1. INTRODUÇÃO
Com o advento de novas tecnologias, em especial a rede mundial de computadores, internet, houve várias revoluções na sociedade. Uma das revoluções foi na área de comunicação e outra na área da administração.
Na revolução da comunicação os cidadãos se aglutinam em grupos de interesse e discutem pontos de vistas, combatendo a alienação e se ressurgindo contra a letargia da aceitação passiva de seus governos, gerando uma crise de legitimidade em boa parte do mundo ocidental. O povo não se sente mais representado.
No Brasil não foi diferente e entre os vários embates informais no seio da sociedade parecem surgir alguns pontos incontroversos, são eles: há uma corrupção endêmica no país, os representantes políticos apenas atendem interesses pessoais ou dos financiadores de suas campanhas, a administração pública tem uma consistente cultura que gera ineficiência e há um baixíssimo retorno de bons serviços públicos em relação aos tributos cobrados, tudo em um grande ciclo vicioso. Assim, podendo sintetizar os problemas em legitimidade, eficiência, fiscalização e participação popular.
Outra revolução ocorreu no campo gerencial, novas tecnologias permitem gerar dados para planejamento e controle, que permitem elevar a administração a outro patamar. Permitindo observar problemas e, consequentemente, sugerir soluções rápidas.
Dessa forma, com a definição dos maiores problemas pela sociedade, com maior capacidade gerencial e com uma Constituição com determinações firmes e grandes aspirações, urge a necessidade de elevar o nível de transparência do governo.
Este trabalho irá tratar desse objeto que intenta a cooperar e resolver essa problemática nacional em um setor que não tem a prestação de contas das eleições periódicas, o Judiciário. Para isso, serão analisados alguns dados de transparência considerados relevantes, nos tribunais estaduais para haver comparabilidade.
Contudo, será necessário entender o contexto inserido que se relaciona com o tema e atentar quais são as normas que regem o assunto. Então observando: a transparência é obrigatória? Quais são as normas que tornam obrigatórias? Se obrigatória, em que nível? O que obstrui sua implantação em nível amplo?
Ver-se-á a construção do contexto histórico da obrigação da transparência, que se confunde com a limitação do poder do monarca e empoderamento da sua população.
Na Grécia se construiu de modo relevante para história, de maneira a reverberar mais que experiências tribais, a experiência da democracia, que consiste na participação popular nos atos do Estado. Já Roma estabeleceu a República e o seu espírito, onde todos os cidadãos deveriam ter zelo pelos bens do Estado, que eram considerados coisas públicas, bens do coletivo.
Posteriormente, houve mais duros golpes contra o Estado absolutistas com destaque a Carta Magna de 1215, a revolução francesa e a revolução americana. A Carta Magna estabeleceu o poder de reforma de decisão do Rei em determinados casos, a Revolução Francesa estabeleceu um importante documento, Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, que alterou a fonte do poder do monarca para a sua população, além da prestação de contas, já a americana consolidou o ideário francês.
A Revolução Americana influenciou as outras colônias do continente e não diferente, o Brasil. Assim, ocorreram diversos movimentos republicanos até culminar no texto da primeira constituição promulgada e todas a partir de então. A Constituição de 1988 estabelece ab initio o país como República Federativa e Estado Democrático de Direito, ou seja, limita o Estado a seguir suas próprias leis e como democracia e república.
O estabelecimento como república, democracia e estado democrático de direito já deveria ser suficiente para obrigar o Estado a cumprir com o dever de transparência de maneira mais ampla possível, pois o primeiro estabelece os bens como público, o segundo posicionam o cidadão como protagonista nas decisões do Estado e o terceiro obriga o Estado a seguir suas leis. Porém, não foi suficiente.
A resistência a cumprir seus próprios regramentos deriva da construção histórico-cultural, visto que no Imperialismo não era necessário a prestação de contas como conhecemos pela sua natureza e posteriormente sempre mantiveram rincões de poder como o coronelismo, oligarquias e ditadura, contrárias ao ideal democrático-republicano. Destarte, há um conformismo de grande parte da própria população que ainda amadurece a apropriar a transparência como um direito fundamental.
As características do patrimonialismo estão presentes até os dias atuais, porém houveram algumas fortes incursões para seu combate. No Estado Novo implantou-se algumas características burocráticas para contrapor o patrimonialismo com impessoalidade, divisão por competência e institucionalização do serviço público.
