"The community that will not protect its most ignorant and unpopular member in the free utterance of his opinions, no matter how false or hateful, is only a gang of slaves." [1]
Logo após a Segunda Guerra Mundial, o jurista Pontes de Miranda [2], ao comentar a Constituição de 1946, expressou que, no Brasil, ainda não se havia compreendido que o conteúdo das liberdades de consciência e de expressão envolve a tutela de manifestações anti-democráticas e anti-religiosas. De lá para cá, infelizmente, este ângulo destas liberdades segue incompreendido pelos Tribunais brasileiros.
No ano de 2003, o STF negou habeas corpus [3] a um senhor que editava, publicava e era autor de livros anti-semitas, argumentando que as suas obras possuíam conteúdo atentatório à dignidade do povo judeu, à democracia e à pluralidade. Configurado estava o crime de racismo. Aparentemente, uma louvável decisão. No entanto, é conveniente perscrutar com maior atenção o impacto do arrazoado e de seus efeitos quanto às liberdades de pensamento e de expressão, pilares reconhecidos das ordens democráticas.
Nesta decisão, o STF avaliou as obras anti-semitas e julgou seu teor. A análise do discurso pelo seu conteúdo impõe aos tribunais o ingresso na arenosa seara de definir quando, como e porque um texto ou uma fala são lesivos a um povo, a uma comunidade, a um gênero ou a uma agremiação religiosa. Transformar-se-ão os juízes brasileiros em censores, que deverão procurar nas metáforas, nas entrelinhas, nos interstícios da literatura, dos discursos, das peças e da música o conteúdo proibido? Tutelarão a todos os brasileiros, deixando-os redigir, ler e ouvir apenas o que eles julgam adequado?
Este paternalismo não impede apenas pessoas como o senhor que teve o habeas corpus negado pelo STF de usar a liberdade de expressão. Impede todos aqueles que desejam contraditar, no plano das idéias, manifestações odiosas como as dele. Pela repressão, sepulta-se o debate. E, por conseqüência, enfraquecem-se os discursos de defesa da democracia, da pluralidade, da dignidade humana e o próprio Estado Democrático de Direito.
Ademais, será preciso distinguir obras. As de valor histórico estão, evidentemente, excluídas da análise. Pois bem, qualquer pessoa que tenha o intuito de disseminar noções anti-semitas ou racistas sem assumir o risco de ser condenado, recorrerá a elas e obterá o resultado pretendido. Ter-se-á, então, que controlar qual o uso, como cada pessoa lerá estas obras. Do contrário, a condenação de quem escreve ou fala sobre assuntos proibidos será vã.
É premente saber que a fundamentação do cerceamento de um discurso pelo seu tipo ou teor normalmente possui um longo alcance. Proíbe-se a ostentação da cruz suástica, porque a ela estão ligados o preconceito, a tortura, a perseguição, a matança indiscriminada. Ora, todos estes argumentos podem ser utilizados para censurar a cruz de Cristo, pois, em seu nome, centenas de judeus, muçulmanos, ciganos, mulheres e hereges foram satanizados, queimados, torturados e mortos [4].
Outro aspecto a ser considerado é o efeito pretendido com a condenação de pessoas pela manifestação de suas idéias, por mais antipáticas que sejam. Na Europa Moderna, centenas de livros foram destruídos, seja pela Igreja, seja pelo poder absoluto dos reis. Durante a ditadura militar brasileira, muitos textos foram retirados de circulação. Seus autores foram banidos ou exilados. Entrementes, os livros chegaram ao público. Crer que a condenação criminal de alguém pelo teor de suas manifestações faladas ou escritas mudará suas convicções é uma visão por demais ingênua do sistema penal e de sua capacidade de ressocialização. O condenado não mais odiará os judeus, os negros, as mulheres, ou quem quer que seja, pelo só fato de ter sido condenado, ou, ao revés, terá sua raiva incrementada, por acreditar que o Estado protege somente aqueles que ele já detestava gratuitamente? Uma vez estigmatizado por falar e escrever, o que fará o Estado para impedi-lo de transformar suas palavras em atos? Grupos e pessoas que manifestavam, pacífica e abertamente, idéias discriminatórias, possivelmente não deixarão de dizer e de escrever o que pensam, mas terão o cuidado de agir secretamente. E, uma vez ocultos, a margem de supervisão do Estado e dos demais cidadãos diminui, torna-se mais difícil rebater estas convicções e, paradoxalmente, incrementa-se sua liberdade de ação. Se são clandestinos só por falar e escrever, o que os impedirá de agir?
