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Direitos humanos e previdência social: uma relação intrínseca

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23/01/2018 às 13:13
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Em tempos de propostas que visam a bruscas alterações na sistemática da previdência social no Brasil, são necessárias reflexões sobre a essência desse direito fundamental.

1. INTRODUÇÃO: BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS

No século presente, os estágios variados de desenvolvimento e aceitação dos direitos humanos  ainda se faz tema de debate atual e pungente (DROIT, 2007); depois de sua manifesta dilatação, ao longo do século XX, enraizando-se nos ordenamentos constitucionais dos Estados de Direito, as normas relativas aos direitos humanos se içaram, definitivamente, a nível internacional, depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial, ocasião em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é perfilhada por grande parte dos países (ALVES, 2003), avançando-se, com dificuldades, para a fase de efetivação das proposições da Declaração.

O reconhecimento de sua relevância mundial e a necessidade da observação efetiva contraída pelos direitos humanos, todavia, não foi construída repentinamente. Em verdade, o que hodiernamente possuímos acerca do tema são o resultado de longo processo histórico, conflitos, ideológicos e de fato, formando a atual face das declarações de direitos existentes (ALVES, 2003).

De tal sorte, é relevante analisar este processo geracional, em suas mais destacadas circunstâncias históricas e sociais que induziram às reivindicações relativas aos direitos humanos e as declarações de direitos gestadas a partir da Revolução Francesa (BOURGUEOIS, 2003).

Aponta-se, inicialmente, desde o pensamento elaborado pelos filósofos jusnaturalistas, que com seus axiomas e propostas entusiasmaram os revolucionários franceses até, posteriormente, com o desenvolvimento contemporâneo, os desdobramentos e suas consequências ocorridas no limiar do século XXI, sendo certo que tais desdobramentos são fundamentais para balizar o Estado de Direito. Sublinhe-se que nesse ínterim o nazifascismo nasceu e conquistou vários países europeus, o socialismo estatal se tornou “real”, e que dois grandes conflitos mundiais eclodiram, acompanhados, na sequencia, pelas décadas de Guerra Fria, liquidada juntamente com a União Soviética (BITTAR, 2005).

Os direitos humanos, visualizados como construções históricas, defende Bobbio (2004, p.25), nascem em determinadas circunstâncias e, por isso, não surgem “todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Destarte, dentro de tal conjuntura é que se desenhará brevemente o traçado histórico da matéria, evidenciando as transformações empreendidas no cerne das declarações de direitos.


2. A REVOLUÇÃO FRANCESA E AS ORIGENS DOS DIREITOS HUMANOS

A série de movimentos que ficaram conhecidos como Revolução Francesa, e que tanto contribuíram para o fértil nascedouro do ideário que envolve a temática dos direitos humanos, se situam na morte do feudalismo e no nascimento da sociedade moderna (HOBSBAWN, 2001).

Ocorre, em tal lapso temporal, a passagem da sociedade estratificada socialmente e fundada no privilégio de nascimento (feudalismo) para a sociedade burguesa (capitalista), sustentada em um novo modelo de produção e organização social, que, por sua vez, determinou uma nova maneira de ver o mundo, foi forjada pelas revoltas camponesas, levadas a cabo contra o opressor sistema feudal, bem como pelo aparecimento da classe burguesa como nova força socioeconômica e que rapidamente obteve preponderância política. A burguesia era composta por pessoas livres, comerciantes em sua maioria e que em razão de suas atividades laborais contribuíram para o pleno desenvolvimento das cidades (HOBSBAWN, 2001).

Entre os XVII e XVIII, corrobora novamente Hobsbawn (2001), a ascendente classe burguesa foi se volvendo diversa em seu seio, vez que a multiplicidade de labores que realizava determinava, por sua vez e dentro da nascente lógica capitalista, distintas formas organizacionais e profissionais para o desempenho de seus negócios. Deste modo, a sociedade floresce com incessantes transformações, seja pela Reforma religiosa, pelo Absolutismo ou pelo Renascimento Cultural, somando-se ainda a descoberta do Novo Mundo e os avanços científicos - tudo acompanhando o desenvolvimento econômico experimentado.