Antes mesmo de se livrar dos problemas de uma cultura patrimonialista, o país já convivia com fortes disfunções da burocracia, como a supervalorização dos meios, a falta de iniciativa, a falta de visão do usuário como cliente, dentre outros, gerando uma ineficiência custosa a um Estado de Bem-Estar Social com recursos limitados.
Assim, tentou-se estabelecer, influenciado também pela escola de Chicago, o Estado gerencial, inspirado na iniciativa privada, valorizando eficiência e resultado.
Depois de perceber a construção histórica, o trabalho passa a enumerar a base principiológica do Ordenamento Jurídico Pátrio para demonstrar o poder cogente para a transparência mais ampla possível. Destarte, é feita uma breve explicação, pelo fato de serem conceitos “pesados”, se opta por utilizar vários conceitos doutrinários consagrados sem intenção de esgotar o assunto que se relaciona com a transparência. Dentre os princípios estão: a democracia, o republicanismo, a cidadania, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade, a eficiência, o direito fundamental à boa administração e a unidade constitucional. Todos cooperando sinergicamente com o dever de transparência.
A partir da definição clara dos pontos cogentes de transparência, inicia-se a análise dos sítios eletrônicos dos tribunais de justiça. Iniciando pelo estabelecimento dos campos a serem analisados, para análise não se inviabilizar, tendo em vista serem 27 tribunais pesquisados.
Depois da análise descritiva dos tribunais, deve-se estabelecer outro método para haver uma comparabilidade entre os tribunais. A comparabilidade não traz obrigatoriedade por si, mas mostra a possibilidade e o grau de cumprimento. Um alto grau de cumprimento torna difícil demonstrar justificativas válidas para se eximir pela reserva do possível.
O trabalho utilizará o método histórico para situar o contexto de nosso país, assim, posteriormente a revisão bibliográfica será utilizada para demonstrar a força normativa, utilizará o método dedutivo para partir de premissas gerais em direção análise de casos em concreto, finalizando com o procedimento comparativo, conforme explicado anteriormente.
Desse modo, espera-se dar sua margem de contribuição para fomentar a cultura de transparência, debate, cobrança e participação da sociedade nos atos da vida pública, mesmo que não sujeito ao controle eleitoral.
2. HISTÓRICO
A história da transparência e prestação de contas se confunde com a história da limitação do poder absoluto do Estado, da democracia e da república, visto que seus conceitos estão intrinsecamente conectados por alterarem a fonte de poder do monarca para os governados, havendo empoderamento dos cidadãos em detrimento da absoluta independência e falta de responsabilização do monarca, essa conexão, que gerou o amadurecimento e aperfeiçoamento da administração pública, será mais bem compreendida com o decorrer do estudo. Assim sendo, este trabalho fará uma passagem rápida para entender a construção dos conceitos.
Para melhor conhecer os conceitos supracitados é importante rememorar alguns atores históricos. Os gregos foram os primeiros a implantar a democracia de maneira relevante de influência para sociedade ocidental, a reverberar até os dias atuais, por isso é importante fazer esta breve citação histórica. Influenciados pela ascensão dos comerciantes que estavam em um território estratégico no contexto histórico.
A etimologia da palavra democracia refere-se ao governo do povo, porém, havia uma forte contradição por excluir da vida política mulheres, menores e escravos, ou seja, boa parte da população.
No tempo de Péricles (461-429 a.C), o comparecimento à assembléia soberana era aberto a todo o cidadão. A assembléia era um comício ao ar livre que reunia centenas de atenienses do sexo masculino, com idade superior a 18 anos. Todos os que compareciam tinham direito de fazer uso da palavra. As decisões da assembléia representavam a palavra final na guerra e na paz, nos tratados, nas finanças, nas legislações, nas obras públicas, no julgamento dos casos mais importantes, na eleição de administradores, enfim na totalidade das atividades governamentais.
(BRAICK e MOTA, 2010. p. 102).
Influenciados pelos gregos e também pelo atrito da aristocracia com a plebe, os Romanos, com o declínio do Império, instituíram a República, governo onde o Estado era “coisa pública”, assim fazendo que “pertencesse” aos seus governados. A divisão de poderes e influências da aristocracia com a burguesia transparece ser um ponto em comum da gênese da república e democracia.
Direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censuraras coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas e a grita que de tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles geravam; e não consideram que em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles, como facilmente se pode ver que ocorreu em Roma. (MAQUIAVEL, 2007, p. 12).
