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Isenção tributária da Cofins. Sociedades civis de profissão regulamentada.

Uma análise sobre a existência de hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária

Leia nesta página:

Sumário: 1. Introdução. 2. Breve Histórico. 3. Impossibilidade de revogação do art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91 por lei ordinária. 4. A Hierarquia entre Lei Ordinária e Lei Complementar. 5. Competência do Superior Tribunal de Justiça – Matéria Infraconstitucional – Manutenção da Súmula nº 276. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.


1. Introdução

O fim precípuo deste modesto artigo é demonstrar que as Sociedades Civis de Profissão Regulamentada são titulares do direito à isenção tributária da COFINS – Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social -, afirmação que se firma na tese jurídica da existência de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária em matéria tributária.

Como será exaustivamente evidenciado, as sociedades civis mencionadas possuem direito à mencionada isenção da COFINS, em decorrência do art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91, que continua em vigor.

Impende salientarmos que a polêmica que paira sobre o tema abordado reside na discussão acerca da possibilidade de uma isenção tributária outorgada através de uma lei complementar ser revogada por uma simples lei ordinária.


2. Breve Histórico

Através da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991, fora instituída a COFINS que, em seu artigo 6º, inciso II, isentou desse pagamento as sociedades civis descritas no Decreto-Lei nº 2.397/87.

O Decreto-Lei nº 2.397/87, citado no inciso II do artigo 6º da Lei Complementar nº 70/91, em seu artigo 1º, classificou as sociedades civis que estariam enquadradas em tal isenção, quais sejam:

"sociedades civis de prestações de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada, registradas no registro civil das pessoas jurídicas e constituídas exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no país."

Nota-se que as únicas exigências para as sociedades civis gozarem de tal isenção são:

I-sociedades civis de prestações de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada; 

II-registradas no Registro Civil das Pessoas Jurídicas;

III-constituídas exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no país.

Inicialmente, o supramencionado direito à isenção tributária da COFINS foi contestado pela Receita Federal, que argumentava que o direito à fruição da isenção da COFINS prevista na Lei Complementar nº 70/91 estaria condicionada à opção pelo regime de tributação para o imposto de renda.

Como não poderia deixar de ser, tal intento foi rechaçado pelo Judiciário pátrio e, posteriormente, com a consolidação da jurisprudência sobre o tema, tal discussão não mais se apresenta. A mencionada consolidação ocorreu através da edição da Súmula nº 276 do STJ:

"Súmula nº 276 - STJ - As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário adotado".

Mesmo após ter amargado tal derrota junto ao Poder Judiciário, a Receita Federal permaneceu firme no intento de exigir o recolhimento da malsinada contribuição, defendendo a suposta revogação da norma isentiva acima referida pelo art. 56 da Lei Ordinária nº 9.430/96.


3. Impossibilidade de Revogação do art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91 por lei ordinária

Impende observar que o argumento da Receita Federal viola todos os princípios da teoria geral das normas jurídicas, haja vista que dispõe a possibilidade de uma isenção tributária concedida por lei complementar ser revogada por simples lei ordinária, negando, assim, a existência de hierarquia jurídica entre as multicitadas normas.

No instante em que a lei complementar foi eleita como instrumento normativo, para criar a contribuição social e, ao mesmo tempo, outorgar a isenção específica, esta via legal é a única capaz de modificar ou revogar tais disposições.

Não existem argumentos jurídicos ou mesmo teleológicos que justifiquem que uma isenção outorgada por vontade da maioria absoluta dos congressistas, seja eventualmente revogada por meio de votos de uma minoria simples do Congresso Nacional, ocasionalmente formada em torno de uma conjuntura política transitória.

Hodiernamente, o direito à isenção tributária da COFINS encontra respaldo tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátrias. Já estando pacificada no STJ tal discussão, conforme as decisões abaixo colacionadas:

AGRAVO REGIMENTAL. TRIBUTÁRIO. COFINS. SOCIEDADE CIVIL. ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. ISENÇÃO. LC 70/91.

