1. INTRODUÇÃO
A partir da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se a base de todo o ordenamento jurídico brasileiro, por projetar, principalmente, o respeito e a proteção à integridade física e psíquica da pessoa ou, ainda, por representar o valor absoluto de cada ser humano. Diante desse cenário, enquadra-se o tema a ser abordado no presente artigo, qual seja: morrer com dignidade: a eficácia da ortotanásia no direito brasileiro.
A ortotanásia pode ser definida como o não prolongamento artificial do processo natural de morte, onde o médico, sem provocar diretamente a morte do indivíduo, suspende os tratamentos extraordinários que apenas trariam mais desconforto e sofrimento ao doente, sem melhorias práticas. Portanto, como objetivo, o presente trabalho visa analisar, de forma profunda, o panorama que envolve questões relacionadas à morte digna, em específico, a Ortotanásia e a sua eficácia no Direito Brasileiro.
Inicialmente, será feita uma análise do conceito de dignidade, do seu objeto e respectivo respaldo na Carta Magna.
Posteriormente, conceituaremos a morte, as suas espécies e teorias.
Por fim, buscaremos explanar, em um amplo leque de definições, os conceitos de Ortotanásia, Eutanásia e Mistanásia, bem como a legislação aplicável a cada um desses institutos.
2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:CONCEITO, OBJETO E APLICABILIDADE À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO BIODIREITO
O Princípio da Dignidade Humana teve seus primórdios na Constituição da República Italiana de 1947, onde o legislador italiano afirmou que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Posteriormente, em 1948, o advento da Declaração Universal da ONU, estabeleceu limites aos poderes estatais.
Com isso, o Constituinte brasileiro de 1988, expressamente previu no art. 1º, III da Constituição Federal, que a dignidade humana é a base que norteia todo o ordenamento jurídico brasileiro, a fim de valorizar o homem como detentor de interesses existenciais e dele decorrem os demais direitos fundamentais, cabendo ao Estado, portanto, garantir os direitos que são basilares para ter uma vida com dignidade: direito à vida, à honra, à saúde, à moradia, à igualdade, entre outros.
Destacando o doutrinador Sarmento (2004)[1]:
Os direitos fundamentais, que constituem, ao lado da democracia, a espinha dorsal do constitucionalismo contemporâneo, não são entidades etéreas, metafisicas, que sobrepairam sobre o mundo real. Pelo contrário, são realidades históricas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana.
Nesse mesmo foco, Sarlet (2007)[2] complementa:
Os direitos fundamentais exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar, mas também promover e proteger, valores esses que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo o ordenamento jurídico – público e privado.
A dignidade humana consagra o homem como o centro do universo jurídico e ressalta a impossibilidade de degradação do ser humano, não sendo possível a redução do homem a um simples objeto, seguindo os ensinamentos do ilustre filósofo Immanuel Kant[3]:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade
Ao reconhecer que a vida humana é de tamanha importância e não um simples objeto chegou-se à necessidade de respeitá-la, norteando a proteção da dignidade humana sob os ensinamentos da Bioética e do Biodireito.
Segundo Rosenvald (2005)[4], a raiz da palavra dignidade provém do latimdignus, que é aquele que merece estima e honra:
A dignidade da pessoa humana seria um juízo analítico revelado a prioripelo conhecimento. O predicado (dignidade) que atribuo ao sujeito (pessoa humana) integra a natureza do sujeito e um processo de análise o extrai do próprio sujeito. Sendo a pessoa um fim em si – jamais um meio para se alcançar outros desideratos – devemos ser conduzidos pelo valor supremo de dignidade.
Com os diversos avanços científicos e tecnológicos, a humanidade enfrentou a decorrente necessidade de se estudar a ciência em face à vida, criando-se, então, a bioética, e, em decorrência disso, surgiu a necessidade de tutelar os direitos no âmbito jurídico, fazendo nascer, então, o chamado Biodireito.
Em face de tal entendimento, doutrina Maria Helena Diniz:
A bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal. Seria a ciência que garantiria a sobrevivência na Terra, que está em perigo, em virtude de um descontrolado desconhecimento da tecnologia industrial, do uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e sonora[5].