Os conceitos de democracia e república estabelecem diretrizes básicas para o Estado que se definisse dessa maneira. O poder provém do povo e o Estado não deve seguir trilhando caminhos de interesses pessoais, mas sim do bem de sua população.
Deste modo Ferreira (1986) define democracia:
[...] governo do povo; soberania popular; democratismo. Doutrina ou regime político baseado nos princípios de soberania popular e da distribuição equitativa de poder, ou seja, regime de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão de poderes e pelo controle da autoridade (FERREIRA, 1986, p. 534).
Extrai-se que a população passa a ser protagonista, tomando as decisões do Estado em detrimento ao poder soberano do Monarca. O controle da autoridade e a divisão de poderes exercem papel importante para a manutenção desse sistema.
Já Montesquieu define bem o espírito republicano:
Em Roma, permitia-se a um cidadão acusar outro. Isto era estabelecido segundo o espírito da república, em que cada cidadão deveria ter um zelo ilimitado pelo bem público, em que cada cidadão é reputado como tendo todos os direitos da pátria nas mãos. (MONTESQUIEU, 1985, p.84)
Assim, a república remete o poder e dever de todo cidadão de fiscalizar o bem público, incluindo o patrimônio do governo e o desvio de seus agentes. Este conceito de fiscalização se amplia com a sinergia do estabelecimento da democracia.
É importante notar que a limitação do poder do monarca, a república e a democracia contribuíram sobremaneira a evolução da administração pública, pois a teorização do Estado só se consolida com a instrumentalização no mundo concreto, assim necessitando de recursos materiais e humanos, gerando um processo de institucionalização, obtenção de um corpo fixo com vinculo independente do mandatário, que será mais bem compreendido na discussão das administrações patrimonialistas, burocráticas e gerencial, mais adiante no trabalho.
Posteriormente, o poder do monarca seguiu com mais limitações, com marco para a Carta Magna de 1215, revolução francesa e a americana, fazendo com que o foco fosse deslocado do Estado e passando para o cidadão. Desta forma, havendo cada vez mais o empoderamento do cidadão e da sociedade civil.
O primeiro atacou a premissa que o rei era inquestionável, the king can do no wrong, permitindo reformas de suas decisões por um órgão colegiado de nobres e estabelecendo julgamento para a desapropriação e privação de liberdade.
Na Revolução Francesa houve, mais uma vez, o embate entre classes, do clero e aristocracia contra os burgueses, camponeses e demais profissionais, ocasionados pela guerra dos 7 anos, perdida pela França, e os altos custos da ajuda francesa à guerra de independência americana. Estas tensões sociais geraram mais limitação do poder do Estado e, consequentemente, mais liberdades dos seus cidadãos. Finalmente, culminando na Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, onde se pode extrair a limitação do poder absoluto pela igualdade entre os homens, demonstrado em: “Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. ”; o estabelecimento do povo como fonte do poder em: “Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente. ”; e, por fim a prestação de contas dos agentes públicos através do “Art. 15.º A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.”.
A Revolução influenciou bem além de suas fronteiras com princípios basilares de muitas constituições, assim ensina Bonavides:
[...] a Revolução Francesa não foi o Comitê de Salvação Pública nem a guilhotina de Danton e Robespierre, mas o Estado de Direito, a legitimidade republicana, a monarquia constitucional, o regime representativo, as liberdades públicas, os direitos individuais, a majestade da pessoa humana; enfim, toda aquela ordem nova que somente tomou forma e consciência depois que a História filtrou e sazonou o princípio revolucionário em concretização institucional. (Bonavides, 2013, p. 210)
Já a Revolução Americanas emanou de um contexto de pouca intervenção dos seus colonizadores para um controle maior, fruto da grande atenção dos ingleses para a guerra dos 7 anos e da posterior busca de se cobrir os grandes gastos de correntes.
A ajuda dos franceses, que cooperavam com os interesses americanos por estarem servindo de outro front de batalha, produziu uma interação com o pensamento de aumento das liberdades individuais e combate de privilégios de castas dominantes.