1. A isenção tributária concedida por Lei Complementar só pode ser revogada por lei de igual natureza e não por lei ordinária.

2. Agravo regimental improvido.

(AGRESP 382736/SC; STJ - PRIMEIRA SEÇÃO. Rel. Min. CASTRO MEIRA. DJ:25/02/2004 PG: 91)

AGRAVO REGIMENTAL - COFINS - ISENÇÃO - SOCIEDADES CIVIS PRESTADORAS DE SERVIÇO - MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL PACIFICADA NO ÂMBITO DESTE SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

Deve prevalecer o entendimento, segundo o qual, a análise da aplicação de uma lei federal não é incompatível com o exame de questões constitucionais subjacentes ou adjacentes. A competência somente seria deslocada para a Máxima Corte se a v. decisão recorrida tivesse julgado o feito única e exclusivamente sob o prisma constitucional, o que não se deu, no caso ora em exame. Não merece reforma a decisão agravada, pois o entendimento deste Sodalício é pacífico no sentido de que a disposição contida no artigo 56 da Lei n. 9.430, de 27.12.96, não detém a virtude de revogar a isenção da COFINS conferida pela Lei Complementar n. 70/91 às sociedades civis de profissão regulamentada, sob pena de se desconsiderar potencialidade hierarquicamente superior da lei complementar frente à lei ordinária.

Esse entendimento foi confirmado pela egrégia Primeira Seção no julgamento do REsp n. 382.736/SC, relator para acórdão o Ministro Francisco Peçanha Martins, julgado em 09 de outubro de 2003.

Agravo regimental a que se nega provimento.

(AGRESP 575037/SP. STJ - SEGUNDA TURMA, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO. DJ: 24/11/2003 PG: 298)

TRIBUTÁRIO – COFINS – SOCIEDADES CIVIS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS – ISENÇÃO RECONHECIDA PELA LEI COMPLEMENTAR N. 70/91 (ART. 6O, II) – REVOGAÇÃO PELA LEI ORDINÁRIA N. 9.430/96 – INADMISSIBILIDADE – SÚMULA N. 276/STJ - RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.

Permitir-se que uma fonte formal de menor bitola possa revogar a dispensa do pagamento da COFINS, conferida por lei complementar, resulta em desconsiderar a potencialidade hierarquicamente superior da lei complementar frente à lei ordinária (Súmula n. 276/STJ). Nessa linha de raciocínio, o Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ancorado no magistério dos mestres Miguel Reale e Pontes de Miranda, elucida que "é princípio geral de direito que, ordinariamente, um ato só possa ser desfeito por outro que tenha obedecido à mesma forma" (cf. "Curso de Direito Constitucional", 18ª ed., Ed. Saraiva, p. 184).

Esse entendimento foi confirmado pela egrégia Primeira Seção no julgamento do REsp 382.736/SC, relator para acórdão o Ministro Francisco Peçanha Martins, julgado em 09 de outubro de 2003.

Recurso especial conhecido e provido.

(RESP 573482/RS. STJ - SEGUNDA TURMA, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO. DJ:16/02/2004 PG: 240)

Ademais, a Súmula nº 276 do STJ foi re-analisada, enfocando a possibilidade de uma isenção tributária concedida por lei complementar ser revogada por uma lei ordinária, o que ocorreu na Egrégia Primeira Seção do STJ, no julgamento do AgRG REsp nº 382.736/SC, que decidiu pela impossibilidade da objurgada revogação. O relator para acórdão foi o Ministro Francisco Peçanha Martins, estando ainda pendente a sua publicação.

O supracitado Agravo Regimental foi julgado na Primeira Seção do STJ porque o Rel. Ministro Castro Meira, da Segunda Turma do STJ, por questão de ordem, entendeu ser necessária a verificação da aplicabilidade da Súmula nº 276, já que o Agravante sustentava a revogação da isenção tributária concedida por lei complementar por lei ordinária superveniente, salientando, ainda, a suposta existência de decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo que a Lei Complementar nº 70/91 seria materialmente ordinária, o que autorizaria sua revogação por simples lei ordinária.