Já, à luz da legislação brasileira, Biodireito é o ramo do Direito Público que se associa à bioética, estudando as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia, com peculiaridades relacionadas ao corpo e à dignidade da pessoa humana, conforme a L.11.105/2005.
Assim sendo, conclui-se que, em face dos diversos conflitos gerados pelos avanços científicos, pelas mais diversas questões polêmicas entre a ética, a ciência e os juristas, o Estado Democrático de Direito deve ter como centro e base o Princípio magno da Dignidade Humana, figurando como valor supremo no ordenamento jurídico, norteando as relações interpessoais e estatais.
3. MORTE
3.1. CONCEITO
A morte pode ser entendida como o final de um organismo vivo que havia criado a partir do seu nascimento ou, ainda, como o termo da vida devido à impossibilidade orgânica de manter o processo homeostático. Assim, a existência da pessoa natural termina com a morte.
3.2. ESPÉCIES
O Código Civil, em seu artigo 6º, diz que existem legalmente dois tipos de morte, a chamada morte natural e a morte presumida. No entanto, refere-se, também, em seu artigo 8º, a chamada “morte simultânea”.
3.2.1. MORTE REAL OU NATURAL
Presume a existência de um morto, afastando-o de direitos e obrigações, através de uma certidão de óbito, levada à registro público.
Para Maria Helena Diniz[6], a morte real ocorre:
quando cessa a personalidade jurídica da pessoa natural, deixando de ser sujeito de direitos e obrigações, acarretando: 1) dissolução do vínculo conjugal (Lei n. 6.515/77 e CC, art. 1.571, I) e do regime matrimonial; 2) extinção do poder familiar (CC, art. 1635, I); dos contratos personalíssimos, como prestação ou locação de serviços (CC, art. 607) e mandato (CC, art. 682, II; STF, Súmula 25); 3) cessação da obrigação de alimentos, com o falecimento do credor, pois, com o do devedor, seus herdeiros assumirão os ônus até as forças da herança (Lei 6.515/77, art.23; CC, art. 1.700; RJTJSP, 82:38; RT, 574:68); da obrigação de fazer, quando convencionado o cumprimento pessoal (CC, arts. 247 e 248 [...]).
3.2.2. MORTE PRESUMIDA
A morte presumida ocorre quando o indivíduo desaparece sem deixar notícias de que está vivo ou morto, portanto, presume-se a sua morte, que somente será válida, se for decretada pelo Poder Judiciário.
O artigo 6º do Código Civil autoriza a abertura de sucessão definitiva no caso de ausentes, in verbis:
Artigo 6º. A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.
Ainda, o artigo 7º do mesmo diploma, trata da morte presumida sem a decretação de ausência, que só poderá ser requerida depois de encerradas as buscas e mesmo que o corpo não tenha sido encontrado, em situações evidentes, como por exemplo, no caso de pessoas que estavam correndo perigo de vida ou até dois anos após o fim de uma guerra:
Artigo. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:
I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;
II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra.
Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.
3.2.3. MORTE SIMULTÂNEA OU COMORIÊNCIA
A morte simultânea ou a comoriência ocorre quando dois ou mais indivíduos vêem a óbito na mesma ocasião. Por exemplo: caiu um avião e não se consegue saber qual dos passageiros faleceu primeiro, sendo assim, presume-se que todos faleceram ao mesmo tempo.
Nesse sentido, dispõe o artigo 8º do Código Civil:
Artigo 8o. Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.
3.2.4. MORTE CIVIL
No direito romano, admitia-se a chamada morte civil, como uma maneira de punir a pessoa que fosse condenada com penas perpétuas, mas, neste caso, somente ocorria a perda da personalidade civil, ou seja, para todos os fins de direito, a pessoa é considerada morta.
No direito brasileiro, afasta-se esta teoria, apesar do Código Civil, em seu artigo 1.816 aplicá-la com a de afastar o herdeiro por indignidade, não podendo ter acesso à herança. Contudo, mesmo sem ter acesso à herança, não atinge os atos da vida civil, podendo exercê-los normalmente.