[...] para fixarmos o verdadeiro sentido (de um governo republicano devemos recorrer) aos princípios que servem de base às diferentes formas de governo, neste caso, diremos que governo republicano é aquele em que todos os poderes procedem direta ou indiretamente do povo e cujos administradores não gozam senão de poder temporário, a arbítrio do povo ou enquanto bem se portarem. E é da essência que não é uma só classe favorecida, mas que a maioria da sociedade tenha parte em tal governo; porque de outro modo um corpo poderoso de nobres, que exercitasse sobre o povo um autor idade opressiva, ainda que delegada, poderia reclamar para si a honrosa denominação de República. É bastante, para que tal governo exista que os administradores do poder sejam designados direta ou indiretamente pelo povo; mas sem esta condição, sine qua nom, qualquer governo popular que se organize nos Estados Unidos, embora bem organizado e bem administrado, perderá infalivelmente todo o caráter republicano (MADISON, 1979, p.119).
Da luta por posição sobre as ações do Estado entre aristocratas e burguesia emergente se estabeleceu esses importantes conceitos que influenciam a sociedade moderna. Aumentando a solidariedade da responsabilidade e as decisões relevantes sendo compartilhadas por todos os governados.
Mais uma vez na história um momento de um país influencia em outro. Assim, os norte-americanos influenciaram várias outras colônias. No Brasil o sintoma da necessidade da república se sentiu em diversos movimentos.
Podemos reconhecer ressonâncias destes princípios na luta política e nos projetos que engendraram a independência do Brasil e caracterizaram o jogo parlamentar vivido nas primeiras décadas de vida da nação brasileira. Elas aparecem, com clareza, em inúmeras circunstâncias: por exemplo, nos protestos da Câmara do Recife, sistematizados por Frei Joaquin do Amor Divino Caneca quando da outorga da Constituição de 1824; em registros contemporâneos ou rememorativos da ‘revolução do 7 de abril de 1831’ data da abdicação do Imperador, mais particularmente nos escritos do comerciante e historiador inglês John Armitage, e dos políticos Teófilo Ottoni, Francisco Sales Torres Homem, o Timandro, e de Justiniano José da Rocha. E também nas restrições à centralização política e ao poder moderador apresentadas por Tavares Bastos, na década de 1870. Tais depoimentos seriam posteriormente retomados, por Joaquim Nabuco, Raimundo Faoro, e por Paulo Perira de Castro, para identificar uma fracassada ‘experiência republicana’ intenta particularmente durante o período regencial (1831-1840). Portanto, minha intervenção tem por objetivo abordar um possível diálogo entre a revolução americana – na leitura apresentada por Hannah Arendt – e situações vivenciadas no Brasil registradas em alguns destes depoimentos mencionados. (MARSON, 2004, p. 229 - 230).
Diversos movimentos surgiram, desde então, em direção ao republicanismo, até que enfim se estabeleceu como república e democracia desde a primeira constituição promulgada, 1891, limitada por excluir mendigos, mulheres, os pré-praças e analfabetos. E, seguiu-se dessa maneira por todas as constituições promulgadas.
Todas as demais constituições promulgadas do país seguiram o mesmo caminho do republicanismo até a Constituição atual, 1988, se definiu de igual maneira e estendeu o direito a voto, a exceção dos menores de 16 anos. Devido a isso e os demais direitos estabelecidos, a Carta foi apelidada de “Constituição Cidadã”.
A Constituição de 88 se define como “Estado Democrático de Direito”, logo no preâmbulo, artigo 1º e pelos princípios ao longo do texto da Constituição, o Estado deve obedecer ao que legisla, mormente quando o legislado provém da Lei Maior que orienta todo o Ordenamento Jurídico.
Tal postulado, consagrado após séculos de evolução política, tem origem mais próxima à criação do Estado de Direito, ou seja, do Estado que deve respeitar as próprias leis que edita. Não custa lembrar, por último, que, na teoria do Estado moderno, há duas funções estatais básicas: a de criar (legislação) e a de executar a lei (administração e jurisdição). Esta última pressupõe o exercício da primeira, de modo que só se pode conceber a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legisferante. Por isso é que administrar é função subjacente à de legislar. O princípio da legalidade denota exatamente essa relação: só é legítima a atividade do administrador público se estiver condizente com o disposto em lei. (CARVALHO FILHO, 2005, p. 12-13)
Portanto, o Estado deve dar condições de efetivar os princípios basilares que optou no nascituro do próprio Ordenamento Jurídico, a Assembleia Constituinte. Ou seja, deve criar mecanismos para tornar sólida a república, a democracia e o próprio Estado de Direito.
Porém, apesar da previsão da primeira constituição democrática e republicana datar de mais de um século, algumas linhas mestras de estrutura estatal de concretização desses preceitos ainda se iniciam. Possivelmente pela cultura construída pelo contexto histórico local.