Sem embargo, mesmo com um turbilhão de novidades se processando naquela circunstância, a realidade jurídica, política-ideológica, e cultural herdada do feudalismo ainda subsistiam anacrônicas. A título de exemplo, em 1215, por meio da denominada Magna Carta, a Inglaterra era um dos poucos países que gestava um Estado de Direito, porquanto aludido documento limitava os poderes reais e exaltava a preeminência da lei, e que com a Revolução Gloriosa tem garantida a existência de um Parlamento e sepulta a ideia de um poder real absoluto.

Todavia, a conjuntura fática do restante da Europa era, no geral, distorcida, pois ao lado do novo desenvolvimento econômico ainda convivia a mesma carga normativa política, jurídica e cultural, que por meio da sociedade estamentária, dos privilégios do clero e da nobreza, bem como da existência de um Estado Absolutista monárquico bloqueavam o pleno desenvolver capitalista.

Na França, rival político e econômico da Grã-Bretanha, se encontrava “sob vários aspectos a mais típica das velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em outras partes” (HOBSBAWN, 2001, p.73), ocorrendo certo agravamento quando se abate sobre o país uma crise política e econômica, exasperando e levando o povo a um movimento contestatório até então sem precedentes, oportunizando o nascimento de um Estado de Direito e produzindo profundas mudanças políticas que influenciaria a noção de direitos humanos e a constituição dos Estados nacionais modernos.

A Revolução Francesa liquida o Antigo Regime e seus princípios basilares, de concepção tradicional de poder, soberania e realeza, como também a relação servil entre os homens e os modos de produção artesanais tradicionalmente cultivados. Em seu aspecto construtivo, a revolução resguardou o princípio da igualdade entre os homens, gestando noções de soberania popular, de Estado de direito e de cidadania. Seu grau de relevância se espraia por todo o globo, tornando-a “o modelo ideal para todos os que combateram pela própria emancipação e pela libertação do próprio povo” (BOBBIO, 2004, p.105).

Este ideário subversivo foi incrivelmente benéfico para os projetos do terceiro estado francês e, acima de tudo, para a burguesia. Nesse contexto, o pensamento iluminista foi um grande suporte no bojo das mudanças operadas (COMPARATO, 1999). Ele aconteceu em toda a Europa – propagando-se para todo o Ocidente, em linhas gerais, entre 1680 e 1780, com vasto desenvolvimento em solo francês, no século XVIII. A razão, segundo os iluministas, conduziria o homem em direção à sabedoria e à verdade. No cerne do pensamento racional, a burguesia se serviu, com intenções políticas do ideário filosófico do jusnaturalismo.

Para a corrente jusnaturalista, existem direitos individuais que são decorrentes da própria natureza humana, sendo certo que o ser humano é um sujeito de direito. Rousseau e Locke eram os maiores defensores de tal tese: o primeiro argumentava que a vontade popular é a única fonte de legitimidade dos governantes, e o segundo defendia a existência de direitos inatos, preexistentes a qualquer poder (COMPARATO, 1999).

Nesse traçado, para Trindade (2002), a natureza demonstraria a igualdade dos homens no nascimento, transformando todo privilégio em antinatural; os cidadãos teriam a faculdade de constituir as cláusulas do contrato que forma a sociedade; o indivíduo, detentor de direitos imanentes, deveria estar resguardado do poder absoluto pela distribuição do poder; a intransigência religiosa, eliminada, o Estado, conduzido de acordo com a vontade geral, por isso as leis devem ser as mesmas para todos. Por não se poder voltar ao estado de natureza, ao menos é possível dela se aproximar. Uma boa constituição será, portanto, a que garantir, na medida do possível, a liberdade e a igualdade primitiva (TRUYOL, 1982).

Essa principiologia, embasada em um direito natural racionalista, ia de encontro aos planos da burguesia de liquidação dos privilégios de nascimento, ao poder divino e absoluto dos reis e de erguer uma sociedade de indivíduos livres e iguais perante a lei.

