1. INTRODUÇÃO
No Brasil, os impostos são a principal fonte de recursos para a manutenção da aparelhagem estatal na resolução dos objetivos basilares da Federação, conforme expresso no artigo 3º da Constituição da República. Ocorre que o número de sonegação no País só tem aumentado ao longo dos anos, diminuindo essa arrecadação.
Com a extinção da punibilidade pelo pagamento, verifica-se o esvaziamento do poder-dever do Estado de punir, o “jus puniendi”, que não consegue, com outras medidas, sejam administrativas ou cíveis, diminuir ou impedir a prática do locupletamento do erário público.
Nessa toada, é o escopo desse trabalho proporcionar um estudo panorâmico acerca do “jus puniendi” estatal e sua eventual mitigação frente ao instituto da extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes econômicos ou tributários.
A esse propósito, de início, serão perscrutadas as finalidades da punição ao delinquente e a legitimidade do Estado em exercer esse poder-dever ao aplicar as sanções penais, bem como, a ausência de igualdade entre os cidadãos nessas punições. Posteriormente, uma breve síntese quanto à necessidade do uso do Direito Penal na seara tributária.
Analisaremos a criação da extinção da punibilidade pelo pagamento, sua evolução e alteração no decorrer dos anos, o entendimento dos Tribunais para aplicação no caso concreto. Por derradeiro, trataremos sobre a incoerência da extinção da punibilidade em relação ao direito e dever do Estado em punir os agentes criminosos.
2. O “JUS PUNIENDI”
Abstendo-se esse artigo de realizar uma evolução histórica pormenorizada sobre o assunto, o “jus puniendi” consiste no direito do Estado (Nação) de aplicar uma punição para todos aqueles que infringem uma norma penal.
Esse direito, ou poder-dever de punir, para alguns doutrinadores, é genérico e impessoal por parte do Estado, pois não pode, em hipótese alguma, ser direcionado sobre um indivíduo isoladamente, sob pena de ferir sua constitucionalidade.
Dessa maneira, aquele que desobedece ao normativo penal será acometido por uma punição, de acordo com tipificação do crime, que será o preceito secundário da norma penal, qual seja: a pena.
Entende-se que, o preceito primário dá ao Estado o direito de punir (“jus puniendi”) o transgressor da norma penal com a aplicação do preceito secundário, conforme leciona o mestre doutrinador Fernando Capez (2005, p.2): “no momento em que é cometida uma infração, esse poder, até então genérico, concretiza-se, transformando-se numa pretensão individualizada, dirigida especificamente contra o transgressor”.
O poder-dever do Estado de aplicar uma punição aos infratores encontra escopo e fundamento no artigo 144 “caput” da Carta Magna. É importante frisar que, o monopólio estatal do poder-dever está evidenciado pela própria história da humanidade, em que as vítimas, pelos traumas oriundos do crime que fora acometida, não buscavam a justiça e, sim, a vingança pelas próprias mãos.
Cabe destacar que o direito ou poder-dever de punir do Estado só será legítimo quando estiver submetido de maneira vinculada às Leis. Pois, com a mesma certeza que nosso ordenamento autoriza o Estado a aplicar de maneira exclusiva a punição aos criminosos, também lhe impõe limitações nesse poder-dever, nas condições em que aplicará tais sanções.
2.1. A necessidade da penalidade e suas principais teorias
Verificamos pelas poucas linhas acima, que o Estado detém o monopólio na aplicação das penas, mas, porque devemos aceitar a punição de quem quer que seja? Ou melhor, porque deve existir punição? Longe de adentrar nas questões filosóficas, sociológicas e históricas sobre o assunto, que provoca debates inflamados há tempos remotos, é importante fundamentar, de maneira concisa, a razão de ser da punição, mesmo não existindo um conceito universal.
Para Luiz Regis Prado (2005, pg. 567), a pena serve como prevenção e busca, através da coerção, diminuir o número de crimes, castigar o agente criminoso e afirmar o poder-dever do Estado, punindo os transgressores que descumprem suas normas e diretrizes.