Os ministros da Seção, contudo, entenderam que a súmula deveria ser mantida. Apenas o ministro Teori Albino Zavascki acompanhou o relator.

Acrescente-se, que na reavaliação da Súmula nº 276 do STJ questionou-se expressamente a possibilidade do art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91 ter sido revogado pelo art. 56 da Lei Ordinária nº 9.430/96, concluindo-se pela presença de hierarquia entre as multicitadas normas, sendo impossível que uma lei complementar seja revogada por uma lei ordinária.

Impende criticarmos a postura do Superior Tribunal de Justiça quanto a não reformulação do texto da Súmula nº 276 do STJ, que permaneceu inexplicavelmente sem qualquer alteração, não obstante ter-se apreciado e decidido novo aspecto sobre o tema: a presença de hierarquia entre a Lei Complementar nº 70/91 e a Lei Ordinária nº 9.430/96 e a conseqüente ilegitimidade da revogação da isenção tributária da COFINS.


4. A Hierarquia entre Lei Ordinária e Lei Complementar

A hierarquia das fontes jurídicas é inegavelmente um instrumento importantíssimo para a análise da dinâmica do sistema normativo, sendo indispensável para a verificação de eventuais alterações ou revogações das normas que constituem o ordenamento jurídico pátrio. Servindo como base para a integração do ordenamento jurídico, bem como para se afastar eventuais antinomias entre as normas.

Partindo da supracitada premissa, não há que se olvidar que o marco inicial para o mapeamento da hierarquia das fontes legais é a Constituição Federativa do Brasil, considerada como a norma fundamental, que dispõe acerca da organização básica do Estado, dos diretos fundamentais do ser humano e do cidadão, além de disciplinar as formas, os limites e as competências para o exercício dos poderes inerentes à soberania nacional - Poderes Administrativo, Legislativo e Jurisdicional.

Essa é a conhecida supremacia constitucional, que confere validade e legitimidade aos poderes do Estado, dentro dos limites por ela impostos, não podendo ser contrariada por qualquer dispositivo legal do ordenamento, sob pena de ser considerado inconstitucional.

Abaixo da Constituição Federal existem outras espécies normativas, que estão taxativamente enumeradas em seu art. 59 e que devem ser elaboradas pelo Congresso Nacional:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I-emendas á Constituição;

II-leis complementares;

III-leis ordinárias;

IV-leis delegadas;

V-medidas provisórias;

VI-decretos legislativos.

No que tange ao processo legislativo, verifica-se tais espécies normativas podem diferenciar-se tanto em relação à matéria de sua competência - critério material - quanto em relação ao procedimento para sua elaboração, em que se distinguem em relação ao quórum necessário à sua aprovação.

No que se refere à lei ordinária e à lei complementar, é imperativo reconhecer que as diferenças residem nos dois mencionados aspectos. O primeiro de ordem material, pois, em alguns casos, reservou o Constituinte, de forma taxativa, algumas matérias a serem normatizadas apenas por meio de lei complementar. Já o outro é de ordem formal, que se materializa na exigência de quórum especial para a aprovação de lei complementar, sendo necessária a maioria absoluta dos votos do Congresso Nacional para ser aprovada (art 69, da CF), enquanto que as leis ordinárias dependem apenas de maioria simples para sua aprovação (art. 47, da CF).

O que justifica o quórum qualificado para a aprovação da lei complementar, nos termos do art. 69 da Constituição Federal, é a preocupação em protegê-la contra eventuais modificações que sejam fruto de uma vontade de uma minoria ocasionalmente em condições de fazer prevalecer sua voz.

Resta observarmos que a Constituição Federal, ao estabelecer que certas matérias só poderiam ser disciplinadas por lei complementar, não vedou que outras matérias, inseridas, por exclusão, na competência do legislador ordinário, fossem reguladas por lei complementar, é o que a doutrina batizou de lei complementar extravagante. O Legislador ao, assim, fazê-lo confere maior perenidade e segurança jurídica à matéria tratada, impedindo sua reforma ou revogação por um casual encontro de interesses pessoais.

