Resumo: O presente artigo tem como propósito analisar de frente duas concepções divergentes sobre a força da norma constitucional, inicialmente, com Ferdinand Lassalle (1862) e, posteriormente, com Konrad Hesse (1959). Enquanto este defende que a Constituição tem força normativa, podendo ser a realidade social alterada conforme seu texto, aquele afirma que uma nova Constituição, instituída fora da realidade vigente sucumbirá diante dos ‘fatores reais de poder’. Além disso, o estudo mostra as aplicações das duas teorias no prisma constitucional atual, culminando no entendimento de que ambas as teses são inconciliáveis em um mesmo Estado, porém, ainda vigoram alternadamente em diferentes sociedades.
Palavras-chave: Força Normativa. Essência da Constituição. Ferdinand Lassalle. Konrad Hess.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Constituição no plano sociológico de Ferdinand Lassalle. 3. A Força Normativa na Constituição de Konrad Hesse. 4. As perspectivas de Lassalle e Hesse no panorama contemporâneo. 5. Conclusão.
1. Introdução
Este breve estudo aborda os principais aspectos encontrados na concepção sociológica da Constituição de Ferdinand Lassalle e na teoria da força normativa na Constituição segundo Konrad Hess.
Ambos os autores buscaram evidenciar o que de fato determina a vigência de um sistema juridicamente eficaz, tendo como ápice sua Constituição: os fatores reais de poder, elucidados por Lassalle, ou a própria força normativa da Constituição, a partir de tarefas impostas por ela, segundo Hesse. Este, por sua vez, em sua breve obra “A Força Normativa da Constituição” (1959) defendeu tese contraria à de Lassalle, que quase um século antes, formulou um consolidado pensamento acerca da ineficiência de um puro texto constitucional frente a uma realidade social divergente.
2. A Constituição no plano sociológico de Ferdinand Lassalle[1]
Na introdução de sua obra Über die Verfassung, traduzida para a edição brasileira como “A Essência da Constituição” ou “O Que É Uma Constituição?”, Ferdinand Lassalle exalta o caráter científico de sua palestra, ocorrida em 1862 à Associação de Contribuintes de Berlim, e incita os ouvintes a despirem-se de quaisquer preceitos antes concebidos acerca do tema. Isso é devido à sua nova apresentação da real acepção - a seu ver - de uma Constituição, que será apresentada por meio de analogias, comparações, simulações e hipóteses no decorrer do corpo do texto.
Inicialmente, o autor indaga sobre o que seria uma constituição, e onde encontrar sua verdadeira essência. Consoante a proposta, Lassalle busca inicialmente a comparação entre as Leis e a Constituição, a fim de elucidar seus questionamentos com a percepção das diferenças que distinguem uma a outra, desaguando em uma analogia indutiva, que emergirá pelo enunciado: “Uma Constituição, para reger, necessita da aprovação legislativa, isto é, tem que ser também lei. Todavia, não é uma lei como as outras, uma simples lei, é mais do que isso.”.
Fundamental diferença seria, portanto, o fato de ser a Constituição muito mais que uma simples lei. Como apresentada, aquela seria firmemente amarrada em seu próprio escopo, de forma quase intangível, carecendo de notoriedade díspar de ausência na modificação de seu conteúdo. Tanto é, que há Constituições que preveem em seus textos o alto quorum necessário para tais alterações. Ademais, existe, segundo o autor, quem declare que não é da competência do legislativo ou do Estado o poder de sua transfiguração: para reformá-la, deverá ser nomeada uma Assembleia Legislativa ad hoc, criada expressa e exclusivamente para esse fim.
Desse modo, percebe-se que “no espírito unânime dos povos, uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme, de mais imóvel que uma lei comum.”.
São notáveis, ainda, as características da Constituição como lei fundamental, tal que, por ser uma lei básica, constitui o verdadeiro fundamento das outras leis, devendo irradiar-se através das leis comuns dela originadas. Comente-se que essa percepção de Lassalle, ainda em 1862, foi fundamental para a futura concepção do paradigma (neo)constitucional, o qual, dentre outros atributos, prevê a Constituição como norma irradiante de todo o ordenamento jurídico.
Como lei fundamental, esta vigora devido ao fato de haver na sociedade uma “coação geradora da noção de obrigatoriedade”. Essa coação é impulsionada pelo que o autor prussiano denomina de “fatores reais do poder”, fatores esses que, no seio da sociedade, constituem a “força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são”. De forma ilustrativa, exemplifica a eficácia dos fatores reais de poder com um hipotético incêndio que destruiria todas os escritos das leis de um país, gerando a necessidade de emersão de novas leis. Ora, pergunta ele, “o legislador, completamente livre, poderia fazer leis de capricho ou de acordo com o seu próprio modo de pensar?”.
A resposta é negativa, e para justificar, enumera os ditos fatores de poder: a monarquia (leia-se o príncipe), a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe operária. A relevância de cada fator no cenário social é, no entanto, distinta, devido à força real que cada um exerce no seio da sociedade.
Monarquia: o rei é detentor da soberania e do exército, de forma que torna-se, via de regra, capaz de impor plenamente sua vontade;
Aristocracia: o poder e a influência dos grandes proprietários de terra compõem a maioria legislativa aliada à monarquia. Constitui também uma parte da Constituição;
Grande burguesia: caso fossem aprovadas medidas constitucionais desfavoráveis à grande massa burguesa, poderia ocorrer uma grande crise no setor industrial, que culminaria na consequente intervenção social;
Banqueiros: detentores do financiamento do Governo, fomentariam a implantação de medidas que firmem seus interesses, agregando, assim, parte da forma constitucional;
Pequena burguesia e a classe operária:
“Se o governo pretendesse tirar à pequena burguesia e ao operariado, não somente as suas liberdades políticas, se não sua liberdade pessoal, isto é, se pretendesse transformar pessoalmente o trabalho em escravo ou servo, tornando a situação em que se viveu durante os tempos de Idade Média? Subsistiria essa pretensão? (...) Seria tempo perdido. A multidão sairia à rua; a pequena burguesia juntar-se-ia solidariamente com o povo e a resistência desse bloco seria invencível.”.
Não obstante, é mister salientar que os fatores reais de poder não aparecem explicitamente no texto constitucional, de forma que este aparenta ser dirigido a todos, mas esconde o interesse das minorias totalitárias. Apesar disso, nota-se que todas as classes da sociedade são parte integrante da força normativa. Revela-se, aqui, a concepção constitucional de cunho estritamente social, cujas matérias não representam questões jurídicas, e, sim, políticas.
Nesse diapasão, culmina a principal colocação de Lassalle no que tange à ambivalência das constituições de um país: para o autor, há a Constituição escrita - a “folha de papel” - e a Constituição real, formada pela soma dos fatores reais de poder. Essa última, como já demonstrado, é a detentora do reflexo da sociedade, estando visceralmente relacionada a este. Diga-se mais, a Constituição formal (escrita) sempre sucumbirá perante as forças vigentes no país, pois “de nada serve o que se escreve numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos favores reais e efetivos o poder”.
O enunciado escudado por Lassalle afirma que os fatos têm mais peso que as normas. Normas estas que se apoiam nos próprios fatos, e não o contrário. Por conseguinte, segundo a visão sociológica do autor alemão, acreditar que o texto da Constituição pode mudar a realidade social já disseminada é um equívoco[2].
3. A Força Normativa na Constituição de Konrad Hesse[3]
Em uma concepção diametralmente divergente à de Lassalle, Konrad Hesse, em seu famoso texto “A Força Normativa da Constituição” (1959), consagra uma síntese das modernas ideias de Constituição, como “ordem jurídica fundamental, material e aberta de uma comunidade”.
O autor parte do preceito de que a norma constitucional pode possuir eficácia independentemente da realidade social preexistente, no entanto, limitada a alguns fatores. Referindo-se à tese de Lassalle:
“Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa, operando-se sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais como diferenciá-la da Sociologia ou da Ciência Política. (...) A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição. Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional? Qual o fundamento e o alcance dessa força?”.
Questionando, assim, a validade dos fatores reais de poder frente à força constitucional formal, Hesse aponta a necessidade desta última se apresentar como uma expressão do dever ser. Nesse prisma deontológico, é consagrada, na verdade, toda a essência do ordenamento jurídico, desde as normas ordinárias às normas constitucionais, posto que o texto "folha de papel" jamais encontrará, a priori, uma sociedade já em seus moldes, cabendo a esse, a efetivação de sua norma por meio da imposição de tarefas, diga-se, da vontade. "É a partir de tal prisma que Hesse busca conciliar realidade e normatividade constitucionais. Sem virar as costas para a realidade histórica-política, a Constituição não pode perder sua natureza deontológica"[4].
