A crise do sistema penitênciário brasileiro: um estado de coisas inconstitucional

17/01/2017 às 18:20
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O desiderato central do tema proposto reside na análise das rebeliões realizadas em presídios localizados nas regiões norte e nordeste do país, no início deste ano, à luz da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347.

RESUMO: O desiderato central do tema proposto reside na análise das rebeliões realizadas em presídios localizados nas regiões norte e nordeste do país, no início deste ano, à luz da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, que retrata o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro.

Palavras chave: rebeliões; sistema penitenciário; STF; Estado de Coisas Inconstitucional.

INTRODUÇÃO

            Os fatos noticiados pela imprensa nas últimas semanas acerca das rebeliões realizadas em presídios localizados nos Estados do Amazonas, Rio Grande do Norte, de Rondônia e Roraima, retratam, expressivamente, a falência do sistema carcerário brasileiro, e a incapacidade do Estado de promover a estrutura adequada para a execução da pena, tendo em vista, sobretudo, a segurança da sociedade.

            O presente artigo propõe a análise desses movimentos de subversão à ordem e disciplina interna dos estabelecimentos prisionais, à luz da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, que retrata o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro.

            Para tanto, inicialmente será analisado um breve histórico das rebeliões de maior repercussão no país e, na sequencia, a conceituação de Estado de Coisas Inconstitucional e os argumentos da decisão proferida pelo STF acerca dessa temática.

1 A falência do sistema carcerário brasileiro – breve histórico das rebeliões de maior repercussão no país nas últimas décadas

Desde o início deste ano, os noticiários têm veiculado com destaque as rebeliões realizadas em presídios localizados nas regiões norte e nordeste do país, que resultaram na morte de dezenas de pessoas.

A rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, o maior do Amazonas, começou no domingo, dia 1º de janeiro, às 18h, uma hora depois da fuga de 87 presos do Instituto Penal Antônio Trindade, que fica ao lado. Nesta ocasião, 12 funcionários foram feitos reféns e, em 16 horas, 56 detentos morreram.

No dia 14 de janeiro, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz (RN) a rebelião teve início no período da tarde, logo após o horário de visita, e 26 detentos foram encontrados mortos. Destes, 15 estavam decapitados.

Na sequência, oito presos morreram asfixiados por fumaça na Penitenciária Estadual Ênio dos Santos Pinheiro, em Porto Velho (RO), durante a madrugada do dia 17 de janeiro.  A briga teria sido motivada por um confronto entre facções rivais, registrado na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR), no dia anterior, em que 10 detentos foram mortos e cerca de 100 familiares feitos reféns.

Somando o número de mortes, trata-se do pior massacre em presídios brasileiros desde o ano de 1992, quando a Tropa de Choque de São Paulo invadiu a Casa de Detenção do Complexo do Carandiru para conter uma rebelião que resultou na morte de 111 presos.

Dez anos depois, presos invadiram os pavilhões que abrigavam detentos ameaçados de morte no Presídio Urso Branco, de Rondônia, ocasião em que 27 detentos foram mortos.

Em 2004, uma rebelião deixou 30 mortos na Casa de Custódia de Benfica, no Rio de Janeiro e, nove anos depois, 13 presos morreram numa rebelião no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão.

Diante desses fatos, é justa e explícita a afirmação acerca da falibilidade do sistema carcerário brasileiro, em razão da ausência de estabelecimentos correcionais que contribuam para a ressocialização do infrator.

 Os centros correcionais atingem índices de ocupação alarmantes. Ao revés da otimização dos recursos disponíveis para o desenvolvimento do sistema prisional, o contingente decorrente da inflação carcerária foi alocado nas unidades já existentes, sob condições que evidenciam a precariedade do tratamento ministrado no interior de ditos estabelecimentos.

Tais circunstâncias, aliadas ao confronto travado entre grupos criminosos rivais, e à facilidade de acesso dos detentos às armas de fogo de grosso calibre, resultam em movimentos que comprometem a ordem e a disciplina dos estabelecimentos prisionais e, sobretudo, a segurança da sociedade.

Nota-se, pois, que as estruturas formais de prevenção e repressão da criminalidade estão seriamente afetadas pelo sucateamento das forças policiais, e pela notória defasagem entre a demanda e a capacidade de atendimento do Estado na fase de execução da pena.

Nesse sentido, destaca Bittencourt (2004, p.471):

(...) atualmente predomina uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional. A crítica tem sido tão persistente que se pode afirmar, sem exagero, que a prisão está em crise. Essa crise abrange também o objetivo ressocializador da pena privativa de liberdade, visto que grande parte das críticas e questionamentos que se fazem à prisão refere-se à impossibilidade – absoluta ou relativa – de obter algum efeito positivo sobre o apenado.