4. EUTANÁSIA
O termo eutanásia tem sua origem no grego com a aglutinação das palavras “eu” e “thanatos’, que significam boa e morte, respectivamente.
Configura eutanásia a prática de atos que visam apressar ou provocar a morte ao paciente que se encontra em condição de saúde incurável e irreversível, da forma menos dolorosa possível. Possui, assim, um caráter exclusivamente benevolente e piedoso, tendo em vista que é ultima ratio que objetiva apenas cessar o sofrimento prolongado do paciente terminal.
Trata-se de uma antecipação da morte, que deverá ser querida pelo próprio paciente, em razão da sua condição.
Conforme preceitua Débora Gozzo e Wolson Ricardo Ligiera[7]:
Atualmente, o conceito é confinado a uma acepção bastante estreita, que compreende apenas a forma ativa aplicada por médicos a doentes terminais cuja morte é inevitável em um curto lapso. Compreende-se que a eutanásia é a ação médica intencional de apressar ou provocar a morte – com exclusiva finalidade benevolente – de pessoa que se encontre em situação considerada irreversível e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos.
No Brasil não há legislação específica sobre o tema, de modo que cada caso deverá ser analisado individualmente para que se verifique o seu enquadramento legal. Geralmente, a eutanásia se enquadra no crime de homicídio, na sua forma privilegiada, previsto no art. 121 do Código Penal, in verbis:
Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Vale ressaltar que tramita no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado nº. 236/2012, que pretende instituir o Novo Código Penal. Nele foi tipificado, expressamente, em seu art. 122, o crime de eutanásia, cuja pena atribuída foi de prisão de dois a quatro anos. Além disso, o parágrafo único do artigo mencionado conferiu poderes ao juiz de deixar de aplicar a pena de acordo com as circunstâncias do caso, levando em consideração a relação de parentesco ou laços de afeição do agente com a vítima.
5. ORTOTANÁSIA
Ao contrário da eutanásia, que exige a prática de um ato para provocar a morte, a ortotanásia se dá pela falta de atos preventivos da morte, ou seja, pela descontinuidade do tratamento que prolongava artificialmente o processo de morte do paciente. Por vezes, este prolongamento pode causar dor e sofrimento ao paciente e seus amados, fazendo com que o paciente terminal prefira cessar o seu tratamento para que a morte chegue.
Segundo Flávio Tartuce[8], “a ortotanásia é prática utilizada para não gerar ao paciente um sofrimento físico, psicológico e espiritual, presente, por exemplo, pelo não emprego de técnicas terapêuticas inúteis de prolongamento da vida”.
Vale ressaltar que o Conselho Federal de Medicina, editou a Resolução n. 1.805/2006, que autoriza o médico, caso seja essa a vontade do paciente ou de seu representante legal, de limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, objetivando aliviar os sintomas causadores de sofrimento.
Entretanto, referida resolução foi objeto de ação civil pública nos autos do processo n. 2007.34.00.014809-3, em que o Ministério Público Federal alegou a impossibilidade de se estabelecer como conduta ética uma conduta tipificada como crime, a indisponibilidade do direito à vida, bem como a possibilidade de desvio de sua finalidade pelos médicos do sistema único de saúde e da iniciativa privada.
Todavia, foi proferida sentença reconhecendo sua legalidade, rejeitando o pedido de sua nulidade ou alteração, sob o fundamento de que restaram presentes os princípios da beneficência, não maleficência e autonomia, prevalecendo a dignidade humana, tendo em vista que, uma vez diagnosticado como doente terminal, qualquer forma de tratamento servirá apenas para prolongar, muitas vezes envolvendo sofrimento, o processo de morte.
Assim, a ortotanásia não apresenta tipicidade frente ao Código Penal, permanecendo eficaz a Resolução n. 1.805/2006.
Por fim, o Projeto de Lei do Senado nº. 236/2012 anteriormente mencionado pretende pacificar o entendimento e ratificar a prática da ortotanásia no § 2º do art. 122, que prevê:
Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:
(...)
§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.