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Patenteamento de fármacos derivados de produtos naturais no Brasil

06/02/2017 às 16:00
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Apresentam-se informações sobre proteção à propriedade intelectual no Brasil, com o objetivo de responder à seguinte pergunta: O que pode originar patentes com as pesquisas na área de farmacologia de produtos naturais no Brasil?

Resumo:A compreensão do que é patenteável ou não em um campo tecnológico específico é de primordial importância para todos os pesquisadores. No Brasil, em geral, os projetos acadêmicos voltam-se apenas para as ciências básicas. Entretanto, com uma mínima orientação no momento certo da carreira acadêmica, a maioria desses projetos poderia ter levado ao desenvolvimento de novas tecnologias. Neste artigo foram compiladas informações presentes na literatura atual sobre proteção à propriedade intelectual no Brasil, com o objetivo de responder a seguinte pergunta: O que pode originar patentes com as pesquisas na área de farmacologia de produtos naturais no Brasil?


1. INTRODUÇÃO

Na última década, observou-se um declínio global da produção científica de novos fármacos por parte dos programas de P&D farmacêuticos. Dentre as muitas justificativas dadas para tal fenômeno, pouco foi mencionada a redução dos testes com produtos oriundos da natureza, em contraste ao crescente emprego de técnicas de química combinatória pela indústria farmacêutica (NEWMAN e CRAGG, 2007). Há uma maior tendência para a formação de bibliotecas de produtos naturais complexos sintéticos e a adoção da abordagem de síntese orientada pela biodiversidade, onde a síntese de produtos naturais e a química combinatória estão unidas (BORMAN, 2002). Por esse motivo, além de muitos outros, os produtos naturais (PNs) ainda desempenham um importante papel na identificação de novas moléculas com potencial para o desenvolvimento de novos fármacos para o tratamento de doenças (NEWMAN e CRAGG, 2007).

Existem basicamente três tipos de pesquisa envolvendo fármacos derivados de PNs: 1) Validação de dados etnofarmacológicos, aqueles envolvendo o conhecimento tradicional no emprego das plantas medicinais; 2) Descobertas de novos compostos-líderes naturais; 3) Síntese ou semi-síntese de derivados aprimorados de compostos naturais. Mas como que esses tipos de pesquisa podem deixar as bancadas dos laboratórios e, finalmente, atingir seu objetivo comum - melhorar a saúde da humanidade? A resposta está na proteção da propriedade intelectual dos resultados das pesquisas envolvendo PNs e nas diretivas legais de acesso ao patrimônio genético, de forma a garantir isonomia na repartição dos lucros entre a academia, a indústria e a comunidade detentora do conhecimento tradicional associado.

A lógica de um sistema de patentes é a de proporcionar vantagens à sociedade como um todo, recompensando o desenvolvimento de novas tecnologias com direitos temporários exclusivos. Ele incentiva a indústria, pesquisadores e inventores a investir tempo e dinheiro em pesquisa e desenvolvimento. Uma eficiente divisão de lucro, por si só, impulsionaria todo o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos Brasileiras (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016). O conhecimento tradicional seria valorizado, os pesquisadores recompensados, o meio ambiente, por meio de programas de manejo florestal sustentável, seria menos impactado e, por fim, uma melhora na saúde humana seria alcançada.

No Brasil, a burocracia, a morosidade e as leis de acesso aos recursos genéticos ainda dificultam as pesquisas envolvendo PNs. A sociedade brasileira, na maioria das vezes, ainda enfrenta dificuldades em obter um retorno financeiro sobre o compartilhamento de seu conhecimento tradicional sobre o uso medicinal de PNs. Estudos sérios realizados nas diversas universidades brasileiras validam inúmeros dados etnofarmacológicos todos os dias, entretanto, a falta de uma cultura de proteção de propriedade intelectual impede que haja um retorno financeiro. Além disso, as pesquisas desenvolvidas na academia tem como principal objetivo a publicação rápida dos resultados obtidos (DE MEIS, 2003). Contraditoriamente, tal publicação pode acabar com a possibilidade de exploração comercial de uma descoberta, uma vez que ela, no Brasil, impede o seu patenteamento após um período de 12 meses (Lei 9.279/1996, Artigo 12).

Art. 12. Não será considerada como estado da técnica a divulgação de invenção ou modelo de utilidade, quando ocorrida durante os 12 (doze) meses que precederem a data de depósito ou a da prioridade do pedido de patente, se promovida:

I - pelo inventor;

II - pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, através de publicação oficial do pedido de patente depositado sem o consentimento do inventor, baseado em informações deste obtidas ou em decorrência de atos por ele realizados; ou

III - por terceiros, com base em informações obtidas direta ou indiretamente do inventor ou em decorrência de atos por este realizados.

Parágrafo único. O INPI poderá exigir do inventor declaração relativa à divulgação, acompanhada ou não de provas, nas condições estabelecidas em regulamento.