É claro que existe larga diferença entre palavras contidas em teses genéricas e palavras dirigidas ofensivamente a determinado indivíduo ou grupo. Existe, também, distinção abismal entre palavras e atos. Nos dois últimos casos, a atuação dos tribunais é de assaz importância.
Todos estes argumentos não significam, evidentemente, que o poder estatal deverá ficar inerte em relação a certas manifestações generalistas de cunho discriminatório e aos discursos do ódio. O poder público possui a mais eficaz das armas para neutralizá-las, mantendo absolutamente intocadas as liberdades de consciência e de manifestação do pensamento. A educação é o meio de combate. Pessoas com sólida formação cultural, histórica, cidadã, dificilmente permitir-se-ão iludir por argumentos relativos à superioridade racial, à negação do holocausto, ou à inferioridade de negros e mulheres. Provavelmente, não se calarão. Permita-se que consciências educadas, através da liberdade de expressão, do debate plural, enfim, do gozo das liberdades democráticas, recusem qualquer forma de discriminação e seus fundamentos. Estas formas serão, certamente, mais eficazes do que a pretensão punitiva do Estado, e atuarão nas consciências, não na liberdade de locomoção nem na de trabalho.
Outra forma de combate destes ideários consiste na implementação de políticas públicas de inclusão de minorais, de respeito aos seus Direitos Fundamentais, e de propaganda educativa. Ao Legislativo e ao Executivo cabe, por exemplo, não mais permitir que logradouros públicos sejam denominados Adolf Hitler, cabe-lhes dar vazão a políticas de ação afirmativa, cabe-lhes regrar a objeção de consciência, dentre tantos outros gestos. O Poder Judiciário, quando se trata de corrigir os pontos defectivos dos fóruns majoritários de tomada de decisão, possui papel proeminente, e poderá dar o exemplo de proteção das minorias e de promoção da alteridade em suas decisões [5]. Só para citar um caso, poderia um dos Ministros do STF ter reconhecido como de conteúdo não lesivo à igualdade a lei do Rio Grande do Sul que estipulava medidas assecuratórias das minorias sabatistas, dentre as quais incluem-se os seguidores do judaísmo [6]. Este rumo decisório permitiria aos sabatistas maior participação na vida pública, tanto no que toca aos concursos públicos como no que tange aos concursos vestibulares de Instituições públicas, exaltaria sua dignidade, bem como produziria efeitos educativos ímpares.
Certa vez dois Justices da Suprema Corte dos EUA afirmaram, em casos que versavam sobre a proibição de discursos que pregavam a tomada violenta do poder, que o remédio para o mau uso da palavra é palavra, educação e exemplo, e não silêncio forçado [7]. Na mesma esteira, Norberto Bobbio [8] asseverou que uma das maiores virtudes da democracia é permitir-se duvidar de si mesma, ao assegurar liberdade e espaço até mesmo para aqueles que nela não crêem.
Notas
1 Wendel Phillips, apud STEWART, James Brewer. The constitution, the law, and freedom of expression 1787 -1987. Illinois: Southern Illinois University Press, 1987, p. 01.
2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1946. 3ª ed. rev. e aum. Tomo IV. Rio de Janeiro: Borsoi, 1960, p. 445.
