Recentemente, entrou em vigor a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, que teve uma vacatio legis de noventa dias, conforme disposto no seu artigo 118.
O novel ato normativo, da mesma forma que traz aspectos salutares, traz também profundas e perigosas incongruências que certamente acarretarão polêmicas no meio jurídico, cabendo à jurisprudência, com eqüidade, solucionar as questões com bom senso, a fim de que não sejam adotadas medidas e proferidas decisões teratológicas, causando injustiças.
Dentre outros aspectos, é digno de elogio o fato de o legislador infraconstitucional ter reservado um capítulo especial para o Ministério Público, sendo que em várias passagens exige a atuação do "Parquet" como parte ou apenas "custos legis", o que é salutar, pois em outros atos normativos, como por exemplo o Decreto-Lei nº 7.661/1945, o "Parquet" acabou sendo esquecido ou tendo uma atuação bastante tímida, apesar de a futura Lei de Falências (1) ter procurado corrigir a falha.
Destaco, dentre outros, o disposto no artigo 74, inciso V e a alínea "a", do referido diploma legal, que, de forma expressa, prevê que ao "Parquet" incumbe "instaurar procedimento administrativo", podendo instruí-lo através da expedição de notificações, colheita de depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado da pessoa notificada, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícias Civil ou Militar.
O que seria este procedimento administrativo ? Seria inquérito civil e/ou o inquérito policial ?
Cremos com plena certeza que não, pois no referido dispositivo, precisamente nos incisos I e VI, respectivamente, o legislador prevê que cabe ao Ministério Público a instauração de inquérito civil para apurar fatos violadores de interesses metaindividuais dos idosos e a requisição de inquérito policial para apurar infrações penais tendo os idosos como lesados ou vítimas.
Em sendo assim, pode-se concluir que além do inquérito civil, que é um procedimento administrativo, além do inquérito policial, que também é um procedimento administrativo presidido pela autoridade policial, tem-se um terceiro procedimento administrativo permitido pelo legislador, que terá na presidência o membro do "Parquet", justamente para apurar também a prática de eventuais infrações criminosas, demonstrando o legislador, ao contrário do que alguns operadores do Direito, dentre eles alguns ministros do Egrégio Supremo Tribunal Federal (2), que a investigação de infrações penais não é exclusiva do órgão policial.
Em suma, o Promotor de Justiça tem o poder-dever de instaurar procedimento administrativo, presidi-lo e instruí-lo, podendo, inclusive, colher depoimentos ou esclarecimentos, a fim de obter a necessária justa causa.
Portanto, mais um bom fundamento para aqueles que, acertadamente, admitem a investigação pelo Ministério Público, cujos membros, ao contrário dos integrantes das Polícias Civil e Federal, possuem as prerrogativas da inamovibilidade, da vitaliciedade e da irredutibilidade de vencimentos, as quais propiciam a apuração dos fatos de forma mais isenta e distante de ingerências externas.
Porém, nesta análise inicial e perfunctória, foi possível constatar um aspecto negativo, precisamente no artigo 94, vez que passou a exigir o rito previsto na Lei nº 9.099/95 aos crimes previstos especificamente no Estatuto do Idoso cuja pena não ultrapasse quatro anos.
Certamente surgirão vozes, ao meu sentir, com a devida vênia, equivocadas, no sentido de que o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo foi ampliado, ou seja, levará em conta o crime cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, o que acabaria enquadrando o crime de furto simples, aborto (arts.124 e 126 do CP), apropriação indébita, dentre outros.
Com a devida vênia, tal posicionamento não pode prosperar, senão vejamos :
A uma, porque o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, já ampliado uma vez, se encontra na Lei nº 10.259/2001, complementado com a ressalva do artigo 61 da Lei nº 9.099/95, não tendo o Estatuto do Idoso interesse em alterar tal conceituação;
A duas, porque o Estatuto do Idoso fez referência apenas ao procedimento, ou seja, ao rito previsto na Lei nº 9.099/1995, a forma pela qual os atos processuais deverão ser praticados, sendo que não se modificou o conceito, muito menos a atribuição ministerial e a competência do órgão jurisdicional. Em outras palavras, em se tratando de crime previsto na Lei nº 10.741/2003, cuja pena seja superior a dois anos e menor ou igual a quatro anos, a atribuição para atuar, em havendo justa causa, é do Promotor de Justiça que atua junto ao Juízo Criminal comum, sendo a competência das Varas Criminais comuns. Não há dúvidas de que, em não tendo ainda a necessária justa causa, a atribuição é da Promotoria de Investigação Penal das Centrais de Inquéritos, porém tão logo se obtenha aquela, os autos deverão ser enviados ao Juízo Criminal comum (não ao JECRIM), a fim de ser adotado o rito sumaríssimo previsto na Lei nº 9.099/95;
A três, porque o legislador foi expresso quando admitiu a aplicação do rito da Lei nº 9.099/95 "aos crimes previstos nesta lei" (os grifos não constam no original), demonstrando que não teve intenção em ampliar o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, até porque só fez menção aos crimes, não tendo feito qualquer referência às contravenções, apesar de o artigo 111 ter inserido modificações no Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais);
A quatro, porque se o legislador quisesse alterar e ampliar o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo certamente teria inserido nas "Disposições Finais e Transitórias" um dispositivo específico nesse sentido, alterando os conceitos previstos nas Leis nº 9.099/95 e 10.259/2001, como fez com vários dispositivos do Código Penal (3), com a Lei das Contravenções Penais (4), com a Lei nº 9.455/1997 (Tortura) (5), com a lei nº 6.368/1976 (6) e com a Lei nº 10.048/2000 (7).
Não se pode perde de vista, ainda, que os institutos despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/95 (composição civil e transação penal) não se aplicam aos crimes previstos no Estatuto do Idoso, cujas penas máximas sejam superiores a dois anos e não superem quatro anos, vez que não foi esta a ratio legis, até porque a intenção do legislador, ao admitir aplicação do rito sumaríssimo da Lei nº 9.099/95, foi justamente propiciar maior celeridade nas questões envolvendo os idosos, tanto que no âmbito do processo civil em que tenha idoso como parte, há que ser dada prioridade ao processo.
Ora, entendimento diferente geraria a absurda situação em que um cidadão que venha a se apropriar de verba previdenciária de um idoso, cuja pena não é superior a quatro anos, passaria a ter direito à transação penal, enquanto que a apropriação indébita praticada por um imputável em detrimento de um lesado não idoso geraria a aplicação de pena privativa de liberdade.
Posta assim a questão, conclui-se que, com o Estatuto do Idoso, não há um conceito novo de infração penal de menor potencial ofensivo, não havendo qualquer ofensa ao disposto no artigo 98, inciso I, da Constituição Republicana de 1988, até porque o legislador constituinte apenas exigiu que o processo e julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo sejam realizados pelo Juizado Especial Criminal, mas não impediu que em determinados crimes os atos processuais praticados no Juízo Criminal comum sigam o rito previsto na Lei nº 9.099/95.
Em suma, perfilho o posicionamento de que somente são infrações penais de menor potencial ofensivo as contravenções e os crimes em que as penas máximas abstratamente cominadas não superam dois anos, desde que não tenham rito especial (8), sendo que o simples fato de ser aplicado o rito da Lei nº 9.099/95 não tem o condão de tornar de menor potencialidade lesiva a infração penal, alterando-se a atribuição ministerial e a competência do órgão jurisdicional.
É a singela contribuição.
Notas
1 PL nº 4.376/1993.
2 Por todos Sua Excelência Nelson Jobim.
3 Conforme artigo 110 do Estatuto do Idoso.
4 Conforme artigo 111 do Estatuto do Idoso.
5 Conforme artigo 111 do Estatuto do Idoso.
6 Conforme artigo 113 do Estatuto do Idoso.
7Conforme artigo 114 do Estatuto do Idoso.
8 A respeito, pode ser consultado o artigo "Infração Penal de Menor Potencial Ofensivo- A Incidência da Lei nº 10.259/2001 no Juizado Especial Criminal, publicado nos "sites" www.amperj.org.br, www.jus.com.br e www.mundojuridico.com.br e na revista Síntese de Direito penal e Processual penal nº 13, abril-maio de 2002.