A punição faz parte do cotidiano das pessoas que vivem numa sociedade, seja ela medieval ou contemporânea. De sorte que, a melhor solução, profundamente utópica, é que não existissem crimes e criminosos, e na falta de concretude dessa realidade, procura-se com as penas, ao menos, mitigar a crescente criminalidade.
Diante da evidente necessidade de punição, demonstrada alhures, as três principais teorias que buscam conceituar a finalidade da pena são: teoria absoluta, teoria relativa e a teoria mista, as quais não serão explanadas, por não ser objeto deste artigo.
2.2. Do irregular alcance da punição nos delitos brasileiros
Entre as pessoas de menor poder aquisitivo dentro da sociedade é que são encontradas aquelas que o Estado seleciona para punir. Portanto, é equivocada a premissa que, aqueles que se encontram encarcerados, obrigatoriamente serão identificados como os verdadeiros ou únicos criminosos, sendo que, na maioria dos casos, os criminosos não vão para as prisões do País.
Os recrutados para o encarceramento prisional, na verdade, é um seleto perfil de infrator penal, em sua maioria pobre e de etnia negra. Percebemos, então, que existe uma hercúlea lacuna entre os criminosos de fato e os que efetivamente são punidos, principalmente, se analisarmos a punição de infratores provenientes das classes mais abastadas entre os cidadãos.
Certo é que, o Código Penal é patrimonialista ao extremo, pois valoriza mais o patrimônio do que a vida e que lesa somente um cidadão, sem violência ou grave ameaça, e que porventura devolva o objeto do furto, será punido. Porém, o delinquente que lesar milhões de pessoas e o Estado, desviando, sonegando, ocultando dinheiro público, é legalmente isentado de qualquer punibilidade, desde que pague o valor suprimido de qualquer forma e qualquer tempo.
3. DA NECESSIDADE DO DIREITO PENAL NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS
O Estado brasileiro, como em outras Nações, regido pelo capitalismo, se sustenta mediante a arrecadação de tributos, ainda que, historicamente, o Brasil seja desigual e não aplique esses tributos de modo equitativo aos cidadãos.
Certamente que, lesar o Patrimônio Público, condiz com a necessidade da utilização do Direito Penal, já que afeta o direito socioeconômico e é o principal meio de financiamento das despesas públicas; inclusive, as de cunho social advêm por meio da constituição dos tributos.
Dessarte, observado a violação de normas previstas para a garantia da ordem econômica, normas de interesse supra individual, difuso ou coletivo, o Mestre Celso Coracini (2004, p. 243) lecionada que demonstrada está, a imprescindibilidade da atuação do Direito Penal.
Em sentido oposto, há doutrinadores que defendem que a simples melhora na fiscalização tributária já extinguiria a evasão fiscal e garantiria a correta arrecadação aos cofres públicos dos tributos devidos pelos contribuintes, sendo, por isso, dispensável o Direito Penal.
Com a devida vênia, entendemos não se tratar de exagero a criminalização de condutas atentatórias em face do erário público, menos ainda um ato impensado do legislador, por penalizar agentes que lesionam os cofres públicos.
Essa criminalização é primordial, pois a função do tributo não está engessada apenas na proteção do patrimônio público, já que transcendem o papel exclusivamente fiscal, mas, em sua função social, que é a intervenção do Estado no setor econômico e social, promovendo a dignidade da pessoa humana, com uma perspectiva extrafiscal, pois, a lesão ao bem jurídico discutido, afeta diretamente a sociedade pelo desvio de verbas que poderiam amenizar ou extinguir as desigualdades sócias e regionais, bem como proporcionar uma distribuição de renda mais justa.
Desse modo, correntes que pregam que existem sanções de outra natureza, como, por exemplo, as administrativas ou cíveis está destoada da realidade. Antonio Cláudio Mariz de Oliveira (1995, p. 91) explica que não se pode permitir que condutas que possuem um efeito devastador aos cofres públicos, como é o caso dos crimes tributários, passem ao largo das diretrizes do Direito Penal, utilizado como meio de conter ou amenizar essas condutas.
