Morrer com dignidade:a eficácia da ortotanásia no Direito Brasileiro

Exibindo página 1 de 2
26/01/2017 às 15:50
Leia nesta página:

Do princípio da dignidade da pessoa humana, base do ordenamento jurídico brasileiro, decorrem os direitos à vida, à honra, à saúde, à moradia, à igualdade, dentre outros que representam um conjunto de valores absolutos de cada ser humano. Nesse contexto, a Eutanásia e a Ortotanásia, ao tempo em que se mostram como alternativas à interrupção do sofrimento de muitos pacientes em situação extrema de sofrimento, também é o alvo de muitos questionamentos. Saiba um pouco mais sobre isso.

1. INTRODUÇÃO

A partir da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se a base de todo o ordenamento jurídico brasileiro, por projetar, principalmente, o respeito e a proteção à integridade física e psíquica da pessoa ou, ainda, por representar o valor absoluto de cada ser humano. Diante desse cenário, enquadra-se o tema a ser abordado no presente artigo, qual seja: morrer com dignidade: a eficácia da ortotanásia no direito brasileiro.

A ortotanásia pode ser definida como o não prolongamento artificial do processo natural de morte, onde o médico, sem provocar diretamente a morte do indivíduo, suspende os tratamentos extraordinários que apenas trariam mais desconforto e sofrimento ao doente, sem melhorias práticas. Portanto, como objetivo, o presente trabalho visa analisar, de forma profunda, o panorama que envolve questões relacionadas à morte digna, em específico, a Ortotanásia e a sua eficácia no Direito Brasileiro.

Inicialmente, será feita uma análise do conceito de dignidade, do seu objeto e respectivo respaldo na Carta Magna.

Posteriormente, conceituaremos a morte, as suas espécies e teorias.

Por fim, buscaremos explanar, em um amplo leque de definições, os conceitos de Ortotanásia, Eutanásia e Mistanásia, bem como a legislação aplicável a cada um desses institutos.


2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:CONCEITO, OBJETO E APLICABILIDADE À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO BIODIREITO

O Princípio da Dignidade Humana teve seus primórdios na Constituição da República Italiana de 1947, onde o legislador italiano afirmou que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Posteriormente, em 1948, o advento da Declaração Universal da ONU, estabeleceu limites aos poderes estatais.

Com isso, o Constituinte brasileiro de 1988, expressamente previu no art. 1º, III da Constituição Federal, que a dignidade humana é a base que norteia todo o ordenamento jurídico brasileiro, a fim de valorizar o homem como detentor de interesses existenciais e dele decorrem os demais direitos fundamentais, cabendo ao Estado, portanto, garantir os direitos que são basilares para ter uma vida com dignidade: direito à vida, à honra, à saúde, à moradia, à igualdade, entre outros.

Destacando o doutrinador Sarmento (2004)[1]:

Os direitos fundamentais, que constituem, ao lado da democracia, a espinha dorsal do constitucionalismo contemporâneo, não são entidades etéreas, metafisicas, que sobrepairam sobre o mundo real. Pelo contrário, são realidades históricas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana.

Nesse mesmo foco, Sarlet (2007)[2] complementa:

Os direitos fundamentais exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar, mas também promover e proteger, valores esses que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo o ordenamento jurídico – público e privado.

A dignidade humana consagra o homem como o centro do universo jurídico e ressalta a impossibilidade de degradação do ser humano, não sendo possível a redução do homem a um simples objeto, seguindo os ensinamentos do ilustre filósofo Immanuel Kant[3]:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade

Ao reconhecer que a vida humana é de tamanha importância e não um simples objeto chegou-se à necessidade de respeitá-la, norteando a proteção da dignidade humana sob os ensinamentos da Bioética e do Biodireito.

Segundo Rosenvald (2005)[4], a raiz da palavra dignidade provém do latimdignus, que é aquele que merece estima e honra:

A dignidade da pessoa humana seria um juízo analítico revelado a prioripelo conhecimento. O predicado (dignidade) que atribuo ao sujeito (pessoa humana) integra a natureza do sujeito e um processo de análise o extrai do próprio sujeito. Sendo a pessoa um fim em si – jamais um meio para se alcançar outros desideratos – devemos ser conduzidos pelo valor supremo de dignidade.