O dispositivo legal citado trata do que a doutrina especializada chama de “período de graça”. Caso o próprio inventor divulgue sua descoberta nos 12 meses antes de depositar o pedido de patente, essa divulgação não o prejudicará. Ou seja, essa divulgação não poderá ser usada para afirmar que a descoberta já está integrada ao estado da técnica, e que não se trata de uma novidade. A publicação rápida da descoberta, assim como costuma ocorrer nas universidades brasileiras, mesmo quando feita pelo mesmo autor, torna pública a invenção e tira seu status de novidade. A indústria, por sua vez, pensará duas vezes antes de investir no desenvolvimento de um fármaco com o qual não poderá obter direitos exclusivos (WEISS & EISNER, 1998).

As patentes no Brasil protegem novos inventos e modelos de utilidade. Trata-se de um título de propriedade temporária, outorgado pelo Estado aos inventores ou autores, ou outras pessoas físicas ou jurídicas detentoras de direitos sobre a criação (Brasil, Ministério da Saúde, 2016). Proíbe outros de fazer, usar ou vender o novo produto por períodos de até 20 anos (BOYD, 1996). No Brasil, uma patente é concedida somente se forem atendidos os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Além disso, dentre outras proibições, o produto não deve ser contrário à moral, aos bons costumes e à segurança pública, à ordem e à saúde (Lei 9.279/1996, artigos 8, 9, 10 e 18).

Art. 8º É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.

Art. 9º É patenteável como modelo de utilidade o objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação.

Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:

I - descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos;

II - concepções puramente abstratas;

III - esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização;

IV - as obras literárias, arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética;

V - programas de computador em si;

VI - apresentação de informações;

VII - regras de jogo;

VIII - técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo humano ou animal; e

IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.

Art. 18. Não são patenteáveis:

I - o que for contrário à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas;

II - as substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos de qualquer espécie, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando resultantes de transformação do núcleo atômico; e

III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.

Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.

Este artigo destina-se a todos aqueles interessados na proteção intelectual de novas tecnologias. Nos estágios iniciais dos projetos de pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos derivados de PNs, um planejamento adequado da etapa de patenteamento evita gastos e a perda de tempo com experimentos desnecessários.


2. DESENVOLVIMENTO

Neste capítulo será discutido o que pode ser patenteado na área da farmacologia de PNs, e quais os valores que deverão estar agregados a uma patente para que esta seja forte, relevante e consequentemente rentável.

Uma patente valiosa é aquela comercializável, que atende aos requisitos básicos de força e relevância tecnológica. Uma patente forte deve ter reinvindicações claras, bem delimitadas, descritas de forma detalhada e com um extenso e abrangente escopo de proteção. Tudo isso de forma a evitar que terceiros, através de patentes complementares, excluam o direito do inventor original de produzir sua própria patente sem ter que pagar pelos direitos de uso dos aperfeiçoamentos. Para ser considerado forte, o objeto da patente deverá também ter um bom potencial de fiscalização de produção, que se refere à capacidade de rastrear usos impróprios. Por outro lado, a importância tecnológica de uma patente consiste na sua capacidade de oferecer vantagens e melhorias que tornam o produto único e insubstituível.

A lei 9.279/1996, em seu artigo 42 estabelece duas categorias de reinvindicações para definir a proteção das invenções: produto (invenções e modelos de utilidade) e processo.

Art. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos:

I - produto objeto de patente;

II - processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.

Tradicionalmente, as patentes de "processos" têm sido consideradas de menor valor econômico do que as patentes de "produto", em parte porque são difíceis de rastrear, enquanto que novas metodologias de produção podem surgir para a produção de um mesmo produto (KARTAL, 2007).

Mas o que pode ou não ser patenteado a partir das pesquisas na área de farmacologia de produtos naturais no Brasil? O artigo 10 da Lei Lei 9.279/1996 relaciona tudo o que não pode ser considerado invenção nem modelo de utilidade. Portanto, dentro do escopo deste artigo, não são patenteáveis: os conhecimentos tradicionais, pois são consideradas como descobertas e, por essa razão, falta novidade ou atividade inventiva; os seres vivos naturais (geneticamente não modificados), no todo ou em partes; compostos isolados de seres vivos naturais, novos ou não, ou mesmo extratos e frações isoladas destes; micro-organismos e processos biológicos naturais.

Por sua vez, são considerados patenteáveis os métodos novos e melhorados de: extração, purificação, elucidação, síntese ou semi-síntese de compostos naturais, produção de fármacos industriais e engenharia genética. Quando não óbvios, pode-se também patentear: compostos naturais quimicamente modificados; composições farmacêuticas, nutracêuticas ou cosméticas contendo um ou mais compostos naturais ou modificados; microrganismos transgênicos e processos biológicos modificados; o primeiro ou o segundo uso terapêutico de um composto.