A teoria do direito natural inverte, explicita Trindade (2002, p. 38), pois, completamente, a ‘pirâmide feudal’. Ao invés de relações verticais (hierarquizadas) instaurar-se-ão relações horizontais (comunidade gerada do contrato social). Não haverá ordens correspondendo a funções separadas e desiguais em direitos, não existirá senão homens livres e iguais, cidadãos. Sucumbirá o rei no cume da pirâmide para governar os homens, mas a expressão da sua vontade, isto é, a lei. A burguesia enfim localizava um poderoso arsenal ideológico para demolir completamente a visão social de mundo do passado.

É justamente dentro de tal espírito que se proclama a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, tornando-se a primeira declaração de direitos que tem como foco o homem em sentido abstrato e não o povo de determinado ecúmeno geográfico (HOBSBAWN, 2001). Conquanto no processo de independência das colônias inglesas na América do Norte uma declaração de direitos tenha sido proclamada pouco mais de uma década antes da declaração francesa, é a esta última que ganha relevo, pois a despeito de ambas beberem das mesmas fontes, apenas a de 1789 coloca cogente expandir seus ideais mundialmente, o que, para a temática dos direitos humanos, torna a apreciação da Declaração de 1789 pungente.  Portanto, não é descabida a posição de Bobbio (2004, p.88-89) quando explana que

A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, a qual – para justificar a existência de direitos pertencentes ao homem enquanto tal, independente do Estado – partira da hipótese de um estado de natureza, onde os direitos do homem são poucos e essenciais: o direito à vida e à sobrevivência, que inclui também o direito à propriedade; e o direito à liberdade, que compreende algumas liberdades essencialmente negativas. (...) A hipótese do estado de natureza era uma tentativa de justificar racionalmente, ou de racionalizar, determinadas exigências que se iam ampliando cada vez mais; num primeiro momento, durante as guerras de religião, surgiu a exigência da liberdade de consciência contra toda forma de imposição de uma crença; e, num segundo momento, na época que vai da Revolução Inglesa à Norte-Americana e à Francesa, houve a demanda de liberdades civis contra toda forma de despotismo. O estado de natureza era uma ficção doutrinária, que devia servir para justificar, como direitos inerentes à própria natureza do homem, exigências de liberdade provenientes dos que lutavam contra o dogmatismo das Igrejas e contra o autoritarismo dos Estados.

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O fundamento de que o indivíduo possui valor em si mesmo, sendo sujeito (e não objeto) de direitos, é elementar para possibilitar a operação do modo de produção capitalista.

Ora, as teses que amparam tal sistema que se estruturava (o jusnaturalismo e o liberalismo), integram o movimento de ruptura empreendido pela Revolução francesa e seu ideário de elaborar uma sociedade que se arma sobre inédito modo de produção: o capitalismo. O mercado laboral capitalista mantém seus movimentos e operações, necessitando de trabalhadores livres, seja das relações de vassalagem ou aos seus próprios meios de produção (HOBSBAWN, 2001). Daí porque, com a Declaração de 1789, o indivíduo ganhar o status jurídico de sujeito de direito, com liberdade e igualdade civil reconhecida.

Sob a égide jusnaturalista, a Declaração Revolucionária da França, contém os princípios basilares que norteiam o movimento, deixando-os claros logo em seu preâmbulo, assinalando que

os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as causas únicas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolvem expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar seus direitos e seus deveres, a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a cada instante comparados com a meta de toda instituição política, sejam mais respeitados, a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas de agora em diante sobre princípios simples e incontestáveis, se destinem sempre à manutenção da constituição e à felicidade de todos (DHNET, 2015, s.p).           

Sinteticamente, o citado documento garante uma série de liberdades ao homem. Prontamente, apresenta Ferreira Filho (2000, p.09), primeiros artigos, firma que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” (art. 1°) e que a associação política tem como finalidade conservar e resguardar esses direitos essenciais (art. 2°), ao mesmo tempo em que destaca que o baldrame de toda soberania reside na nação e que nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente (art. 3°), bem como que todo indivíduo tem garantida a liberdade de locomoção (art. 7°), de opinião e religião (art. 10), de expressão (art.11) e de propriedade (arts. 2° e 17), inferindo ainda a presunção de inocência (art. 9°), a legalidade criminal (art. 8°) e a legalidade processual (art. 7°).