Portanto, correta a criminalização dos delitos tributários por parte do nosso ordenamento jurídico atual, contra as condutas perniciosas à ordem econômica e financeira, extremamente danosas aos interesses dos cidadãos, num Brasil democrático e social, na qual o Estado tem o poder-dever de punir.
4. O PAGAMENTO DEVIDO QUE EXTINGUE A PENALIDADE
Pioneira na definição do delito de sonegação fiscal, a Lei 4.729, de 14 de julho de 1965, fora a primeira normativa legal a disciplinar sobre a extinção de punibilidade em crimes tributários em razão da reparação do dano, ainda que, intermináveis as alterações realizadas pelo legislador ordinário.
No artigo 2º desta Lei, definia que, quando o agente recolhesse o tributo devido antes do início da ação fiscal na fase administrativa, este seria beneficiado com a extinção da punibilidade, ao dizer que “extingue-se a punibilidade dos crimes previstos nesta Lei quando o agente promover o recolhimento do tributo devido, antes de ter início, na esfera administrativa, a ação fiscal própria”.
Ulteriormente, no artigo 18 do Decreto-Lei nº 157, de 1967, permitiu o alargar do prazo para pagamento devido do tributo até depois à decisão da autoridade administrativa de primeira instância, para ter o agente direito à extinção da punição.
Com o advento da Lei nº 8.137, de 1990, o prazo para ocorrer à extinção da punibilidade pelo pagamento, fora ampliado, até o recebimento da denúncia, permitindo o pagamento do tributo e seus acessórios. A Lei 8.383, de 1991, revogou ambos dispositivos, iniciando uma lacuna normativa que perdurou até 1995.
Por meio da Lei 9.249, de 1995, que em seu artigo 34 praticamente reiterou o revogado artigo 14 da Lei 4.729, foi reintroduzida a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo em território nacional, desde que realizado até o recebimento da denúncia.
As divergências existentes nos Tribunais por conta do parcelamento extinguir ou não a punibilidade nos crimes tributários, da qual não iremos nos aprofundar, restou superada com a edição da Lei 9.964, de 10 de abril de 2000, Programa de Recuperação Fiscal (REFIS), que, revogando os dispositivos anteriores, atribuiu ao parcelamento efeito suspensivo da pretensão punitiva, bem como suspendeu o prazo de prescrição.
Porém, o Superior Tribunal de Justiça restringiu para o parcelamento apenas o efeito suspensivo da pretensão punitiva aos casos em que vigia a Lei 9.964, de 2000, pois nos casos anteriores, o efeito do parcelamento extinguiria a punibilidade.
O legislador, ciente ou não da maratona legislativa de alterações e falta de tecnicidade, estabelece um novo panorama à extinção da punibilidade com a edição da Lei 10.684, de 2003, Lei esta, protagonista de uma reviravolta sobre o assunto, tendo em vista que, diferente das inúmeras legislações anteriores, esta novel, não estabelece nenhum marco temporal para se efetuar o pagamento; em outras palavras, realizando o pagamento antes ou depois da fase administrativa, da denúncia ou mesmo da sentença, o efeito da extinção da punibilidade resta configurado.
A essa Lei foi conferida incidência geral e irrestrita pelos Tribunais, porquanto “lex mitior”. Frise-se que, apesar da Lei 10.684/2003 ter como principal argumento o regime de parcelamento de débitos tributários, a regra contida no artigo 9º desta Lei é considerada norma penal de incidência ampla, devendo ser aplicada a qualquer situação que vise adimplir tributos.
Com a Lei 11.941, de 2009, poucas mudanças foram percebidas em relação à extinção da punibilidade e com a edição da Lei 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, verificou-se uma brusca mudança, consubstanciada na suspensão da pretensão punitiva pelo parcelamento da dívida tributária, contanto que o pedido fosse realizado antes do recebimento da denúncia e não mais a qualquer tempo, conforme artigo 6º da Lei 12.382/2011.
Constata-se pela literalidade do dispositivo, que basta o agente infrator aderir ao regime de parcelamento antes do recebimento da denúncia, que gozará da benesse da suspensão punitiva. Ressaltamos que essa normativa não faz referência ao pagamento integral para usufruir da suspensão da punibilidade, razão pala qual, se formou entendimento divergente entre ou juristas, quanto à possibilidade ou não, em relação de extinção de punibilidade, a exigência do parcelamento se efetuar antes do recebimento da denúncia, ser ampliada para os casos em que o devedor tributário quite o débito de modo integral sem se utilizar de parcelas.