Entretanto, alguns autores, como Michel Temer, Celso Bastos, entendem que entre a lei complementar e a lei ordinária inexiste qualquer relação hierárquica, pois ambas retirariam seu fundamento de validade da própria Constituição e possuiriam âmbitos materiais de atuação distintos. Ressaltam, ainda, que quando uma norma invadisse o âmbito de atuação de outra, violaria limites horizontais e não verticais.

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Essa corrente doutrinária sustenta que caso a lei ordinária invadisse a competência da lei complementar esta seria inválida por inconstitucionalidade, entretanto no caso da lei complementar tratar de matéria, que por exclusão, é de competência de lei ordinária, acabaria tornando-se materialmente lei ordinária, o que permitiria sua revogação ou modificação por outra lei ordinária.

Esta tese jurídica, inobstante ser também defendida pelo ilustre Professor de Direito Tributário da Universidade Federal da Bahia Dr. Helcônio Almeida, data maxima venia, não merece prosperar. Para respaldar nosso entendimento, pedimos novamente venia para transcrever a pertinente e elucidadora preleção do sempre festejado tributarista Hugo de Brito Machado [1]:

"Respeitáveis juristas têm sustentado que só é lei complementar aquela que trata de matérias a ela reservadas pela Constituição. Se tratar de matéria não reservada pela Constituição a essa espécie normativa será ela, nesse ponto, uma lei ordinária. Essa tese e equivocada e resulta da importação indevida da doutrina estrangeira. No direito espanhol, por exemplo, as leis orgânicas são definidas na Constituição em razão da matéria de que se ocupam. Por isto, naquele país se tem afirmado ser de todo evidente que o art. 81 d Constituição construiu o conceito de leio orgânica sobre uma base estritamente material, posto que são leis orgânicas as relativas ao desenvolvimento dos direitos fundamentais (Garcia de Enterría).

Entre nós a situação é diversa. Nossa Constituição não define as leis complementares nem diz que estas estão reservadas a determinadas matérias complementares. Não contém norma dizendo que são leis complementares aquelas que trata de matérias que indica. Diversamente, nossa Constituição coloca a lei complementar como uma espécie normativa, no rol do art. 59, e as caracteriza pela exigência de quorum especial para sua aprovação (art. 69). Além disso, estabelece que "lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração, e consolidação das leis" (art. 59, parágrafo único).

Sem dispositivo expresso da Constituição que afirme o contrário, caracteriza-se a lei complementar por seu aspecto formal. Aliás, toda e qualquer espécie normativa ganha identidade especifica, e assim tem definida a sua posição hierárquica no sistema jurídico a partir de elementos formais. Não em razão de seu conteúdo. A competência do órgão que a emite, e o procedimento adotado em sua elaboração, determinam sua espécie e posição hierárquica."

(grifos aditados)

Vale dizer que notáveis juristas como Alexandre de Moraes, Haroldo Valadão Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Nelson Sampaio Pontes de Miranda, Geraldo Ataliba e Wilson Accioli entendem que a lei complementar é hierarquicamente superior à lei ordinária, tendo em vista o seu tratamento qualificado conferido pelo legislador constituinte, mantendo sua superioridade hierárquica mesmo quando disciplina acerca de matérias passíveis de normatização por lei ordinária.

Inobstante o entendimento dos ilustres retrocitados críticos à hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, tal hierarquia deve ser reconhecida.

Não estamos negando a existência dos limites horizontais entre as leis, verificáveis in concreto quando as leis disciplinam matérias de competências diversamente previstas pela Constituição Federal para seu âmbito de atuação. O que aduzimos com convicção, porém, é que sempre aparecerão distinções verticais quando matérias, que por exclusão são da competência do legislador ordinário, forem reguladas por lei complementar, desta forma hierarquizam-se as fontes e as respectivas normas.

Então, aplica-se a regra hermenêutica fundada no argumento a maiore ad minus, que permite que uma matéria possível de ser disciplinada por lei ordinária seja normatizada por lei complementar, que continuará sendo considerada lei complementar mesmo não tratando das matérias constitucionalmente a ela reservadas, já que, repito, inexiste qualquer vedação constitucional à utilização das leis complementares, uma vez que a Constituição apenas especifica de forma taxativa quais matérias devem ser normatizadas por lei complementar.