“A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. (...)A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também, de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social”.
Outro fator decisivo para a vigência da norma seria, portanto, a vinculação a uma situação histórica concreta e suas condicionantes, dotada pelos parâmetros da razão. Essa razão culminaria em uma necessidade impulsionadora da vontade, pois a vida do Estado e da sociedade, tal como a vida humana, não estaria abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis, v.g., a monarquia e a grande e pequena burguesia. “Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas”.
Visando a superação das vicissitudes, a verdadeira Constituição seria aquela que, em momentos tempestuosos, continuaria firme, pois, somente assim, seria “submetida à sua prova de força”. Diante disso, o autor comunga da ideia de Carl Schmitt, segundo a qual, o estado de necessidade configura ponto essencial para a caracterização da força normativa da Constituição.
Observa Hesse que, no processo político da moderna sociedade pluralista, “a compensação entre diferentes opiniões, interesses e aspirações, como a resolução e regulação de conflitos, converteram-se em tarefa arquetípica e condição de existência do Estado”[5]. Emerge, a partir disso, um outro tópico presente na força normativa, indispensável para a formação de uma unidade política: os direitos fundamentais como corolários da Constituição.
"É a Constituição que – além de instituir órgãos supremos e regular-lhes as competências, a par de traçar ‘o procedimento com que se hão de superar os conflitos que surjam dentro da comunidade’ – deverá estabelecer ‘os princípios fundamentais do ordenamento jurídico, e não só da vida estatal em sentido estrito. Positiva princípios e critérios para estabelecer e aplicar as normas do ordenamento. Ordena todas as esferas de vida essenciais à convivência’.”.[6]
Portanto, enquanto Lassalle apreendia a sujeição da Constituição aos fatores reais de poder, Hesse assegura que a Constituição, para ter eficácia, deve incorporar os elementos sociais, políticos e econômicos dominantes, além do estado espiritual de seu tempo, que assegurará a defesa da consciência geral da Constituição.
Salutar afirmar que Konrad Hesse, além da tese da força normativa da Constituição, desenvolveu, conjuntamente, a defesa da abertura constitucional. Nesse contexto, a Constituição ideal seria aquela formada por uma pluralidade de projetos de vida, que pudessem vigorar concomitantemente. Essa abertura, porém, não é ilimitada, pois a Carta Magna conforma o Estado a partir de regras e princípios que ela mesma estatui e que não estão sujeitos a transações ou barganhas políticas.[7]
4. As perspectivas de Lassalle e Hesse no panorama contemporâneo
Válido é reconhecer a importância das considerações de ambos os autores para a formação e desenvolvimento de futuros trabalhos no mesmo ramo, como também os reflexos de suas concepções nos estudos constitucionais na atualidade.
O constitucionalista Karl Löewenstein, por exemplo, em seu modelo de classificação das constituições, comunga, em parte, o pensamento de Lassalle, defendendo que há constituições que não apresentam força normativa frente à sociedade. A esse tipo de Carta, dar-se-ia o título de Constituição Nominal. Isto é, toda Constituição Nominal, carrega, portanto, um ideal não contemplado pragmaticamente.
Como exemplo contemporâneo, tem-se, nada menos, que a Constituição Brasileira de 88, a qual, segundo a doutrina majoritária, partilha do status de uma Carta Nominal. A promulgação de um texto escrito pelo constituinte de 88, destarte, não foi capaz de adequar cabalmente a realidade social frente o ideal constitucional pretendido.
Superada a comprovação da constituição sociológica vigente, partimos para as contribuições de Hesse.
Em outro contexto social e político, a proposta de Hesse contempla bem alguns exemplos de força normativa versus status quo. Devido à própria contemporaneidade da teoria (firmada na década de 50), seus moldes são mais visíveis, originando constituições exitosas, que vigoram há décadas, e com o mínimo de alterações necessárias. A Carta dos Estados Unidos da América, v. g., após sofrer, em 1791, as emendas denominadas Bill of Rights, vem conservando o seu texto fundamental, através de constante evolução jurisprudencial. Aponta-se como exemplo também a Constituição Alemã de 1949 e a Constituição Francesa de 1958, dentre outras. Frisa-se que a perpetuação de uma constituição reflete a adequação do meio social a seu texto.