(...) é possível acompanhar ao longo da história o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre estes círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente do núcleo familiar está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. (HOLANDA, 2006. p.146)
Assim revela Holanda em seu trabalho sociológico que o país, por suas raízes históricas, burla os preceitos basilares de sua própria legislação para gerir com pessoalidade e subjetividade sem consideração ao bem comum para beneficiar grupos que observa como família. Essa confusão entre público e privado, utilização do patrimônio público para favorecer a “família”, grupo político, pelos governantes é chamado de patrimonialismo.
No patrimonialismo, não é possível afirmar que existe coisa pública em sentido contemporâneo, uma vez que o próprio Estado se confunde com patrimônio do soberano, sendo mera extensão daquilo que lhe pertence. O interesse perseguido é sempre o de quem detém o aparelho de Estado em suas mãos, não se podendo falar, nesse momento, de institutos básicos da moderna Administração Pública, como a ideia de supremacia e indisponibilidade do interesse público, separação do servidor de seu cargo, entre outros. (ACUNHA, 2013, p. 26)
A influência do patrimonialismo no Brasil império é condição necessária pela natureza de governo, de pessoalidade do imperador, o poder está nele. A falta de combatividade dessa cultura é facilmente notada pelo transcurso do coronelismo, oligarquias e ditadura que seguiram no país. Pois a manutenção do poder pela família é característica dos primeiros e o segundo tem a maior fonte de legitimidade pela força.
Durante todo esse tempo de administração preponderantemente patrimonialista, surgiram várias tentativas para se combater essa pessoalidade. Então, por meio de concursos públicos, poder hierarquizado e divisão de trabalho por competência foi implantada características da administração burocrática. Tentando mudar o foco da pessoalidade do detentor do poder para a própria estrutura do Estado, realizando um processo de institucionalização.
Sua administração é trabalho profissional em virtude do dever objetivo do cargo. Seu ideal é: proceder SINE IRA ET STUDIO, ou seja, sem a menor influência de motivos pessoais e sem influencias sentimentais de espécie alguma, livre de arbítrio e capricho e, particularmente, “sem consideração da pessoa”. (WEBER, 1991, p. 129).
Percebe-se que para Weber para instituição da administração burocrática era necessário implantar a impessoalidade, ou seja, tentar expurgar as influências subjetivas dos agentes públicos.
O primeiro esforço relevante para o combate desta cultura foi no Estado Novo, visando implantar os primeiros passos de impessoalidade e meritocracia no âmbito público, como ensina o professor Lustosa em uma valiosa lição:
A reforma administrativa do Estado Novo foi, portanto, o primeiro esforço sistemático de superação do patrimonialismo. Foi uma ação deliberada e ambiciosa no sentido da burocratização do Estado brasileiro, que buscava introduzir no aparelho administrativo do país a centralização, a impessoalidade, a hierarquia, o sistema de mérito, a separação entre o público e o privado. Visava constituir uma administração pública mais racional e eficiente, que pudesse assumir seu papel na condução do processo de desenvolvimento. (COSTA, 2008, p. 829).
Posteriormente, mesmo sem se livrar das amarras do patrimonialismo e já com problemas do sistema burocrático, para combater as disfunções do modelo burocrático, se instituiu o Plano Diretor da Reforma do Aparelhamento do Estado de Bresser Pereira. Combatendo problemas comuns que ainda são atuais, como a visão do formalismo como um fim e, não como instrumentalização, incapacidade de ver o cidadão como financiador do Estado e usuário do sistema e não percepção da eficiência como demanda da sociedade.
Como identifica o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, a qualidade fundamental da administração pública burocrática é a efetividade no controle dos abusos. Já seus defeitos (ou disfunções) se manifestam no excesso de burocracia e seriam: a auto-referência (o formalismo como um fim em si mesmo) e a incapacidade de voltar-se para a eficiência dos serviços prestados aos cidadãos. (CHARLES, 2015. p. 45)
A administração gerencial estabelece o foco em resultados, eficiência. Mudando a visão dos administrados para clientes e se inspiram na iniciativa privada com intuito de obter agilidade e eficiência.
As reformas administrativas do Estado não se deram de forma estanque, fazendo com que, ainda hoje, se possam observar características dos três tipos de administração: patrimonialista, burocrática e gerencial, juntas atuando na administração pública nacional.