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A lei 9.279/1996 é silente quanto à proteção ao "uso", dado que não prevê expressamente reinvindicações deste tipo. Para o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), as reinvindicações de segundo uso médico são possíveis, desde que sejam para uma nova e não óbvia aplicação terapêutica, e o fármaco atue em mecanismo de ação diferente daquele descrito no primeiro uso. Dessa forma, as invenções relacionadas às substâncias ou composições que visam proteger o uso no tratamento de determinadas doenças, segundo as diretrizes de exame do INPI, podem ser de dois tipos: 1) um novo uso, como medicamento, de um produto já conhecido com utilização fora do âmbito medicinal, dito como primeiro uso médico; 2) uma nova aplicação terapêutica de um produto já conhecido como medicamento, definido como segundo uso médico. Apesar de a legislação brasileira impedir a proteção de produtos isolados da natureza, quando é conferido a eles um uso prático, o seu uso passa a ser patenteável (JANNUZZI, 2007).

Quanto ao segundo uso médico, a solução encontrada para desvincular o novo uso de um método terapêutico foi atrelar o referido uso a um processo de fabricação do medicamento. Enquanto as reinvindicações do tipo "Uso do produto X caracterizado para o tratamento da doença Y" não são consideradas invenções por se tratarem de métodos terapêuticos, as reinvindicações do tipo "Uso do produto X caracterizado para a preparação de um medicamento para tratar a doença Y" é aceita. Esta forma de reinvindicação é conhecida como "Fórmula Suíça" e visa proteger o segundo uso médico de um produto já conhecido (CORREA, 2000).


3. CONCLUSÃO

Muitos pedidos de proteção de propriedade intelectual não resultam em qualquer patente porque falham em um ou mais dos requisitos de patenteamento anteriormente descritos. Além do que, muitas patentes, embora concedidas, revelam-se de pouco ou nenhum valor real para seus proprietários. Isso pode ser particularmente verdadeiro para pedidos de patentes de "novos fármacos", especialmente aqueles patenteados muito cedo durante seu processo de desenvolvimento, quando ainda há pouca certeza de sua real eficácia, baixa toxicidade ou viabilidade econômica (KARTAL, 2007).

Os estudos envolvendo PNs desempenham um importante papel na descoberta de novos compostos químicos, e quaisquer de seus princípios ativos isolados podem servir como compostos-líderes para a indústria. Derivados sintéticos ou semi-sintéticos com menor toxicidade e maior eficácia podem produzir patentes com maior valor agregado.

Tão logo ocorra uma descoberta de um novo composto natural potencialmente patenteável, agências locais de propriedade intelectual ou advogados especialistas na área devem ser contratados, de maneira a conseguir uma orientação adequada e oportuna.


4. REFERÊNCIAS

BORMAN, S. Mining the genome. Chemical & Engineering News, v. 80, p. 47-50, 2002.

BOYD, M.R. The position of intellectual property rights in drug discovery and development from natural products. J. Ethnopharmacology, v. 51, p. 17-25, 1996.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica. Política e Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. 190p.

CORREA, C. Integrating public health concerns into patent legislation in developing countries. Universidade de Buenos Aires, 2000. Disponível em http://www.eldis.org/vfile/upload/1/document/0708/DOC9006.pdf. Acesso em 22.01.2017.

DE MEIS, L., DO CARMO, M.S., & DE MEIS, C. Impact factors: just part of a research treadmill. Nature, v. 424, p. 723, 2003.

JANNUZZI, A. H. L. Proteção patentária de medicamentos no Brasil: avaliação dos depósitos de patente de invenção sob a vigência da nova Lei de Propriedade Industrial (9.279/1996). p. 78-81. 2007.

KARTAL, M. Intellectual property protection in the natural product drug discovery, traditional herbal medicine and herbal medicinal products. Phytother. Research, v. 21, p. 113-119, 2007.

NEWMAN, D.J. & CRAGG, G.M. Natural products as sources of new drugs over the last 25 years. Journal of Natural Products, v. 70, p. 461-477, 2007.

WEISS, C. & Eisner, T. Partnerships for value-added through bioprospecting. Technology in Society, v. 20, p. 481-498, 1998.

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Sobre o autor
Victor Barbastefano

Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (2002), doutor em Biologia Funcional e Molecular pela Universidade Estadual de Campinas (2006) e especialista em Polícia Técnica com Foco em Investigação Criminal pela Universidade Católica de Brasília (2009). Possui experiência em biologia molecular, proteção de propriedade intelectual e investigação criminal, atuando pela Polícia Civil do Distrito Federal há mais de 6 anos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBASTEFANO, Victor. Patenteamento de fármacos derivados de produtos naturais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4968, 6 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55380. Acesso em: 26 abr. 2024.

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