3 BRASIL. STF. Habeas Corpus nº 82424. Rel. Min. Rel. Min. Moreira Alves. Rel. Acórdão. Min. Maurício Côrrea. D.J. 19/03/2004, pp.000017. Disponível em: http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&n=-julg&s1=racismo&u= http://www.stf.gov.br/Jurisprudencia/Jurisp.asp&Sect1=IMAGE&Sect2=THESOFF&Sect3=PLURON&Sect6=SJURN&p=1&r=1&f=G&l=20 Acessado em: 20/05/2004.
4 Ver, a este respeito a obra de Paulo Fernando Silveira intitulada devido processo legal – due process of law. Silveira, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
5 Sobre esta questão, suas críticas, defesa e sua evolução, consulte as seguintes obras: Bittar, Orlando. A lei e a constituição: alguns aspectos do controle jurisdicional de constitucionalidade..Brasília: Conselho Federal e Departamento de Assuntos Culturais, 1978, p11-209. (Obras Completas de Orlando Bitar. v.2); Cademartori. Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. Canotilho, J. J. Gomes. O Direito Constitucional e a teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. Cappelletti, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989. Cappelletti, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade no Direito Comparado. 2.ed. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992. Castro, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1989. Dworkin, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. Rev. Tec. Gildo Rios. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Dworkin, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Dworkin, Ronald. Los derechos en serio. Trad. Marta Gustavino. 1 ed. Barcelona: Ariel, 1995. Dworkin, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the american constitution. Cambridge: Harvard University, 1996. Ely, John Hart. Democracy and distrust: a theory of Judicial Review. Massachusetts: Harvard University, 1998. Ferrajoli, Luigui. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibañes et al. Madrid: Trotta, 1995. p.851-957. Fisher, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. New Jersey: Princeton University Press, 1988. Viana, Luiz Werneck et.al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, passim.; KELSEN, Hans. ¿Quién debe ser el defensor de la constitución? Trad. Roberto J. Brie. Madrid: Tecnos, 1995. Holmes, Oliver Wendell. O Direito comum. As origens do Direito anglo-americano. Trad. J. L. Melo. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1967. Nelson; William E. Fourteenth Amendment: from political principle to judicial doctrine. 2.ed. Massachesetts: Harvard University Press, 1995. Tribe, Laurence H. American constitutional law. 2.ed. New York: The Foundation Press, 1988. Tribe, Laurence H.; Dorf, Michael C. On reading the Constitution. Cambridge: Harvard University, 1991. Wolfe, Christopher. The rise of modern Judicial Review: from constitutional interpretation to judge-made law. Rev. Ampl. Maryland: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994. Zagrebelsky, Gustav. El derecho ductil: ley, derechos y justicia. Trad. Marina Gercón. Madrid: Trotta, 1995.
6 Ver: BRASIL. STF. ADIn 2806. Rel. Min. Ilmar Galvão. 23/04/2003. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/frame.asp?classe=ADI&processo=2806&origem=IT&cod_classe=504 Acessado em: 10/11/2003.
7 Trata-se dos votos dissidenets dos Justices Holmes e Brandeis no caso Whitney v.People of State of California. 274 U.S. 357 (1927). Anote-se que a esteira de pensamento destes Justices, vencida no caso sob menção, foi adotada posteriormente pela Suprema Corte dos Estados Unidos, conhecendo raríssimas restrições. Dentre estas, destaca-se os Atos de Patriotismo, aprovados pós 11 de setembro, cujos limites à liberdade de expressão são temporários e lançados em virtude de uma emergência. Sobre o tema consultar: STEWART, James Brewer. The constitution, the law, and freedom of expression 1787 -1987. Illinois: Southern Illinois University Press, 1987. Stefancic, Jean. Delgado, Richard. Must we defend the nazis? Hate Speech, pornography and the new First Amendment.
8 BOBBIO, Norberto. In. OLIVEIRA JÚNIOR. O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.