Destarte, resta evidente a impossibilidade de uma lei complementar ser revogada por uma lei ordinária. Nesse sentido, o renomado jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho [2] preleciona que "é princípio geral de Direito que, ordinariamente, um ato só possa ser desfeito por outro que tenha obedecido a mesma forma".


5. Competência do Superior Tribunal de Justiça – matéria infraconstitucional – Manutenção da Súmula nº 276.

O Superior Tribunal de Justiça pacificou seu entendimento acerca da possibilidade da isenção tributária da COFINS concedida por meio da Lei Complementar nº 70/91 ser revogada pela lei Ordinária nº 9.430/96.

A Súmula nº 276 do STJ, como anteriormente ressaltado, foi reavaliada e mantida pela Egrégia Primeira Seção no julgamento do AgRg REsp nº 382.736/SC, tendo como relator para acórdão o Ministro Francisco Peçanha Martins.

Esta decisão somente veio a sedimentar com mais afinco o entendimento que já havia sobre a matéria na doutrina e jurisprudência pátria, inclusive dentro do próprio STJ. Pois, ao contrário, estar-se-ia a renegar o princípio da hierarquia das normas jurídicas, um dos sustentáculos de nosso ordenamento jurídico.

A matéria aqui discutida versa acerca da possibilidade de uma lei ordinária revogar uma lei complementar, que configura-se nitidamente uma questão infraconstitucional, lastreada na Lei de Introdução ao Código Civil - LICC (Decreto-lei nº 4.657/42).

Devemos salientar que a LICC, apesar de sintética, determina a forma de entendimento das regras de Direito, os princípios basilares do arcabouço jurídico, as fontes nas quais o julgador deve encontrar os subsídios para exercer a jurisdição e a precedência hierárquica destas normas.

Com efeito, sua finalidade seria a orientação do operador do direito no emprego das normas jurídicas, não servindo para regular quaisquer relações de direito material, mas sim para reger as normas indicando a maneira de "interpretá-las ou aplicá-las, determinando-lhes a vigência e eficácia, suas dimensões espácio-temporais, assinalando suas projeções nas situações conflitivas de ordenamentos jurídicos nacionais e alienígenas, evidenciando os respectivos elementos de conexão" [3].

Outrossim, observa-se que a revogação e a modificação das leis está prevista no art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil:

Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor ate que outra a modifique ou revogue.

Cabe-nos ressalvar o tempestivo ensinamento dos juristas Florisbal de Souza Del’Olmo e Luis Ivani de Amorin Araújo [4]:

"Ademais, cabe salientar que uma norma sujeita-se à modificação ou à revogação tão somente quando a lei que seja superveniente esteja situada no mesmo plano hierárquico ou no plano superior daquela que lhe antecedeu."

O Superior Tribunal de Justiça em diversas decisões tem assentado o entendimento de que a discussão entre lei complementar e lei ordinária é matéria de natureza infraconstitucional. Nessa linha de intelecção:

PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – CONFRONTO ENTRE LEI ORDINÁRIA E LEI COMPLEMENTAR – MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL.

1. A questão constitucional só admite recurso extraordinário quando enfrentada claramente pela decisão recorrida.

2. Princípios constitucionais que chegam aos julgados por via

reflexa, princípios estes contidos na Lei de Introdução ao Código Civil, podem ser examinados pelo STJ, em exame infraconstitucional.

3. O confronto da lei ordinária com o CTN é constitucional apenas por via reflexa, o que enseja recurso especial.

4. Embargos de declaração acolhidos, sem efeitos modificativos.

(EDREsp 226.062/SC – Rel. Min Eliana Calmon – Segunda Turma – DJ: 05/02/2001, p.90)

PROCESSO CIVIL - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - CONTRADIÇÃO – EFEITO MODIFICATIVO.