Depois das inúmeras alterações legislativas desordenadas, os posicionamentos divergentes e opiniões das mais variadas, estas restaram superadas, com o posicionamento dos Tribunais Superiores, isto porque, de acordo com o Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, mesmo depois da Lei 12.382/2011, a possibilidade da extinção da punibilidade pelo pagamento, a qualquer tempo, deve ser mantida e aplicada. Nesse sentido, veja-se recente julgado da Quinta Turma do C. STJ:
[...] FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA. ACORDO CELEBRADO COM A CONCESSIONÁRIA. PARCELAMENTO DO VALOR CORRESPONDENTE À ENERGIA SUBTRAÍDA. ADIMPLEMENTO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO ANALÓGICA DAS LEIS 9.249/1995 E 10.684/2003. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. OCORRÊNCIA. COAÇÃO ILEGAL EVIDENCIADA. PROVIMENTO DO RECLAMO. (MATO GROSSO DO SUL. Supremo Tribunal de Justiça, 2015)
No mesmo sentido, dispõe o STF:
Habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Aplicação do princípio da insignificância. Tese não analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Impossibilidade de conhecimento pela Suprema Corte. Inadmissível supressão de instância. Precedentes. Não conhecimento do writ. Requerimento incidental de extinção da punibilidade do paciente pelo pagamento integral do débito tributário constituído. Possibilidade. Precedente. Ordem concedida de ofício. (SÃO PAULO. Supremo Tribunal de Justiça, 2013)
O quadro nacional brasileiro, a respeito da extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes tributários, não é animador, pois carece de punições e, na contramão dos crimes comuns, parece militar em prol do sonegador fiscal, enfraquecendo a repressão penal que o Estado com seu poder-dever deveria exercer, trazendo como consequência o aumento da sonegação tributária.
5. BREVE COMPARATIVO DA EXTINÇÃO DA PUNILIDADE DO DIREITO COMPARADO
Importante sabermos, a forma que o instituto da extinção da punibilidade é tratado em outros países e, para esse fim, realizaremos uma efêmera análise sobre as legislações alienígenas que mais influenciaram o ordenamento brasileiro.
No direito alemão, para que o agente se beneficie da liberação da punibilidade é necessário que a regularização dos débitos ou informações ao Fisco se dê antes do Estado realizar qualquer ação de fiscalização, investigação ou processo, seja esse administrativo ou criminal, muito diferente do que ocorre no Brasil.
Já no direito espanhol, sua esfera econômica passou por uma grande reforma em 1995. Entre elas, a isenção de responsabilidade para o autor da infração penal tributária, quanto este regularizar sua situação antes de qualquer ação do Estado, se assemelhando muito à legislação alemã.
No direito italiano, antigamente, o agente de delito econômico italiano que reparasse o dano ao erário era beneficiado apenas com uma redução da pena, que poderia chegar até a metade. Entretanto, com reformas no ordenamento, é possível hoje a extinção total da punibilidade, desde que a reparação se dê dentro dos limites temporais das leis estabelecidas.
No direito francês, o pagamento do imposto efetuado de modo total ou parcial não enseja em mitigação especial da pena, muito menos sua extinção. Enquanto que na legislação portuguesa, atingidos determinados requisitos da Lei, a penalidade poderá ser reduzida ou até extinta a depender do crime cometido e do período de prisão de cada tipo penal.
Constata-se que, a preocupação do legislador tupiniquim, ao tratar sobre a matéria econômica, está relacionada com a arrecadação da Administração Pública, nitidamente mais importante do que os aspectos criminais, criando inúmeras controvérsias, especialmente, quando analisados os privilégios concedidos aos agentes de delitos econômicos, e, não se verifica esses mesmos benefícios a outros crimes, criando um ambiente penal inadequado e distante dos princípios basilares deste ramo do ordenamento jurídico.