3. AUTORIA MEDIATA POR DOMÍNIO DA VONTADE MEDIANTE UM APARATO ORGANIZADO DE PODER (DOMÍNIO DA ORGANIZAÇÃO)
Uma das grandes preocupações enfrentadas por países que sofreram com experiências relacionadas a regimes totalitários consiste em investigar e eventualmente responsabilizar não só os autores imediatos, como também os agentes do alto escalão do Estado envolvidos com crimes relacionados a violações de direitos humanos.
A primeira dificuldade advinda para essa responsabilização é a insuficiência do modelo clássico (critério restritivo) de autoria mediata para abarcar aquelas situações delituosas praticadas coletivamente no seio de uma organização. Isso porque, consoante esse modelo, o instrumento utilizado para a prática delitiva deve necessariamente atuar com deficiência de conhecimento ou de liberdade, o que acaba por excluir ou atenuar sua culpabilidade e evidenciar o domínio do “homem de trás”, seja nas situações de erro, de coação ou utilização de inimputáveis. Como consequência dessa premissa, a definição de autoria transita necessariamente pela comprovação da responsabilidade do instrumento, deslocando-se tal análise do âmbito do tipo de injusto para o juízo de reprovação de culpabilidade, o que constitui um grave equívoco metodológico87.
Buscando desenvolver a teoria do concurso de pessoas nos limites normativos do tipo penal, Claus Roxin propôs a analisar o famoso caso do agente “Staschynskij”, espião russo a serviço da KGB, que, em cumprimento a ordens emitidas pela organização, assassinou em Munique, com o uso de sua pistola de gás, dois exilados políticos, bem como aquelas experiências ocorridas durante o Terceiro Reich alemão, em que Adolf Eichman ordenou, de forma indireta, a execução de judeus e de outros grupos considerados indesejáveis.
No julgamento desse primeiro caso, o Tribunal alemão entendeu, em uma clara adoção da teoria subjetiva, que o agente Staschynskij era apenas cúmplice, porque, malgrado tenha cometido diretamente tais homicídios, os realizou em interesse do serviço secreto russo88. O grande problema à conclusão a que se chegou nesse julgamento é considerar partícipe alguém que realiza integralmente as elementares de determinado tipo de injusto, não obstante cometer o fato a mando de terceiros. Contrariamente, punir os dirigentes do serviço secreto como meros instigadores contrasta com a concepção de autoria fundada no domínio do fato.
Adolf Otto Eichmann, tenente-coronel da Schutzstaffeln (SS), foi um dos grandes responsáveis por operacionalizar o Holocausto. Em 1942, durante a Conferência de Wannsee (ou, como chamada pelos alemães, Conferência de Staatssekretäre – subsecretários de Estado)89, teve participação decisiva nas questões relacionadas à “solução final”, cujo objetivo maior era a morte em massa de judeus, armênios, ciganos, dissidentes políticos, comunistas, homossexuais etc.90. Logo após essa conferência, em 1941 tornou-se chefe do Departamento da Gestapo IV-B-4, sendo um dos encarregados por identificar e transportar todos aqueles que não atendiam ao ideal da raça ariana para os diferentes campos de concentração91. Nesses locais, a IBM tinha papel importante na gestão da triagem e classificação dos presos por meio da tecnologia de cartões perfurados92.
O Tribunal de Nüremberg teve importância fundamental para que os superiores do regime nazista fossem julgados pelos atos de planificação e execução desses crimes de guerra e contra a humanidade. Primeiramente, deliberou-se por dissolver as organizações de caráter militar, a exemplo da Reichssicherheitshauptamt (RSHA) e da Schutzstaffeln (SS), que tinham atuação primordial nesses aparatos organizados de poder, para, posteriormente, processar os dirigentes do nacional-socialismo que operaram esse plano sistemático de extermínio durante o Terceiro Reich, inclusive aqueles que como Eichmann ocupavam uma posição intermediária na cadeia dominial93.
Com a ocupação da Alemanha pelos soviéticos, apesar de Eichmann ter sido preso por tropas americanas, conseguiu fugir do campo dos prisioneiros em 1946. Utilizando um passaporte falso obtido perante a Cruz Vermelha Internacional, refugiou-se para o interior da Argentina em 1950, utilizando o nome Ricardo Klement. Depois da constituição do estado de Israel, a Mossad, serviço secreto da polícia israelense, capturou Eichmann, em 11 de maio de 1960, num subúrbio de Buenos Aires, na Argentina, e o levou para ser julgado em Jerusalém94.
Em 11 de abril de 1961, iniciou-se, na Corte Distrital em Jerusalém, o processo em que ele foi acusado por ser integrante de uma organização criminosa e pelo cometimento de delitos contra a humanidade, crimes contra o povo judeu e crimes de guerra 95. Quando Eichmann chegou ao tribunal, perceberam que a pessoa cuja função foi de planejar e operacionalizar o extermínio de milhões de judeus, ciganos etc. era um burocrata extremamente preocupado no fiel cumprimento das ordens recebidas diretamente de Heydrich e do superior imediato de ambos e chefe da SS, Heinrich Himmler96.
Durante o julgamento, a defesa ponderou que a atuação de Eichmann era secundária, porque ele era apenas uma roda na engrenagem da maquinaria de poder nazista cujo objetivo final era o extermínio de milhões de pessoas. Argumentou que, ao cumprir as ordens de seus superiores (“atos de Estado”), teria agido no estrito cumprimento do dever legal e que sua presença no cargo intermediário ocupado na estrutura da SS em nada alteraria os planos de matança em massa dos judeus e demais grupos indesejáveis.
A acusação, por sua vez, alegou que a posição ocupada por Eichmann na estrutura da SS e sua inegável participação na alocação dos recursos para alcançar o objetivo traçado na Conferência de Wannsee eram determinantes para imputar-lhe a condição de autor do genocídio perpetrado nos campos de concentração em nome do programa sistemático patrocinado pelo nacional-socialismo97.
Em 15 de dezembro de 1961, os juízes do Tribunal de Jerusalém consideraram que o acusado foi coautor de todos os crimes a ele imputados, acrescentando que a distância em relação aos executores não constituiria óbice para a sua responsabilização. Pelo contrário: a responsabilidade aumentaria proporcionalmente à posição ocupada na hierarquia dessa esfera de poder, justamente em razão de os planejadores e organizadores possuírem o poder de decisão. Eichmann foi, finalmente, enforcado aproximadamente à meia-noite de 1º de junho de 1962, na prisão de Ramla, próximo de Tel Aviv98.
A partir da análise desses dois casos, Roxin percebeu que o homem de trás aproveita-se da funcionalidade do aparato de poder e da disposição dos executores em realizarem o delito, de maneira que esse aproveitamento não pode ter por fundamento: (a) um déficit de liberdade, como ocorre na autoria mediata por domínio pela coação (não se tem notícia da morte de nenhum soldado ou oficial alemão que se recusou a cumprir ordens ilícitas emitidas pelos principais departamentos componentes do regime nacional-socialista relacionadas à morte de integrantes dos grupos dissidentes)99; (b) um déficit de conhecimento, como se dá nas hipóteses de autoria mediata por domínio do erro do executor, porquanto o autor direto tem perfeito conhecimento da ilicitude da conduta praticada, (c) tampouco de um defeito de responsabilidade no sujeito, já que o executor atua com plena responsabilidade, sendo inconcebível, ademais, valer-se da figura da obediência devida como justificativa, ante a manifesta ilegitimidade da ordem recebida100.
Em razão das categorias comuns de concurso de pessoas contidas nos códigos penais não apresentarem uma solução satisfatória para a devida responsabilização dos emissores dessas ordens ilícitas, Roxin procurou averiguar quais particularidades apresentavam essas situações para, a partir daí, desenvolver um novo conceito que conseguisse alcançar não só os executores, mas igualmente as autoridades superiores que ordenavam a perpetração de crimes de lesa humanidade, bem como os chefes de organizações clandestinas que funcionam como um Estado paralelo. A conclusão a que chegou aludido jurista alemão é de que o domínio do fato do autor mediato concretizar-se-ia nessas situações por meio de ordens emitidas a executores fungíveis dentro dos denominados aparatos organizados de poder, cuja estrutura verticalizada e apartada da ordem jurídica garantiria a perpetração dos crimes planejados101.
O primeiro dos traços marcantes a diferenciar essa espécie de autoria mediata das demais modalidades consiste na fungibilidade da figura do autor imediato, pois a eventual recusa de algum subordinado no cumprimento das ordens superiores não constitui empecilho à prática de fatos penais. A substitutibilidade por outrem fiel ao regime ou ao grupo criminoso garante a execução da exortação, demonstrando o funcionamento independente e impessoal dessa organização, além da submissão dos executores a esses sistemas. Percebe-se, dessa forma, que os dirigentes não atuam diretamente sobre os autores imediatos, os quais atuam de forma livre e responsável. As ordens emanadas pelo “homem de trás” são dadas indiretamente aos executores, que muitas das vezes sequer chegam a conhecê-los, direcionando-os à realização dos tipos penais almejados por essas organizações. A perda da proximidade com o fato não constitui, porém, empecilho para a responsabilização dos dirigentes, haja vista o domínio da organização compensar o seu afastamento e inclusive reforçar o grau de responsabilidade daqueles que emitem as ordens e ocupam os postos superiores da cadeia de comando102.
O segundo requisito do domínio da organização baseia-se na atuação do aparato de poder à margem do direito, pois na hipótese de a organização estar ligada a uma ordem jurídica, qualquer ordem ilegal emanada de algum superior poderá caracterizar, eventualmente, uma hipótese de instigação, com responsabilidades individualizadas103.
Somam-se a esses dois outros critérios, um terceiro proposto por Schroeder e acolhido por Roxin, denominado de “disposição incondicional do executor”. O nível de pressão a que é submetido o autor direto dentro de um aparato organizado de poder em comparação a um executor independente, apesar de não ser suficiente para excluir sua culpabilidade nem responsabilidade penal, o predispõe ao cometimento do delito, aumentando consideravelmente a probabilidade do cumprimento de uma ordem e contribuindo, consequentemente, ao domínio do fato pelo homem de trás104.
Essa nova modalidade de autoria mediata teve um grande acolhimento doutrinário e jurisprudencial em diversos países europeus e latino-americanos, mas também foi objeto de críticas.
3.1. A jurisprudência dos tribunais estrangeiros sobre a autoria mediata através de um aparato organizado de poder
Na jurisprudência, o primeiro caso que se tem notícia da aplicação dessa teoria foi no julgamento realizado pelo Tribunal de Apelações argentino para condenar os ex-comandantes das Forças Armadas pelos crimes cometidos contra os nacionais no marco da chamada “guerra contra a subversão”, entre 1976 e 1983.
Consta em referida decisão que esses ex-comandantes emitiam ordens para que os subordinados praticassem os mais variados delitos contra componentes dos grupos guerrilheiros que atuavam no território argentino, tais como sequestros, torturas e homicídios.
A Câmera Federal de Apelações entendeu, com base no artigo 514 do Código de Justiça Militar, que os integrantes das juntas militares deveriam responder como autores mediatos pelos delitos cometidos por seus subordinados, porquanto tiveram o domínio do fato ao controlarem a organização que os produziu. Aduziu, ademais, que os executores dos fatos não tinham tanta relevância, uma vez que, diante da recusa em cumprir as ordens superiores, seriam automaticamente substituídos por outros, fieis ao regime, que as realizariam. Isso demonstra que o plano arquitetado não poderia ser frustrado pela vontade do executor, o qual constituía uma mera engrenagem em uma máquina gigantesca. Como se percebe, houve uma expressa adoção, nessa decisão, da tese roxiniana sobre a autoria mediata através de um aparato organizado de poder105.
A Corte Suprema de Justiça da Argentina, por seu turno, ao analisar referido caso em grau de recurso, não admitiu a teoria do domínio do fato como critério para delimitar a autoria da participação106. O Tribunal entendeu ser inaplicável, na espécie, a figura da autoria mediata através de um aparato organizado de poder, sob o argumento de que aqueles que determinaram as ordens e forneceram os meios materiais para a realização dos delitos de homicídios, privação ilegítima de liberdades, torturas e demais delitos investigados, deveriam ser considerados partícipes como cooperadores intelectuais e materiais, nos termos do artigo 45 do Código Penal argentino, filiando-se claramente à teoria formal-objetiva para proceder à distinção entre autores e partícipes. De acordo com essa decisão, seria um contrassenso afirmar a existência de dois autores responsáveis: o autor mediato e o autor executor107.
Dez anos depois, foram analisadas as situações em que guardas da extinta Alemanha Oriental praticaram entre 1971 a 1989, sob ordem dos membros do Conselho de Defesa Nacional, os chamados homicídios de fronteira, quando “fugitivos da república” tentavam transpor a fronteira em direção ao lado ocidental.
Com vistas a impedir a fuga massiva dos alemães orientais para a República Federal da Alemanha (RFA), a Câmara do Povo e o Conselho Nacional de Defesa estavam encarregados pela defesa nacional da República Democrática Alemã (RDA). O Conselho era o órgão responsável pela construção de diversos obstáculos na linha de fronteira, a exemplo de cercas, arames farpados, minas terrestres e vales, e igualmente por enviar militares especialmente treinados para impedir as fugas, os quais eram informados sobre as punições disciplinares na hipótese desse acontecimento. Diante da recusa de algum cidadão oriental em obedecer às ordens da patrulha para não atravessar a fronteira, esses militares poderiam disparar contra eles. Estima-se que aproximadamente 1.100 (mil e cem) pessoas tenham sido mortas nessas circunstâncias. Há registros de que, após a utilização de minas terrestres, sete pessoas foram mortas, ente 1971 a 1989, ao tentarem escapar para o lado ocidental108.
Três acusados integrantes do Ministério Nacional de Defesa foram condenados como partícipes pelo Landesgericht (LG), tribunal de instância inferior, pela prática desses homicídios. Diante de recurso interposto pela acusação, o Tribunal Superior Federal alemão reformou essa decisão, argumentando que estava configurado aqui um verdadeiro caso de autoria mediata através do uso de um aparato organizado de poder. Os principais fundamentos utilizados em referido acórdão foram: (a) os integrantes do Ministério Nacional de Defesa tinham pleno domínio do fato sobre a realização dos homicídios realizados em decorrência dos disparos de armas de fogo pelos guardas de fronteira e instalação de minas terrestres; (b) os subordinados atuaram de maneira plenamente responsável dentro de uma estrutura verticalizada; e (c) a especial disposição incondicional do executor imediato para realização do tipo penal ante as eventuais sanções disciplinares que poderiam ser-lhe imposta em caso de fugas, o que influenciou em seu poder de decisão.
Em outra oportunidade relacionada às mortes cometidas nas fronteiras internas da antiga República Democrática Alemã (em alemão: Deutsche Demokratische Republik - DDR), três generais foram condenados pelo Tribunal Regional na qualidade de cooperadores, por determinarem a colocação de minas terrestres e autorizarem que soldados de fronteiras atirassem contra aqueles que tentassem ultrapassar as fronteiras, em cumprimento ao disposto na ordem anual 101/79. Assim como já decidira anteriormente, o Tribunal Federal Superior alemão reformou essa decisão para aplicar, mais uma vez, a modalidade de autoria mediata mediante o uso de um aparato organizado de poder e, assim, condenar os integrantes do Conselho Nacional de Defesa pelos homicídios tentados e consumados praticados pelos subordinados109.
Outros três casos sucederam-se e em todos eles o Tribunal Federal Superior alemão responsabilizou os envolvidos pelos homicídios perpetrados na zona de fronteira110.
Mais recentemente, em outubro de 2006, a Sala Penal Nacional111 condenou, à pena de prisão perpétua, Abimael Guzmán, líder da organização criminosa denominada Partido Comunista do Peru – Sendero Luminoso, como autor mediato pela prática dos crimes de terrorismo agravado contra o Estado, homicídios qualificados contra habitantes de Lunamarca e de locais fronteiriços, atentado contra a vida do vice-almirante Gerônimo Cafferata Marazzi e ataque realizado contra as embaixadas de distintos países. Trata-se do primeiro caso que se tem notícia da aplicação, na República do Peru, da tese da autoria mediata por domínio por organização. Nessa decisão foram adotadas várias das ideias defendidas por Roxin sobre esse tema, quais sejam: (a) o modelo de autoria mediata alcança não só os delitos cometidos por aparatos de poder estatal, mas também se dirige para a criminalidade organizada não-estatal, incluindo aquelas voltadas para a prática de terrorismo; (b) o organograma interno da organização Sendero Luminoso caracterizava-se por uma estrutura rigidamente verticalizada e tinha como escopo a prática de atos violadores de direitos humanos fundamentais; (c) o domínio do fato exercido pelo homem de trás ocorre indiretamente por meio do aparato organizado de poder, ao qual os executores estavam subordinados hierarquicamente; (d) a fungibilidade do executor era garantida mediante uma reserva suficientemente grande de pessoas, predispostas em cumprirem as ordens emanadas do alto escalão; e (e) a responsabilidade dos componentes da organização cresce na medida em que ocupam cargos do nível de comando112.
Essa sentença foi confirmada em 14 de dezembro de 2007 pela Segunda Sala Penal Transitória da Corte Suprema de Justiça desse país e pela Corte Suprema de Justiça, em 03.01.2008, sendo utilizados praticamente os mesmos fundamentos da decisão recorrida.
Outros casos emblemáticos julgados pela Sala Penal Especial da Corte Suprema da Justiça peruana estão relacionados aos crimes contra a humanidade praticados durante o mandato do ex-presidente Alberto Kenya Fujimori Fujimori. O Ministério Público local o denunciou como autor mediato dos homicídios qualificados e lesões graves ocorridos nas chacinas de “Barrios Altos” e “La Cantuta”, bem como dos sequestros, agravados pelo trato cruel, de Gustavo Gorriti Ellenbogen e Samuel Dyer Ampudia.
Segundo consta, os executores materiais desses delitos faziam parte do exército peruano e integravam o Destacamento Colina, uma espécie de esquadrão da morte composto por integrantes do Serviço de Inteligência do Exército (SIE) e da Direção de Inteligência do Exército (DINTE), cujo comando era exercido pelo assessor presidencial Vladimiro Montesinos, com a ciência e o aval do Comandante Geral do Exército e da Presidência da República. O objetivo principal desse grupo era a eliminação de pessoas consideradas subversivas ao sistema político à época vigente. Os juízes da Corte Suprema condenaram Fujimori a uma pena privativa de liberdade de 25 (vinte e cinco) anos, por entenderem que o ex-presidente da República foi um dos principais responsáveis pela condução desse programa de exclusão dos suspeitos de terrorismo. Esse foi mais um caso em que se aplicou a teoria do domínio do fato em virtude do domínio da organização nos moldes propostos por Roxin. Os advogados do ex-presidente peruano ainda interpuseram apelação contra essa decisão, argumentando a nulidade do feito, mas a Primeira Sala Penal Transitória da Corte Suprema de Justiça não deu provimento a esse recurso, ratificando os argumentos aduzidos na sentença proferida pela Sala Especial113.
3.2. Críticas à teoria da autoria mediata por domínio da organização
Malgrado a ampla aceitação tanto em sede doutrinária quanto jurisprudencial a respeito da autoria mediata por domínio da organização, ela não está indene de críticas.
A primeira dificuldade enfrentada pela tese roxiniana é no sentido de que essas situações de autoria mediata em razão do domínio da organização constituiriam hipóteses de instigação. Isso porque as ordens emanadas pelos dirigentes dessas organizações incutiriam nos executores apenas a ideia de realização do fato criminoso, cabendo-lhes, porém, a decisão final – livre e autônoma – sobre a sua realização. Conforme essa linha de pensamento, se o autor direto atua de forma plenamente responsável, seria inviável defender que os dirigentes do aparato de poder detenham o domínio do fato delitivo na qualidade de autor mediato, sendo considerando, portanto, meros partícipes.
Sucede que, conforme visto, o fundamento da responsabilização do autor de escrivaninha e dos executores diretos assentam-se em pressupostos distintos: enquanto estes dominam o fato por meio de seu próprio atuar, decidindo sobre a realização, ou não, do fato criminoso (“domínio da ação”), aqueles possuem o domínio da vontade mediante a direção do aparato de poder, emitindo as ordens a serem efetivadas, independentemente do individualismo do executor (“domínio da organização”). Caso este se recuse a cumprir a ordem do homem de trás, isso não constitui óbice para a execução do plano delitivo, haja vista a sua substituição por outrem fiel ao regime114.
De outro giro, responsabilizar de forma atenuada – como mero instigador –, aquele que coordena e determina a prática dos crimes mediante a utilização dos aparelhos organizados de poder seria um enorme contrassenso, uma vez que possui papel determinante para a produção do resultado115.
Outra parcela da doutrina sustenta que o homem de trás que determina ações criminosas no domínio da organização seria, na verdade, coautor. Com base no princípio da responsabilidade, supõe não ser possível a configuração do domínio do fato pelo homem de trás quando o autor direto atua de maneira plenamente responsável. Esse entendimento, conforme acima exposto, parte de uma premissa equivocada, porquanto os fundamentos da responsabilização dos intervenientes decorrem de pressupostos distintos: o domínio da ação e o domínio da organização.
Além disso, a coautoria caracteriza-se por uma convergência de vontades, um entendimento comum, expresso ou tácito, entre os autores, inexistente nos aparatos de poder. Via de regra, os membros do alto escalão, responsáveis pela emissão da ordem, sequer conhecem os executores do fato criminoso, não deliberando nada em conjunto. A execução da ordem funda-se, nesses casos, no comando e na fungibilidade dos executores.
A última crítica dirigida a esse entendimento é que abandona diferenças estruturais entre a autoria mediata e a coautoria. O homem de trás, ao utilizar-se de outrem para o cometimento do fato, encontra-se em uma posição de primazia, de superioridade, ao contrário da coautoria, horizontalmente estruturada, em que os coautores estão em igualdade de condições116.
3.3. Contexto histórico do regime ditatorial brasileiro de 1964 e as graves violações de direitos humanos
Atribuem-se às reformas de base idealizadas durante o mandato do ex-presidente da República João Goulart, conhecido como “Jango” – no centro da qual estava a reforma agrária, a reforma tributária e fiscal, a reforma bancária e a reforma urbana –, a mobilização dos grandes latifundiários, da burguesia industrial paulista, de grande parte da classe média urbana e de um setor conservador da Igreja Católica que resultou, em 19.03.1964, no movimento conhecido como “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Aos 25 de março, aproximadamente 2.000 (dois mil) marinheiros reuniram-se na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro para festejarem o aniversário da sua associação, à época considerada ilegal. O ministro da Marinha ordenou aos fuzileiros navais que os organizadores do evento fossem presos, porém eles acabaram se solidarizando aos marinheiros e descumpriram o que fora ordenado, o que levou o ministro a demitir-se. A ordem de prisão foi posteriormente revogada pelo novo ministro, fato que contou com o aval de “Jango”117. No dia 30 de março, o presidente João Goulart dirigiu-se ao Automóvel Clube do Brasil, em uma reunião em que compareceram 3.000 (três mil) sargentos, onde proferiu um discurso em favor das reformas que objetivava implementar, convocando o apoio dos sargentos e suboficiais. Em 31 de março, os generais Carlos Luiz Guedes, em Belo Horizonte, e Olímpio Mourão Filho, em Juiz de Fora, colocaram suas tropas na rua. Na madrugada de 2 de abril, mesmo diante da permanência de João Goulart em território brasileiro e sua resistência em renunciar, foi declarada, em claro descumprimento às normas constitucionais vigentes, a vacância da Presidência da República por Auro de Moura Andrade, então presidente do Senado Federal, consumando-se, desse modo, o golpe civil-militar designado como “Revolução de 1964” ou como “Contrarrevolução de 1964”. Poucas horas depois, o governo foi reconhecido pelo embaixador Lincoln Gordon e igualmente pelo presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson118.
A partir de então, instaurou-se, por um período de aproximadamente 20 (vinte) anos, a ditadura militar no Brasil, caracterizada pela impossibilidade de alternância no poder e no governo, por uma forte censura aos meios de comunicação, violenta perseguição política, restrição aos direitos políticos, violação de direitos e garantias fundamentais, não reconhecimento das instituições jurídicas e, finalmente, pelo próprio discurso de promessa e compromissos públicos119. Essa repressão foi exercida por vários órgãos estatais, destacando-se as Forças Armadas, as Polícias Civis, Militar e Federal, contando, inclusive, com o apoio financeiro de várias empresas privadas. Henning Albert Boilesen é apontado como um dos empresários responsáveis por financiar a Operação Bandeirante (OBAN), um núcleo de informações e investigações criado e coordenado pelo Exército brasileiro.
Do mesmo modo, foram criados órgãos de inteligências para identificar, catalogar e monitorar as ações dos dissidentes políticos, destacando-se o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), além de órgãos de execução para a realização de buscas e apreensões e interrogatório de suspeitos, a exemplo do Destacamento de Operações e de Informações (DOI)120.
Sob a justificativa de manutenção da estabilidade política e a segurança interna, editaram-se diversas normativas de exceção, como a Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 314, de 13 de março de 1967, e Decreto-Lei 898, de 29 de setembro de 1969) e o Ato Institucional nº 05 (redigido em 13 de dezembro de 1968), os quais suspenderam vários direitos fundamentais, como a liberdade de opinião, expressão, reunião e imprensa. Esses atos normativos também previram a possibilidade de expulsão de qualquer cidadão do Brasil, bem como a vigilância de seus familiares e a indisponibilidade de seus bens.
Os anos seguintes ao golpe civil-militar de 1964 no Brasil, principalmente após a edição do Ato Institucional nº 5, ficaram marcados por uma série de violações massivas e sistemáticas de direitos humanos, como, por exemplo, prisões ilegais e arbitrárias, prática de torturas e violências sexuais, desparecimentos forçados, incluindo a ocultação de cadáveres, e assassinatos dos chamados “comunistas”, indivíduos com ideais políticos contrários aos daqueles preconizados pelo regime, geralmente estudantes, jornalistas e professores. Outras medidas menos drásticas, mas comuns nessa época também foram implementadas, vale dizer, a cassação de mandatos eletivos, o banimento, a censura prévia e indiscriminada, a extinção de partidos políticos e organizações estudantis, a exclusão de professores de instituições de ensino etc.121-122.
No campo jurídico, ministros do Supremo Tribunal Federal que resistiam em atender aos interesses escusos dos militares eram aposentados compulsoriamente123.
Em 1975, após a instauração da ditadura de Pinochet, em uma reunião realizada em Santiago, sob a direção do militar Manuel Contreras, foi implementada a “Operação Condor”, consistente não só na implementação de um sistema secreto de troca de informações acerca dos movimentos e personalidades “subversivos”, bem como em ações cujo objetivo principal era o extermínio de opositores às ditaduras militares que à época vigorava em países sul-americanos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai). Dados de inteligência foram compartilhados entre estes Estados militarizados, bem como realizadas operações extraterritoriais de sequestro, tortura, execução e desparecimento forçado de opositores políticos exilados. Estima-se que mais de 85.000 (oitenta e cinco) mil pessoas foram mortas e sequestradas, 400.000 (quatrocentas mil) torturadas e mais de 1.000 (mil) estrangeiros expulsos do Brasil124. Sob a orientação da doutrina de segurança nacional (DSN)125, era comum nesse período o desaparecimento forçado de opositores políticos – os denominados “subversivos” – seguido de mortes. Percebe-se, assim, que a Operação Condor nada mais foi do que uma reunião complexa e coordenada dos países do cone da América do Sul, com vistas ao cometimento, por meio do aparelho organizado de poder estatal, de graves violações aos direitos humanos126-127.
Diante desse quadro, intensificaram-se manifestações sociais de parentes de vítimas, estudantes, jornalistas e políticos de oposição em defesa de uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos os brasileiros presos e perseguidos politicamente durante o período ditatorial efetivado pelo regime militar. Em 28 de agosto de 1979, foi promulgada a Lei n. 6.683/79 pelo ex-presidente João Batista Figueiredo, excluindo-se, porém, do benefício os dissidentes condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal128.
3.3.1. Caso Guerrilha do Araguaia
“Guerrilha do Araguaia” trata-se de um movimento guerrilheiro iniciado no final da década de 1960 e primeira metade da década de 1970, na região sudeste do Estado do Pará e norte do Tocantins (à época, ainda norte de Goiás), nas proximidades do rio Araguaia, composto em sua grande maioria por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cujo objetivo era a formação de um grupo de resistência rural ao regime militar, com vistas a posterior instalação do comunismo no Brasil129. Como estratégia para a conquista do poder, pretendiam, com base nos fundamentos do maoísmo, uma ampla mobilização das massas, por meio da qual as ações armadas constituiria apenas uma etapa130. Militantes brasileiros do PCdoB, os quais posteriormente tornaram-se guerrilheiros no Araguaia, viajaram para Pequim e Nanquim, a fim de receberem treinamento político e militar131.
Como caminho para a implantação do socialismo, acreditavam que o interior do país era o cenário adequado para a realização do “trabalho de massas” e treinamento em técnicas de guerrilha rural. A região do sul do Pará foi estrategicamente escolhida. A zona de mata fechada que a cercava e as áreas inexploradas pela ocupação humana eram utilizadas para esconder dissidentes políticos procurados por militares nos grandes centros urbanos. A população local vivia em condições próximas da miséria, sob os mandos e desmandos dos latifundiários e roubalheiras de políticos corruptos, um cenário ideal para o início de uma revolta popular132. Em abril de 1972, a estimativa era de que aproximadamente 70 (setenta) pessoas compunham esse movimento, geralmente estudantes133 e profissionais liberais, os quais conviviam harmoniosamente com os camponeses. Enquanto se integravam à comunidade local por meio de atividades relacionadas ao trabalho com a terra, bem como prestando assistência médica e auxiliando os nativos na alfabetização, os militantes guerrilheiros tentavam convencê-los em aderir à sua causa. Aproveitavam também para se ambientarem na selva, estocando comida, munições e remédios em locais estratégicos, assim como para fazer treinamentos militar134.
Antes de ser deflagrada a guerrilha rural revolucionária, os serviços de inteligência das Forças Armadas tomaram ciência, no início de 1972, da existência desse movimento e, baseados nas informações recebidas de guerrilheiros que desistiram da campanha, passaram a mapear a região e planejar o início das operações135.
Entre 1972 e 1975, nove ações militares foram realizadas pelas Forças Armadas: construção do Batalhão de Infantaria de Selva em Marabá (janeiro de 1970); classificação de Marabá como Área de Segurança Nacional (outubro de 1970); Operação Carajás (1970); Operação Mesopotâmia (1971); descoberta dos guerrilheiros no Araguaia (1972); Operação de informações e primeira campanha (abril a junho de 1972); Operação Papagaio (setembro de 1972); Operação Sucuri (maio a outubro de 1973); e Operação Marajoara (outubro de 1973 a 1974), sendo mobilizados cerca de 3.200 militares do Exército, Aeronáutica e Marinha, contando com o apoio de outros servidores de órgãos públicos federais e das polícias militares de Goiás, Pará e Maranhão136. Fuzis, submetralhadoras, bombas incendiárias feitas com napalm, aviões, barcos e helicópteros foram utilizados nessa ação estatal. Tudo ocorreu sigilosamente. A ordem advinda do alto escalão era para que não houvesse prisioneiros137. Como resultado ocorreram inúmeras torturas, execuções sumárias e desparecimentos forçados dos dissidentes políticos e dos camponeses que os auxiliavam na região138. Um dos principais personagens nessa terrível trama de violações de direitos humanos, ocorridas entre maio e outubro de 1973, foi o major do Exército Sebastião Rodrigues de Moura, vulgo “Curió”. Ele participou como adjunto do coordenador da Operação Sucuri, tendo como função a realização de estudos socioeconômicos, o levantamento de informações sobre a área da guerrilha e a sistematização do conjunto das informações repassadas por outros militares sobre os guerrilheiros. “Curió” estabeleceu-se, juntamente com outros militares, em Xambioá como um pseudo-engenheiro civil do INCRA, no Projeto Fundiário Araguaína, utilizando o codinome “Dr. Marco Antônio Luchini”. Infiltrados na sociedade local, eles conseguiram obter informações sobre o paradeiro e as características físicas dos militantes do PCdoB e dos camponeses que os auxiliavam139. Sebastião Curió também foi escalado para coordenar a Operação “Marajoara”, dirigindo diretamente as atividades da base de Bacaba e os interrogatórios dos dissidentes140. Nessa nova fase não se tem notícia de nenhum militante que, detido pelas Forças Armadas, tenha sido encontrado livre posteriormente141.
No início de 1975, como consequência do sigilo absoluto determinado pelo governo sobre os fatos ocorridos na Guerrilha do Araguaia, foram desencadeadas pelas Forças Armadas as Operações “Limpeza” e “Anjos da Guarda”, cujo objetivo era: (a) a supressão de toda e qualquer prova dos crimes relacionados a esse período, sendo incinerados vários acampamentos, além de destruídos e/ou ocultados documentos públicos e cadáveres142; (b) bem como a adoção de medidas assistencialistas a ex-guias do exército com o intuito de que estes não revelassem as informações que possuíam143.
Até os dias atuais segue aberta a ferida de familiares que tiveram parentes desaparecidos ou mortos durante esse enfrentamento. O governo brasileiro, por sua vez, nunca se manifestou oficialmente sobre os acontecimentos ocorridos no sul do Pará, instalando-se um silêncio sepulcral sobre o assunto144-145. Nos anos posteriores ao término desse conflito, parentes e organizações de direitos humanos iniciaram uma peregrinação em busca de informações sobre os desaparecidos políticos, sem êxito, porém146.
Como alternativa buscou-se a propositura, em 1982, de ação civil ordinária perante a Justiça Federal brasileira, solicitando: (a) a quebra de sigilo das informações relativas a todas as operações realizadas no combate à Guerrilha do Araguaia; (b) a prestação de informações pela União sobre o local em que foram sepultados os cadáveres dos dissidentes políticos, mortos durante aquele período, inclusive com a respectiva identificação; (c) que fosse providenciado o traslado das ossadas, o sepultamento dessas em local a ser indicado pelos familiares das vítimas e a documentação necessária para a confecção dos atestados de óbito147.
Diante da morosidade na prestação jurisdicional, a partir de 1991 familiares das vítimas iniciaram expedições no cemitério de Xambioá na tentativa de encontrarem restos mortais dos desparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia, sendo localizadas e identificadas, até o presente momento, apenas as ossadas de Bergson Gurjão Farias e Maria Lúcia Petit da Silva148.
Em agosto de 1995, grupos em defesa de direitos humanos, representando as vítimas e os respectivos familiares, ingressaram com uma denúncia internacional na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), noticiando sobre a interpretação política concedida a Lei 6.683/1979 (Lei de Anistia). Essa manobra jurídica acabava por ampliar a anistia aos agentes militares e, consequentemente, impossibilitava a devida investigação dos crimes contra a humanidade por eles praticados149.
Em março de 2009, foi encaminhada a Demanda da Comissão Interamericana (CIDH) à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em 24 de novembro de 2010, foi proferida a sentença por essa Corte no caso Guerrilha do Araguaia vs. Brasil, na qual se firmou o entendimento de que o Brasil, por ser um Estado-parte signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), tem a obrigação de investigar e responsabilizar, em um prazo razoável, os autores materiais e intelectuais responsáveis por práticas violadoras de direitos humanos, a exemplo dos desaparecimentos forçados, assassinatos e torturas (art. 1º da CADH). Uma ginástica de raciocínio para ampliar os contornos da Lei 6.683/1979, anistiando os militares pelo cometimento de crimes de lesa-humanidade, não só viola frontalmente a Convenção, como também gera a responsabilização internacional do Brasil de investigar e punir os responsáveis. Assim como a anistia, nenhum outro instituto que impeça a devida persecução penal referente a esses graves fatos, tais como a prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada e ne bis in idem, pode servir de obstáculo. Assentou-se ainda que o procedimento investigatório deve contar com “todos os meios técnicos e científicos possíveis”, como também possibilitar a ampla participação das vítimas na investigação. A Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou, ademais, que as ações penais provenientes desses fatos contra supostos responsáveis que sejam ou tenham sido funcionários militares, sejam propostas na justiça ordinária, e não na justiça militar150.
Por possuírem efeitos definitivo, vinculante e executivo, as decisões emanadas da Corte Interamericana devem ser cumpridas pelos diversos órgãos componentes do Estado-parte signatário de um tratado internacional, como é o caso da Convenção Americana. Nesse contexto, os diversos poderes de nosso país, sobretudo o Judiciário, atuam como importantes protagonistas diante a obrigação de zelar para que normas de direito interno contrárias ao objeto e finalidade de um determinado tratado internacional não se sobreponham a este. Fala-se, assim, no exercício de um “controle de convencionalidade” a ser realizado, ex officio, pelos magistrados entre as normas internas e a Convenção Americana, de maneira que sempre deverá ser levada em conta não só as disposições contidas no tratado, mas também a interpretação conferida pela Corte Interamericana151. Caso contrário, deve processar-se queixa ou reclamação perante a Corte Interamericana, a quem cabe dar a última palavra sobre a necessária observância do tratado pelo Estado-parte152.
O Supremo Tribunal Federal, em abril de 2010, ao analisar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153/DF, discutiu a validade da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79) apenas sob o prisma da compatibilidade desse ato normativo com a Constituição Federal brasileira. Não avançou na questão do controle de convencionalidade. Por esse motivo, na sentença proferida no caso “Guerrilha do Araguaia”, a Corte Interamericana enfatizou que essa decisão do STF não possui qualquer eficácia no plano jurídico internacional, uma vez que a Lei de Anistia, por violar tratados internacionais, principalmente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, não pode ser aplicada internamente153-154.
Pois bem. Aos 23 de fevereiro de 2012, o Ministério Público Federal, por meio dos Procuradores da República com atuação no Município de Marabá/PA, ofereceu denúncia em desfavor de Sebastião Curió Rodrigues de Moura, vulgo “Dr. Luchini”, por promover, mediante sequestro, a privação – em caráter permanente – da liberdade das vítimas Maria Célia Corrêa, a “Rosinha”, Hélio Luiz Navarro de Magalhães, vulgo “Edinho”, Daniel Ribeiro Callado, o “Doca”, Antônio de Pádua, vulgo “Piauí” e Telma Regina Cordeira Corrêa, conhecida como “Lia”, todos militantes da Guerrilha do Araguaia, submetendo-as a grave sofrimento físico ou moral155. Segundo consta, Sebastião Curió atuou como comandante operacional da última fase de repressão a esse movimento, conhecida como Operação “Marajoara”, tendo ordenado e participado ativamente da execução do sequestro das vítimas acima indicadas, inclusive interrogando-as pessoalmente e concorrendo para os maus-tratos que lhes foram infligidos. Documentos e relatos testemunhais corroboram a versão de que Sebastião Curió possuía total domínio dos fatos, já que determinou direta ou indiretamente a privação de liberdade das cinco vítimas referidas, submetendo-as a maus tratos, assim como ordenando que seus subordinados o fizessem. Além disso, ele era um dos principais autores intelectuais das violações de direitos humanos cometidas sistematicamente e de forma generalizada pelas tropas militares, a fim de reprimir os dissidentes políticos do regime. O Parquet federal o denunciou pela prática, por cinco vezes, do crime de sequestro qualificado por maus tratos, sujeitando-o às penas do crime previsto no art. 148, § 2º, do Código Penal156.
Mesmo sendo amplamente demonstrada pelo MPF a observância de todas as obrigações estipuladas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil no julgamento do “Caso Gomes Lund e outros vs Brasil”, reabrindo a possibilidade de investigação e punição dos crimes contra a humanidade praticados durante o regime ditatorial, o Juízo da 2ª Vara da Subseção Judiciária de Marabá/PA rejeitou liminarmente a denúncia, por entender, em síntese, seguindo decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, que seria aplicável a Lei de Anistia aos crimes cometidos pelos militares157. Essa decisão, além de ser conivente com a denominada “legalidade autoritária”, viola novamente a Convenção Americana de Direitos Humanos, podendo ensejar nova condenação do Brasil no plano internacional e, até mesmo, a exclusão do País da Organização dos Estados Americanos158. Em mais uma oportunidade, o Poder Judiciário brasileiro não exerceu o controle de convencionalidade de citada Lei de Anistia com a CADH.
Aos 27 de janeiro de 2015, O Ministério Público Federal no Pará apresentou nova denúncia em relação a fatos delituosos ocorridos durante a Guerrilha do Araguaia. O tenente-coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel é apontado como autor dos homicídios qualificados praticados, por motivo torpe e mediante emboscada, em desfavor dos militantes André Grabois, João Gualberto Calatrone e Antônio Alfredo de Lima, e pelo crime de ocultação de cadáveres. Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o major Curió, por sua vez, por coordenar ações dirigidas para a ocultação dos restos mortais das mencionadas vítimas, concorreu tão-somente para a prática do delito previsto no artigo 211 do Código Penal, não lhe sendo imputado o homicídio em razões de essas ações ocorrerem em momento posterior e em contexto fático distinto.
Documentos acostados à denúncia e relato testemunhais, vários deles citados no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, corroboram a prática de ilícitos penais praticados pelos envolvidos159. Assim como no caso citado anteriormente, seguindo as determinações constantes na decisão da CIDH, o Ministério Público Federal adota o entendimento de que os crimes perpetrados pelos militares durante a “Guerrilha do Araguaia” configuram crimes de lesa-humanidade e, portanto, são inalcançáveis por qualquer um daqueles institutos despenalizadores, como a anistia e a prescrição. Um dado interessante a ser realçado é que os procuradores fazem expressa menção na denúncia do “uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver”160. Resta aguardar qual será o posicionamento adotado pelos juízes e tribunais brasileiros nesse caso específico.
3.3.2. Caso Vladimir Herzog
Vladimir Herzog, militante do Partido Comunista Brasileiro e diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, era um dos grandes opositores políticos do regime ditatorial estabelecido no Brasil entre os anos 1964 a 1985. Na noite de 24 de outubro de 1975, foi procurado por agentes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército (DOI/CODI) nas dependências da emissora, os quais receberam ordens de superiores no sentido conduzi-lo para prestar esclarecimentos sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro e desenvolvimento de eventuais “atividades criminosas”. Ante a argumentação de que estava finalizando a edição de um telejornal, comprometeu-se a comparecer no outro dia no DOI/CODI do II Exército161.
Aos 25 de outubro de 1975, por volta das 08h00, cumprindo o combinado, Vladimir Herzog dirigiu-se à Rua Tomás Carvalhal, 1030, Capital, São Paulo, endereço do quartel general do DOI/CODI, onde foi mantido preso sem qualquer ordem judicial, juntamente com outros dois jornalistas, George Benigno Jatahy Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder. Herzog negou possuir qualquer ligação com o PCB, fato que motivou sua tortura mediante choques elétricos pelos agentes. Os outros dois jornalistas que estavam em companhia dele nas dependências do DOI/CODI escutavam, de um corredor contíguo, o som alto de um rádio, prática corriqueira utilizada pela polícia para abafar os gritos do(s) torturado(s), bem como os gritos de Herzog e as ordens para que trouxessem uma máquina de choques elétricos. No final da tarde desse mesmo dia, o Comandante do DOI/CODI informou ao público em geral sobre o suicídio de Vladimir Herzog. Segundo nota apresentada pelo Comando do II Exército, após ser acareado com aqueles dois jornalistas, Herzog teria admitido seu vínculo com o PCB. Por volta de 16h00, ao ser novamente procurado, ele foi encontrado morto com um pedaço de pano e portando um pedaço de papel, no qual assumia a participação no partido162.
Foi instaurado o Inquérito Policial Militar nº 1.153/75 para a devida apuração dos fatos, resultando na versão de que ocorrera suicídio. Por esse motivo, aos 08 de março de 1976, foi determinada pela Justiça Militar o arquivamento do IPM163.
Sucede, porém, que o laudo de exame de corpo de delito e um laudo complementar, confeccionados pelo Instituto Médico Legal de São Paulo sobre a causa mortis, apresentavam notórias contradições. Segundo o relato dos peritos, Herzog teria se enforcado utilizando a cinta do macacão que trajava, discrepando do procedimento rotineiro adotado pelo DOI-CODI, consistente na retirada de qualquer acessório que colocasse em risco a integridade física dos presos. Consta ainda nesses laudos que essa tira de pano estava amarrada em uma grade a 1,63 m, altura incompatível em relação à estatura de referido jornalista para que ele conseguisse suicidar-se por enforcamento. O mais grave de tudo isso é que mais tarde, além de ser revelado que Harry Shibata, um dos peritos signatários do laudo, sequer havia examinado o cadáver, foram igualmente constatadas a existência de marcas de estrangulamento no pescoço do jornalista, afastando, portanto, a tese do suicídio164-165.
Familiares de Vladimir Herzog ingressaram em 1976 com uma demanda em desfavor da União, pleiteando o reconhecimento da responsabilidade do réu pela detenção ilegal, torturas sofridas e morte do jornalista, com o consequente dever de indenizar. Em outubro de 1978, o juiz federal Márcio Moraes não só julgou procedente o pedido, como determinou a devida investigação das circunstâncias que o levaram a morte e a identificação dos respectivos autores166.
Diante das declarações prestadas à “Revista Isto É, Senhor”, edição de 25 de março de 1992, por Pedro Antônio Mira Grancieri, o “Capitão Ramiro”, investigador da Polícia Civil de São Paulo requisitado para atuar no DOI/CODI, foi requisitada, pelo Ministério Público paulista, a reabertura do inquérito policial à Polícia Civil, com vistas à retomada das investigações referentes ao homicídio praticado em desfavor de Herzog. Ocorre que a Quarta Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar habeas corpus impetrado em favor de Pedro, determinou o trancamento do Inquérito Policial ante a ausência de justa causa, suporte probatório mínimo que deve lastrear toda acusação penal, uma vez que os crimes cometidos teriam sido objeto de anistia, consoante os termos da Lei nº 6.683/79. O Superior Tribunal de Justiça manteve essa decisão ao denegar novamente o habeas corpus e não conhecer de recurso especial interposto (Habeas Corpus nº 131.798/3-4 – SP, j. 13/10/92, 4ª Câmara Criminal, unânime, Rel. Min. Péricles Piza).
Aos 05 de março de 2008, de acordo com o ofício nº GABPR 12-EAGF/SP-000109/2008, foi apresentada representação de integrantes da Procuradoria da República ao Coordenador da Divisão de Procedimentos Extrajudiciais Criminais de tal órgão em São Paulo, solicitando a determinação de providências cabíveis para a persecução penal dos responsáveis pelos crimes praticados contra Vladimir Herzog, por constituírem crimes contra a humanidade e, consequentemente, serem imprescritíveis167.
Redistribuída tais peças de informação, outro órgão oficiante da Procuradoria da República manifestou-se pelo seu arquivamento, sendo homologado judicialmente tal pedido aos 09 de janeiro de 2009 pelo Juízo Federal da 1ª Vara Federal Criminal, do Júri e das Execuções Penais de São Paulo. Os argumentos principais utilizados em referida decisão foram: (a) a existência de coisa julgada material constituiria um óbice para a reabertura das investigações, em virtude do arquivamento de anterior inquérito policial pela Justiça Estadual, mesmo diante da incompetência absoluta deste juízo; (b) não-subsunção dos fatos narrados nas peças de informação ao chamado delito contra a humanidade, por não haver tipificação válida no ordenamento jurídico em vigor no direito brasileiro; e (c) prescrição da pretensão punitiva dos delitos que porventura poderiam ensejar incriminação168.
Em 10 de julho de 2009, o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional, a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, o Centro Santo Dias da Arquidiocese de São Paulo e o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo apresentou petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, alegando a responsabilidade internacional do Brasil pelos crimes praticados em desfavor de Vladimir Herzog, em razão da violação de diversos artigos da Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres do Homem; da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, bem como a contínua impunidade dos fatos devido à interpretação equivocada da lei da anistia pelos juízes e tribunais brasileiros.
Em novembro de 2012, referida petição foi admitida pela Comissão Interamericana, para que fosse investigada a responsabilidade internacional do Brasil pela detenção arbitrária, tortura e sequestro cometidos por agentes militares do DOI/CODI em desfavor de Vladimir Herzog169. Muito provavelmente, este será mais um caso em que nosso país será condenado pela Corte Interamericana por não processar os agentes responsáveis pelo cometimento de crimes contra a humanidade durante a ditadura militar de 1964170.