Avançando para além das liberdades, continua Ferreira Filho (2000), a Declaração empodera os indivíduos, garantindo direitos de cidadania: direitos de participar da “vontade geral”, escolhendo representantes que o façam (art. 6°), consentir no imposto, controlar o dispêndio do dinheiro público (art. 14), pedir contas da atuação do agente público (art. 15); cabe destacar que o texto elenca princípios de organização política: a igualdade civil (art. 1°) e a finalidade do Estado: “a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem” (art. 2°), a soberania investida na nação (art. 3°) e a destinação da “força pública” (art.12), que é a segurança dos direitos do homem e do cidadão. Finalmente, no artigo 16, fundamenta a autoridade da constituição, expressão da vontade geral e limitador do exercício do poder, respeitando aos direitos fundamentais e fixando a separação dos poderes.(FERREIRA FILHO, 2000, p. 11_12)

Comparando a carga principiológica da Declaração, percebe-se nitidamente o fim do Antigo Regime e, ao mesmo tempo, o florescimento de uma nova sociedade abancada em liberdades e poderes individuais, sem distinção jurídica repousada em status de nascimento (TRUYOL, 1982) e vedada toda forma de poder arbitrário. Em outro vértice, Hobsbawn (2001, p.77) discorre que a Declaração “é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”, já que a igualdade evocada na Declaração é formal, jurídica e não social – material, atendendo assim os interesses da burguesia, o que justifica a defesa da liberdade formal e da propriedade ocupando espaço central no documento.

No que abrange as alterações políticas revolucionárias, merece relevo a concepção individualista de sociedade, em que “o indivíduo isolado, independente de todos os outros, embora juntamente com todos os outros, mas cada um por si, é o fundamento da sociedade, em oposição à ideia que atravessou séculos, do homem como animal político e, como tal, social desde as origens” (BOBBIO, 2004, p.104), significando o fim da concepção orgânica tradicional de interpretação da sociedade e da política, direcionada no sentido de que a sociedade como um todo vem antes dos indivíduos, e ajustou uma “inversão de perspectiva” (BOBBIO, 2004, p.105) nas relações políticas entre governantes e governados, de gravidade ululante para a constituição do Estado Moderno de Direito. De tal maneira, Bobbio (2004, p.74) distingue que o pensamento político sempre visualizou suas relações pelo ângulo dos governantes:

O objeto da política foi sempre o governo, o bom governo ou o mau governo, ou como se conquista o poder e como ele é exercido, quais são as funções dos magistrados, quais são os poderes atribuídos ao governo e como se distinguem e interagem entre si, como se fazem as leis e como se faz para que sejam respeitadas, como se declaram as guerras e se pactua a paz, como se nomeiam os ministros e os embaixadores.           

O indivíduo, agora no novo contexto, no contexto burguês, é um sujeito e objeto de poder, devendo ao mesmo tempo obedecer às leis, vez que, de maneira inédita, é o ponto de partida para a edificação de uma doutrina da moral e do direito, ou seja, do jusnaturalismo.

Em última análise, deve ponderar-se que uma declaração de direitos não garante, por si só, sua vigência plena, restando à lei formar os limites do exercício das liberdades e poderes proclamados; justamente por essa razão, os princípios da Declaração de 1789 vieram a público antes da redação da Constituição Francesa, de 1791.

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Sobre o autor
Bernard Pereira Almeida

Graduado em Direito, especializou-se em Direito Processual e Material do Trabalho, bem como em Direito Previdenciário. Também é especialista em Docência do Ensino Superior. Mestre em Direito, Doutor em Educação e Pós-Doutorando em Direito. É membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário - IBDP e da Associação Brasileira de Advogados - ABA. No campo profissional, é advogado militante, sócio-proprietário do escritório De Paula & Almeida Advogados, atuando na seara Trabalhista e Previdenciária, em todo o Estado do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Concomitantemente, labora como professor universitário. Autor de diversos artigos jurídicos e conta com dois livros publicados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Bernard Pereira. Direitos humanos e previdência social: uma relação intrínseca. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5319, 23 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55481. Acesso em: 26 abr. 2024.

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