Destarte, é forçoso reconhecer que, ante a ausência de recursos humanos e materiais, o recrudescimento da legislação, ao revés da adoção de uma estratégia pragmática, criará óbices intransponíveis à pronta resposta do Estado e à ressocialização do infrator.

Com efeito, a inflação carcerária implicará um contingente maior de pessoas submetidas às condições degradantes dos estabelecimentos prisionais, afastando-as de qualquer perspectiva de reintegração social, o que se conclui a partir de uma análise superficial dos índices de reincidência.

2 O Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro – ADPF 347

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 347 MC/DF, em 2015, já havia alertado os Poderes constituídos que o sistema penitenciário brasileiro vive o chamado “Estado de Coisas Inconstitucional”, expressão originária da Corte Constitucional da Colômbia em 1997.

O Estado de Coisas Inconstitucional pressupõe a vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas, em virtude da inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas no cumprimento de suas obrigações para garantia e promoção dos direitos, de modo que apenas transformações estruturais e a adoção de medidas complexas por uma pluralidade de órgãos são capazes de modificar a conjuntura.

             Ademais, o Estado de Coisas Inconstitucional gera um “litígio estrutural”, ante a potencialidade de congestionamento da justiça, se todos os indivíduos que tiverem os seus direitos violados recorrerem individualmente ao Poder Judiciário.

            Diante disso, para enfrentar litígio dessa espécie, é imprescindível a utilização de “remédios estruturais” voltados à formulação e execução de políticas públicas, o que não seria possível por meio de decisões tradicionais, mas apenas adotando uma postura de ativismo judicial estrutural diante da omissão reiterada dos Poderes Executivo e Legislativo.

O reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional é uma técnica que não está expressamente prevista na Constituição Federal ou em qualquer outro instrumento normativo e, considerando que confere ao Tribunal uma ampla latitude de poderes, tem-se entendido que só deve ser manejada em hipóteses excepcionais, em que, além da violação sistêmica de direitos humanos, haja também a constatação de que a intervenção da Corte é essencial para a solução do gravíssimo quadro enfrentado.

São casos, portanto, em que se identifica um “bloqueio institucional” para a garantia dos direitos, assumindo a Corte um papel atípico, sob a perspectiva do princípio da separação de poderes, que pressupõe uma intervenção mais ampla em matéria de políticas públicas.

Com base em tais premissas, o STF reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro vive um "Estado de Coisas Inconstitucional", caracterizado pela violação generalizada de direitos fundamentais dos presos, considerando as condições em que as penas privativas de liberdade são executadas, ao revés do disposto na Lei de Execução Penal.

 Anna Cecília Fernandes Almeida, citando Leal, observa, com precisão, em que circunstâncias são cumpridas as sanções penais nos presídios brasileiros (DireitoNet, janeiro de 2017):

De fato, como falar em respeito à integridade física e moral em prisões onde convivem pessoas sadias e doentes; onde o lixo e os dejetos humanos se acumulam a olhos vistos e as fossas abertas, nas ruas e galerias, exalam um odor insuportável; onde as celas individuais são desprovidas por vezes de instalações sanitárias; onde os alojamentos coletivos chegam a abrigar 30 ou 40 homens; onde permanecem sendo utilizadas, ao arrepio da Lei 7.210/84, as celas escuras, as de segurança, em que os presos são recolhidos por longos períodos, sem banho de sol, sem direito a visita; onde a alimentação e o tratamento médico e odontológico são muito precários e a violência sexual atinge níveis desassossegantes? Como falar, insistimos, em integridade física e moral em prisões onde a oferta de trabalho inexiste ou é absolutamente insuficiente; onde os presos são obrigados a assumirem a paternidade de crimes que não cometeram, por imposição dos mais fortes; onde um condenado cumpre a pena de outrem, por troca de prontuários; onde diretores determinam o recolhimento na mesma cela de desafetos, sob o falso pretexto de oferecer-lhes uma chance para tornarem-se amigos, numa atitude assumida de público e flagrantemente irresponsável e criminosa.

Com efeito, a ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa uma verdadeira "falha estrutural" que contribui para a perpetuação e o agravamento da situação inconstitucional.

Diante dessa conjuntura, o STF, com o intuito de retirar os demais poderes da inércia, coordenar ações visando a resolver o problema e monitorar os resultados alcançados, determinou, cautelarmente, à época da decisão, que juízes e Tribunais de todo o país implementassem, no prazo máximo de 90 dias, a audiência de custódia, bem como que a União liberasse, sem qualquer tipo de limitação, o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para o qual foi criado, proibindo a realização de novos contingenciamentos.