Com os diversos avanços científicos e tecnológicos, a humanidade enfrentou a decorrente necessidade de se estudar a ciência em face à vida, criando-se, então, a bioética, e, em decorrência disso, surgiu a necessidade de tutelar os direitos no âmbito jurídico, fazendo nascer, então, o chamado Biodireito.

Em face de tal entendimento, doutrina Maria Helena Diniz:

A bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal. Seria a ciência que garantiria a sobrevivência na Terra, que está em perigo, em virtude de um descontrolado desconhecimento da tecnologia industrial, do uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e sonora[5].

Já, à luz da legislação brasileira, Biodireito é o ramo do Direito Público que se associa à bioética, estudando as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia, com peculiaridades relacionadas ao corpo e à dignidade da pessoa humana, conforme a L.11.105/2005.

Assim sendo, conclui-se que, em face dos diversos conflitos gerados pelos avanços científicos, pelas mais diversas questões polêmicas entre a ética, a ciência e os juristas, o Estado Democrático de Direito deve ter como centro e base o Princípio magno da Dignidade Humana, figurando como valor supremo no ordenamento jurídico, norteando as relações interpessoais e estatais.


3. MORTE

3.1. CONCEITO

A morte pode ser entendida como o final de um organismo vivo que havia criado a partir do seu nascimento ou, ainda, como o termo da vida devido à impossibilidade orgânica de manter o processo homeostático. Assim, a existência da pessoa natural termina com a morte.

3.2. ESPÉCIES

O Código Civil, em seu artigo 6º, diz que existem legalmente dois tipos de morte, a chamada morte natural e a morte presumida. No entanto, refere-se, também, em seu artigo 8º, a chamada “morte simultânea”.

3.2.1. MORTE REAL OU NATURAL

Presume a existência de um morto, afastando-o de direitos e obrigações, através de uma certidão de óbito, levada à registro público.

Para Maria Helena Diniz[6], a morte real ocorre:

quando cessa a personalidade jurídica da pessoa natural, deixando de ser sujeito de direitos e obrigações, acarretando: 1) dissolução do vínculo conjugal (Lei n. 6.515/77 e CC, art. 1.571, I) e do regime matrimonial; 2) extinção do poder familiar (CC, art. 1635, I); dos contratos personalíssimos, como prestação ou locação de serviços (CC, art. 607) e mandato (CC, art. 682, II; STF, Súmula 25); 3) cessação da obrigação de alimentos, com o falecimento do credor, pois, com o do devedor, seus herdeiros assumirão os ônus até as forças da herança (Lei 6.515/77, art.23; CC, art. 1.700; RJTJSP, 82:38; RT, 574:68); da obrigação de fazer, quando convencionado o cumprimento pessoal (CC, arts. 247 e 248 [...]).

3.2.2. MORTE PRESUMIDA

A morte presumida ocorre quando o indivíduo desaparece sem deixar notícias de que está vivo ou morto, portanto, presume-se a sua morte, que somente será válida, se for decretada pelo Poder Judiciário.

O artigo 6º do Código Civil autoriza a abertura de sucessão definitiva no caso de ausentes, in verbis:

Artigo 6º. A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.

Ainda, o artigo 7º do mesmo diploma, trata da morte presumida sem a decretação de ausência, que só poderá ser requerida depois de encerradas as buscas e mesmo que o corpo não tenha sido encontrado, em situações evidentes, como por exemplo, no caso de pessoas que estavam correndo perigo de vida ou até dois anos após o fim de uma guerra:

Artigo. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:

I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;

II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra.

Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.

3.2.3. MORTE SIMULTÂNEA OU COMORIÊNCIA

A morte simultânea ou a comoriência ocorre quando dois ou mais indivíduos vêem a óbito na mesma ocasião. Por exemplo: caiu um avião e não se consegue saber qual dos passageiros faleceu primeiro, sendo assim, presume-se que todos faleceram ao mesmo tempo.

Nesse sentido, dispõe o artigo 8º do Código Civil:

Artigo 8o. Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.

3.2.4. MORTE CIVIL

No direito romano, admitia-se a chamada morte civil, como uma maneira de punir a pessoa que fosse condenada com penas perpétuas, mas, neste caso, somente ocorria a perda da personalidade civil, ou seja, para todos os fins de direito, a pessoa é considerada morta.