1. A contradição existente no acórdão está consubstanciada no fato de ter sido examinada a querela em nível infraconstitucional, com suporte em lei ordinária e lei complementar, sendo dito no julgado que a questão era constitucional.

2. Confronto entre lei ordinária e lei complementar não é matéria constitucional, porque o princípio da hierarquia das leis está inserido na Lei de Introdução ao Código Civil.

3. Só é entendida pelo STF como constitucional tese jurídica que se reporte de forma direta e objetiva à Lei Maior.

4. Acórdão que interpretou a LC 65/91 sem espaldar-se na CF.

5. Embargos de declaração acolhidos.

(EEREsp 154.532/MG – Rel. Min Francisco Peçanha Martins, Rel. p/ acórdão Min. Eliana Calmon– DJ: 12/11/2001, p.132)

Restou evidenciado que a discussão versa acerca de duas leis infraconstitucionais antagônicas, sendo que a posterior é uma lei ordinária que pretende, equivocadamente, revogar uma lei complementar, a qual possui maior robustez e hierarquia, devido ao seu aspecto formal, uma vez que exige quórum especial para sua aprovação.

Como já foi dito anteriormente, a Constituição Federativa do Brasil delimitou certas matérias que somente poderiam ser normatizadas pela via da lei complementar, inobstante tal assertiva, inexiste qualquer vedação à utilização desta via legislativa para outras matérias.

É exatamente o caso da Lei Complementar nº 70/91 que instituiu a Confins, tal contribuição poderia ter sido criada por lei ordinária, já que é prevista no art. 195 da Constituição Federal, porém o legislador escolheu uma via mais robusta para sua criação, bem como outorgou às sociedades civis de prestação de serviços regulamentados a isenção tributária deste tributo.

Desta forma, resta evidente, pelos retrocitados argumentos jurídicos, que a isenção tributária concedida pelo art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91 só poderia ser revogada ou alterada por uma lei complementar, que possui mesma robustez e hierarquia formal.

Não existe qualquer discussão acerca de ter o Legislador deixado de adotar a via da lei complementar para disciplinar matérias reservadas constitucionalmente a esta espécie legal, estamos, portanto, simplesmente analisando a interpretação da legislação infraconstitucional e a aplicação dos institutos previsto na Lei de Introdução ao Código Civil.

Por todo o exposto, verifica-se que o direito à isenção tributária da COFINS encontra respaldo na doutrina e na jurisprudência pátrias, já estando a questão pacificada e sumulada em última instância pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 276 do STJ).

Por óbvio, a Fazenda Nacional não admite esta realidade, tendo interposto a Reclamação nº 2475/MG perante o Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que o Pretório Excelso já havia reconhecido como lei ordinária a Lei Complementar nº 70/91. Argumentação que não merece prosperar, já tendo sido negada a liminar pleiteada, decisão do Eminente Relator Min. Carlos Velloso, bem como indeferido o Agravo Regimental interposto contra a r. decisão monocrática do referido Relator.

Corroborando o entendimento de que são completamente infundadas as argumentações da Fazenda Nacional, transcrevemos o Informativo nº 335 do Pretório Excelso, que comenta o acórdão que negou provimento ao Agravo Regimental interposto contra decisão monocrática do Eminente Min. Carlos Velloso, Relator da supracitada Reclamação nº 2.475/MG:

"EFEITO VINCULANTE E OBITER DICTUM

Iniciado o julgamento de agravo regimental interposto contra decisão do Min. Carlos Velloso, relator, que indeferiu pedido de medida liminar em reclamação ajuizada pela União, na qual se sustenta que julgado do STJ - em que se entendera que a isenção concedida pela LC 70/91 às sociedades prestadoras de serviço não pode ser revogada por lei ordinária - teria ofendido a autoridade da decisão proferida por esta Corte nos autos da ADC 1/DF (DJU de 6.6.95). Alega-se, na espécie, que a decisão proferida pelo STF na citada ADC, cujo efeito é vinculante, teria considerado a LC 70/91 como materialmente ordinária, e apenas formalmente complementar, estando legitimada, portanto, a sua revogação por meio da Lei 9.430/96. O Min. Carlos Velloso, relator, reportando-se à ementa do acórdão proferido na referida ação declaratória, proferiu voto no sentido de negar provimento ao agravo regimental, por entender que o Tribunal, no julgamento da ADC 1/DF, não decidira no sentido de que a LC 70/91 seria materialmente lei ordinária ou apenas formalmente complementar. O Min. Carlos Velloso, em seu voto, salientou, ainda, que a afirmação no sentido de que a mencionada Lei Complementar seria materialmente ordinária, constante de seu voto, e daquele proferido pelo relator, caracterizara-se como fundamento obiter dictum, que não integra o dispositivo da decisão, nem se sujeita ao efeito vinculante. Após os votos dos Ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence, acompanhando o Min. Carlos Velloso, pediu vista o Min. Gilmar Mendes. Rcl 2475 AgR/MG, rel. Min. Carlos Velloso, 5.2.2004. (RCL-2475)

(grifos aditados)


6. Conclusão

Alguns pontos cruciais merecem ser ressaltados:

I-a Constituição especifica de forma taxativa quais matérias devem ser normatizadas por lei complementar, não havendo qualquer vedação a utilização desta via legal de maior robustez formal para normatização de outras matérias;

II-a lei complementar quando dispõe sobre matérias, que por exclusão são da competência do legislador ordinário, continua sendo lei complementar, possuindo maior hierarquia que aquela;

III-o art. 56 da Lei Ordinária nº 9.430/96 não revogou a isenção tributária da COFINS outorgada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91, que continua em vigor;

IV-as sociedades civis de profissão regulamentada continuam fazendo jus à isenção tributária da COFINS, desde que atendidos requisitos enumerados taxativamente no art. 1º do Decreto-Lei nº 2.397/87;

V-a questão acerca da revogação da isenção tributária da COFINS, outorgada pela Lei Complementar nº 70/91, possui natureza infraconstitucional, uma vez que não discute se uma matéria reservada a lei complementar foi normatizada por lei ordinária e sim a existência de hierarquia entre lei complementar, que disciplinou matéria que por exclusão é da competência da via legal ordinária, e a lei ordinária;

VI-o Superior Tribunal de Justiça re-avaliou a Súmula nº 276, ratificando a aplicabilidade da mesma, em face a conclusão de que a isenção tributária da COFINS não foi revogada.


7. Bibliografia

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed., São Paulo:Malheiros, 2003.

ALMEIDA, Helcônio. Lei complementar em matéria tributária - Possibilidade de leis ordinárias disporem sobre regras previstas no CTN. Artigo retirado do site http://www.direitoufba.net.

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2003.

ANTONIO CARRAZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed., São Paulo: Malheiros, 2003.

AUGUSTO BECKER, Alfredo. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed., São Paulo: Lejus, 2002.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed., Rio de Janeiro; Forense, 2003.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva, 2000.

DEL’OLMO, Florisbal de Souza e ARAÚJO, Luis Ivani de Amorin. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada. 1. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 2.ed., São Paulo: Atlas, 1994.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3. ed., São Paulo: Saraiva.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 21. ed., São Paulo: Malheiros.

TRINDADE, Caio de Azevedo. A isenção da COFINS para as Sociedades Civis de Prestação de Serviços Profissionais, uma Questão Infraconstitucional. Revista Dialética Tributária nº 101, São Paulo: 2004. p. 51-62.


Notas

1 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 21. ed., São Paulo: Malheiros. p. 72 e 73

2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3. ed., São Paulo: Saraiva. p. 237.

3 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 04.

4 DEL’OLMO, Florisbal de Souza e ARAÚJO, Luis Ivani de Amorin. Lei de Introdução ao código Civil Brasileiro Comentada. 1. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.28

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Sobre o autor
Fernando Batista de Oliveira Vieira

Policial Rodoviário Federal, Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Fernando Batista Oliveira. Isenção tributária da Cofins. Sociedades civis de profissão regulamentada.: Uma análise sobre a existência de hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 389, 31 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5527. Acesso em: 25 abr. 2024.

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