Desde a publicação da lei federal que cria os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal (Lei n.º 10.259/01), tem-se discutido (ardorosamente, às vezes) sobre a aplicação ou não, aos Juizados Especiais Estaduais, do preceito legal que define (redefine, para alguns) as infrações de menor potencial ofensivo, fixando em 02 (dois) anos de privação de liberdade o máximo da pena abstratamente cominada.
Nos termos do art. 61 da Lei n.º 9.099/95, "consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial" (grifado). Dessa forma, seriam infrações de menor potencial ofensivo, além de todas as contravenções penais, os crimes cujo máximo da pena privativa de liberdade abstratamente cominada não superasse 01 (um) ano, e para os quais fosse aplicável o procedimento comum do CPP.
De sua parte, tratando especificamente dos Juizados Especiais Federais, a Lei n.º 10.259/01, em seu art. 2.º, parágrafo único, assim lapidou o conceito de infração de menor potencial ofensivo: "Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa." (grifado).
Diante da diversidade entre os textos, surgiram duas correntes. A primeira defende que haveria a Lei dos Juizados Especiais Federais alterado, de forma ampla e genérica, o próprio conceito de infração de menor potencial ofensivo, elevando para 02 (dois) anos o limite originariamente estabelecido pela Lei n.º 9.099/95 em 01 (um) ano de privação da liberdade. Seria a nova definição, pois, aplicável a todos os crimes com pena máxima abstratamente cominada não superior a dois anos – independentemente da competência federal ou estadual para processo e julgamento.
Um dos principais argumentos apresentados está na aplicação do princípio constitucional da isonomia. Interpretação diversa, sustentam, obrigaria o entendimento de existirem conceitos diversos de infrações penais de potencial ofensivo, tão-só em razão da diversidade de competência jurisdicional. Como conseqüência, o princípio da proporcionalidade também estaria atingido. Segundo tal raciocínio, um delito de desacato praticado contra um agente de polícia civil estadual seria infração de médio potencial ofensivo, ao passo que o mesmo delito, caso cometido contra um agente de polícia federal, estaria incluído no rol dos delitos de menor potencial ofensivo.
A segunda corrente sustenta que, nos termos da redação conferida aos dispositivos acima transcritos, os limites legalmente definidos seriam aplicados exclusivamente a cada esfera respectiva: pena máxima abstrata de um ano para os Juizados Especiais Estaduais e de dois anos para os Juizados Especiais Federais. Nesse contexto, não seria o artigo 2.º, parágrafo segundo, da Lei n.º 10.259/01 aplicável aos Juizados Estaduais, limitando-se apenas àqueles da Justiça Federal.
Contra os (fortes) argumentos apresentados pelos defensores da primeira tese, alegam os adeptos da segunda posição que o princípio constitucional da legalidade tornaria inviável a pretendida interpretação, haja vista a clareza dos respectivos textos legais. Materializaria, dessa forma, inegável interpretação contra legem, totalmente proscrita por nosso sistema constitucional.
Sempre sustentamos a idéia de que a Lei n.º 10.259/01 houvera dito muito menos do que pretendia e, dessa forma, dera causa a diversos problemas de ordem material e processual. Problemas com os quais não contava o legislador. Em nossa opinião, deveria ela ter deixado claro que o limite máximo de dois anos de privação da liberdade seria aplicável apenas aos delitos federais típicos, ou seja, àqueles que não encontram congêneres da competência estadual (v.g., moeda falsa). Quanto aos delitos eventualmente federais (desacato, desobediência, peculato, dano qualificado etc.), permaneceria aplicável apenas o art. 61 da Lei n.º 9.099/95.
Assim, contudo, não agiu o legislador.
A aplicação do parágrafo único do art. 2.º da Lei n.º 10.259/01 aos processos de competência dos Juizados Especiais Estaduais, em nosso sentir, afronta o princípio da independência e harmonia entre os poderes da República (CF, art. 2.º). De fato, quando o Poder Judiciário declara a inconstitucionalidade da expressão "para os efeitos desta lei" contida do dispositivo acima citado, indiretamente está reconhecendo uma alteração normativa na Lei n.º 9.099/95, alteração esta não expressamente pretendida pelo legislador, devendo-se recordar que a lei apenas pode ser alterada por outro ato normativo de idêntica (ou semelhante) natureza. Via de regra, apenas outra lei formal.
Chegamos à conclusão que, assim agindo, atua o Poder Judiciário, a pretexto de exercer o controle difuso de constitucionalidade das leis, na qualidade de legislador positivo, o que lhe é terminantemente vedado pelo princípio constitucional acima referido (art. 2.º, CF). Deve-se restringir o Judiciário, no exercício do controle de constitucionalidade, à eliminação de normas inconstitucionais, atuando como legítimo legislador negativo. O reconhecimento, via interpretação, de alteração legislativa em diploma legal anterior converte o poder judicante em legislador positivo, eivando sua própria decisão da mácula contra a qual pretendia atuar: a inconstitucionalidade.
Em recentes decisões, o Superior Tribunal de Justiça adotou claramente a primeira corrente, reconhecendo que o conceito geral de infração de menor potencial ofensivo passou a ser dado pelo art. 2.º, parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01, com aplicação para os Juizados Especiais Federais e Estaduais.
Caminhava a controvérsia para um fim honroso, diante da autoridade do STJ na resolução das questões controvertidas acerca da legislação federal. Dizíamos, contudo, que a controvérsia era constitucional (dado o aparente conflito entre os princípios constitucionais da isonomia, legalidade, independência dos poderes etc.) e que a última palavra haveria de ser dada pelo Supremo Tribunal Federal.
Surge, agora, o verbete 723 da Súmula de Jurisprudência do STF.
Eis a redação (apud Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 12 de dezembro de 2003): "Súmula 723 - Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano." (grifado).
Parece-nos claro que o quantum de um ano de privação da liberdade ainda inspira o STF em suas decisões acerca da linha divisória conceitual entre as infrações de menor potencial ofensivo (processo e julgamento da competência dos Juizados Especiais) e de médio potencial ofensivo (processo e julgamento da competência da Justiça Comum, sendo admissível, em tese, a suspensão condicional do processo).
Nesta linha de raciocínio, entremostra-se estar a entender a Corte Suprema não ser aplicável, aos Juizados Especiais Estaduais, a nova conceituação de infrações de menor (e médio) potencial ofensivo, remanescendo o art. 2.º, parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01, como de aplicação restrita aos Juizados Federais. Aos Juizados Estaduais continuaria aplicável o art. 61 da Lei n.º 9.099/95, estando no quantum de um ano de privação de liberdade o critério delimitador das infrações de menor e médio potencial ofensivo da competência da Justiça Estadual.
Advogamos, como dissemos alhures, uma tese moderada. Em nossa opinião, o art. 2.º, parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01 deveria ter aplicação apenas aos delitos exclusivamente federais, permanecendo com o art. 61 da Lei n.º 9.099/95 a disciplina dos demais delitos (delitos eventualmente federais). No entanto, parece-nos impossível deixar de admitir que, diante do recém publicado verbete sumular, e da idéia de que o Supremo Tribunal Federal não chancelou (aparentemente) a conclusão a que chegou o Superior Tribunal de Justiça, a discussão ainda não encontrou seu ponto final.