No direito brasileiro, afasta-se esta teoria, apesar do Código Civil, em seu artigo 1.816 aplicá-la com a de afastar o herdeiro por indignidade, não podendo ter acesso à herança. Contudo, mesmo sem ter acesso à herança, não atinge os atos da vida civil, podendo exercê-los normalmente.


4. EUTANÁSIA

O termo eutanásia tem sua origem no grego com a aglutinação das palavras “eu” e “thanatos’, que significam boa e morte, respectivamente.

Configura eutanásia a prática de atos que visam apressar ou provocar a morte ao paciente que se encontra em condição de saúde incurável e irreversível, da forma menos dolorosa possível. Possui, assim, um caráter exclusivamente benevolente e piedoso, tendo em vista que é ultima ratio que objetiva apenas cessar o sofrimento prolongado do paciente terminal.

Trata-se de uma antecipação da morte, que deverá ser querida pelo próprio paciente, em razão da sua condição.

Conforme preceitua Débora Gozzo e Wolson Ricardo Ligiera[7]:

Atualmente, o conceito é confinado a uma acepção bastante estreita, que compreende apenas a forma ativa aplicada por médicos a doentes terminais cuja morte é inevitável em um curto lapso. Compreende-se que a eutanásia é a ação médica intencional de apressar ou provocar a morte – com exclusiva finalidade benevolente – de pessoa que se encontre em situação considerada irreversível e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

No Brasil não há legislação específica sobre o tema, de modo que cada caso deverá ser analisado individualmente para que se verifique o seu enquadramento legal. Geralmente, a eutanásia se enquadra no crime de homicídio, na sua forma privilegiada, previsto no art. 121 do Código Penal, in verbis:

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Vale ressaltar que tramita no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado nº. 236/2012, que pretende instituir o Novo Código Penal. Nele foi tipificado, expressamente, em seu art. 122, o crime de eutanásia, cuja pena atribuída foi de prisão de dois a quatro anos. Além disso, o parágrafo único do artigo mencionado conferiu poderes ao juiz de deixar de aplicar a pena de acordo com as circunstâncias do caso, levando em consideração a relação de parentesco ou laços de afeição do agente com a vítima.


5. ORTOTANÁSIA

Ao contrário da eutanásia, que exige a prática de um ato para provocar a morte, a ortotanásia se dá pela falta de atos preventivos da morte, ou seja, pela descontinuidade do tratamento que prolongava artificialmente o processo de morte do paciente. Por vezes, este prolongamento pode causar dor e sofrimento ao paciente e seus amados, fazendo com que o paciente terminal prefira cessar o seu tratamento para que a morte chegue.

Segundo Flávio Tartuce[8], “a ortotanásia é prática utilizada para não gerar ao paciente um sofrimento físico, psicológico e espiritual, presente, por exemplo, pelo não emprego de técnicas terapêuticas inúteis de prolongamento da vida”.

Vale ressaltar que o Conselho Federal de Medicina, editou a Resolução n. 1.805/2006, que autoriza o médico, caso seja essa a vontade do paciente ou de seu representante legal, de limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, objetivando aliviar os sintomas causadores de sofrimento.

Entretanto, referida resolução foi objeto de ação civil pública nos autos do processo n. 2007.34.00.014809-3, em que o Ministério Público Federal alegou a impossibilidade de se estabelecer como conduta ética uma conduta tipificada como crime, a indisponibilidade do direito à vida, bem como a possibilidade de desvio de sua finalidade pelos médicos do sistema único de saúde e da iniciativa privada.

Todavia, foi proferida sentença reconhecendo sua legalidade, rejeitando o pedido de sua nulidade ou alteração, sob o fundamento de que restaram presentes os princípios da beneficência, não maleficência e autonomia, prevalecendo a dignidade humana, tendo em vista que, uma vez diagnosticado como doente terminal, qualquer forma de tratamento servirá apenas para prolongar, muitas vezes envolvendo sofrimento, o processo de morte.

Assim, a ortotanásia não apresenta tipicidade frente ao Código Penal, permanecendo eficaz a Resolução n. 1.805/2006.

Por fim, o Projeto de Lei do Senado nº. 236/2012 anteriormente mencionado pretende pacificar o entendimento e ratificar a prática da ortotanásia no § 2º do art. 122, que prevê:

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

(...)

§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos