o desenvolvimento econômico? Não. Isso mostra que é a ganância que prejudica a dignidade no Livre Comércio. Para saber se o desconto fornecido pelo comerciante é razoável, ele teria que mostrar ao consumidor por quanto comprou e por quanto está vendendo, para que o consumidor possa analisar se o ganho não é exorbitante. Para isso, o Estado deveria manter um banco de dados (site) informando se o preço é exorbitante. Aí sim, o consumidor tem a certeza de estar com poder de barganha em mãos. Por exemplo, alguns PROCONs divulgam listas comparativas de preços em algumas localidades, de forma que o consumidor possa ter noção prévia de preço justo. (2) Poderia também ter Associação de Moradores — como tem em muitos países — para monitorar os preços na região e, através de aplicativo de celular, mostrar os estabelecimentos comerciais com os preços mais atrativos para os consumidores. Essa inciativa também favoreceria aos PROCONs e aos MPs (Ministérios Públicos) para combaterem a formação de cartel, que não é incomum, e a prática de aumento de preço sem justificativa (art. 39, V e X, do CDC).

Acho mais justo que o Estado Democrático de Direito, através das instituições de ensino, sejam particulares ou não, ensinem aos consumidores as noções básicas de economia, principalmente quanto à pesquisa de preços e formação de Associações Civis com capacidade técnica para monitorarem os preços abusivos. Por exemplo, em Portugal as domésticas contam com Associações que avisam sobre preços abusivos. O comerciante que tem o preço alto perde clientela para o comerciante que tem preço mais atrativo para as domésticas.

Com a tecnologia contemporânea é possível criar aplicativos aos quais informam, com a participação dos consumidores, dos preços abusivos em certos estabelecimentos, além de verificar a formação de cartel. O MP-RJ possui site Consumidor Vencedor que permitem aos consumidores enviarem imagens, documentos e vídeos sobre violações aos direitos dos consumidores. É uma parceria interessante que fortalece o Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, Fabrício Bolzan de Direito do consumidor esquematizado / Fabrício Bolzan de Almeida. – São Paulo: Saraiva, 2013.

Country studies. The Role of the Government in the Economy. Disponível em: http://countrystudies.us/united-states/economy-6.htm

Global Research. The Failure to Prosecute Leading US Banks. Disponível em: http://www.globalresearch.ca/the-failure-to-prosecute-leading-us-banks-the-abuse-of-power-by-government-and-big-business/5404445

Global Research. Who are the Architects of Economic Collapse? Disponível em: http://www.globalresearch.ca/who-are-the-architects-of-economic-collapse/10860

Franklin D. Roosevelt:" Message to Congress on Curbing Monopolies., "April 29, 1938. Online by Gerhard Peters and John T. Woolley, The American Presidency Project.

NY Times. Why Only One Top Banker Went to Jail for the Financial Crisis. Disponível em: https://www.nytimes.com/2014/05/04/magazine/only-one-top-banker-jail-financial-crisis.html?_r=0

NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor / Rizzatto Nunes. – 7. Ed. Rev. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2012.

Seu History. 7 - Documentário Gigantes Da Indústria 'Tomando a Casa Branca' 07 history channel. Disponível em: http://www.youtube.com/embed/rWH_rq_21iI


Notas

(1) — TALBOTT, John R. Obamanomics: como a economia da justiça pode mudar o mundo / John R. Talbott; tradução Clara A. Colotto e Adriana Colotto.— São Paulo: Saraiva, 2009.

(2) — Procon Goiânia realiza pesquisa de preços de cadeirinhas, assentos de elevação e bebês conforto. Disponível em: http://www.goiania.go.gov.br/shtml/procon/matriz.shtml?var=67

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HENRIQUE, Sérgio Silva Pereira. O poder do mercado sobre as constituições democráticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4946, 15 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54947. Acesso em: 18 dez. 2024.

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