Todavia, tendo em vista os massacres ocorridos no interior dos presídios brasileiros nas últimas semanas, é imperioso constatar que os Poderes constituídos não adotaram, desde a decisão citada, qualquer medida destinada a concretizar as diretrizes fixadas pelo STF.

Ao contrário, a inércia reiterada e persistente do Estado no cumprimento de suas obrigações, notadamente no que diz respeito à estruturação do sistema penitenciário brasileiro e à garantia fundamental de segurança pública, fomentou o agravamento de uma realidade institucional deveras degradante.

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                Surge, pois, a imprescindibilidade de uma atuação racional e eficaz do Estado, ao qual compete a realização do bem comum, ativando de maneira positiva seus instrumentos no sentido da consecução prática de seu dever.

           

            No mesmo sentido, Virgínia da Conceição Camargo retrata a necessidade de mudanças estruturais urgentes (DireitoNet, janeiro de 2017):

Mudanças radicais neste sistema se fazem urgentes, pois as penitenciárias se transformaram em verdadeiras "usinas de revolta humana", uma bomba-relógio que o judiciário brasileiro criou no passado a partir de uma legislação que hoje não pode mais ser vista como modelo primordial para a carceragem no país. O uso indiscriminado de celular dentro dos presídios, também é outro aspecto que relata a falência. Por meio do aparelho os presidiários mantêm contato com o mundo externo e continuam a comandar o crime. Ocorre a necessidade urgente de modernização da arquitetura penitenciária, a sua descentralização com a construção de novas cadeias pelos municípios, ampla assistência jurídica, melhoria de assistência médica, psicológica e social, ampliação dos projetos visando o trabalho do preso e a ocupação, separação entre presos primários e reincidentes, acompanhamento na sua reintegração à vida social, bem como oferecimento de garantias de seu retorno ao mercado de trabalho entre outras medidas.

Portanto, é imprescindível e inadiável a adoção de medidas emergenciais capazes de conter a situação de crise, mas, além disso, a realização de investimentos suficientes para promover a modificação da atual conjuntura e impedir que, mais uma vez, a sociedade pague o preço da inércia estatal e seja obrigada a conviver com a insegurança gerada pela realidade carcerária do Brasil.

CONCLUSÃO

Diante dos fatos noticiados pela imprensa nas últimas semanas acerca das rebeliões realizadas em presídios localizados nas regiões norte e nordeste, e considerando os movimentos de igual magnitude ocorridos nas últimas décadas em penitenciárias de todo o país, é correta toda afirmação acerca da falibilidade do sistema carcerário brasileiro.

A ausência de estabelecimentos correcionais que contribuam para a ressocialização do infrator e o déficit de vagas decorrente da inflação carcerária, associados ao confronto travado entre grupos criminosos rivais, e à facilidade de acesso dos detentos às armas de fogo de grosso calibre, retratam a inércia reiterada e persistente do Estado no cumprimento de suas obrigações, notadamente no que diz respeito à estruturação do sistema penitenciário brasileiro e à garantia fundamental de segurança pública.

Portanto, somente a adoção de medidas estruturais voltadas à formulação e execução de políticas públicas específicas para o setor em crise, são capazes de impedir o agravamento da realidade institucional com a qual a sociedade brasileira é obrigada a conviver há décadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- Falência da pena de prisão: causas e alternativas; Cézar Roberto Bitencourt; 3ª Ed.;  Wilson Donizeti Liberati; 7ª ed.; São Paulo, Saraiva, 2004.

- Prisão: uma discussão oportuna; LEAL, 1998 apud ALMEIDA, 2005. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/92/1992/> Acesso em janeiro/2017

- Realidade do sistema prisional. 2006. Virginia da Conceição Camargo. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/29/71/2971//> Acesso em janeiro/2017.

- Jornal Nacional. Disponível em: < http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/01/rebeliao-em-presidio-do-amazonas-deixa-mais-de-50-mortos.html> Acesso em janeiro/2017.

- Portal de Notícias G1. Disponível em: < http://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2016/10/briga-entre-faccoes-rivais-no-presidio-urso-branco-tem-8-presos-mortos.html> Acesso em janeiro/2017.

- Portal de Notícias G1. Disponível em: < http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2017/01/apos-rebeliao-video-mostra-presos-cavando-tunel-em-penitenciaria-do-rn.html> Acesso em janeiro/2017.

- Supremo Tribunal Federal, informativo 798. Disponível em: < http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo798.htm> Acesso em janeiro/2017.

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Sobre a autora
Nadia Maria Saab

Advogada. Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru/SP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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