Capa da publicação Domínio da organização e crimes da ditadura brasileira
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A autoria mediata por domínio do fato mediante um aparato organizado de poder e sua aplicação no Direito Brasileiro

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31/03/2025 às 08:29
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4. CONCLUSÃO

Como se demonstrou ao longo desse artigo, a responsabilidade pelas violações de direitos humanos em países que vivenciaram regimes totalitários decorreu, principalmente, de ações ou omissões de órgãos do Poder Executivo. Agentes do alto escalão coordenavam e determinavam, por meio da estrutura organizada de poder que dirigiam, a prática de variados delitos contra os chamados “subversivos”, indivíduos contrários ao sistema político à época vigente. Posteriormente, vários deles foram investigados, julgados e condenados por tribunais de diversos Estados estrangeiros pelo cometimento de crimes contra a humanidade, seguindo a orientação de convenções, tratados internacionais e decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em uma grande parte dessas condenações, a teoria do domínio da organização, desenvolvida por Claus Roxin, foi adotada.

A ditadura civil-militar implementada no Brasil entre 1964 a 1985 atuou de forma intensa e sistemática na repressão aos dissidentes políticos. As Forças Armadas, com o auxílio dos DOI/CODI, contando com cadeias de comando que se estendiam até a Presidência da República, planejaram, organizaram e coordenaram uma política estatal de violações de direitos humanos, o que resultou em diversas prisões arbitrárias e ilegais, torturas, violências sexuais, desaparecimentos forçados, homicídios e ocultação de cadáveres.

Infelizmente, uma interpretação equivocada construída pelo Poder Judiciário brasileiro acerca da lei de anistia, promulgada em nosso país em 1969, durante a fase de declínio do governo militar, somada à argumentação de que todos esses crimes já estariam prescritos, constituiriam obstáculos intransponíveis para a devida investigação e condenação dos respectivos culpados.

Além de violar frontalmente o artigo 1º, item 2, da Convenção da ONU de 1968, que dispõe sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, independentemente da data que tenham sido cometidos, esse entendimento não encontra esteio em nenhum dos dispositivos legais constantes na Lei nº 6.683/79, cujo objetivo final é a proteção do Estado contra aqueles que pretendiam ofendê-lo, e jamais com a intenção de acobertar os crimes cometidos pelos militares.

Por essas e outros razões é que a Corte Interamericana considera inválidas e inaplicáveis qualquer lei de anistia, editada com a finalidade de abranger crimes como o genocídio, crimes de lesa-humanidade ou contra os direitos humanos. A interpretação concedida por essa Corte tem por escopo não só a proteção das vítimas, mas também impedir que casos semelhantes tornem a se repetir ao longo da história. Tanto é que recentemente o Brasil foi condenado no caso “Julia Gomes Lund e outros vs. União Federal”, mais conhecido como Guerrilha do Araguaia”, correndo sérios riscos de ser responsabilizado em um futuro breve em outras situações semelhantes.

Nesse contexto de graves violações de direitos humanos perpetrados durante o regime ditatorial instaurado em 1964, os requisitos configuradores para a aplicação da teoria do domínio do fato mediante o uso de um aparelho de poder organizado, proposta por Roxin, se fazem presentes.

A estruturação rigidamente hierarquizada do aparato de poder, sua dissociação em relação ao Direito e a fungibilidade dos executores diretos do delito foram marcas características da ditadura militar. As decisões concernentes à repressão e eliminação dos dissidentes políticos ao regime instaurado foram tomadas no âmbito do alto escalão do Estado, sobretudo pela presidência da República e pelos ministérios militares, cujas ordens emanadas eram dirigidas aos órgãos subalternos responsáveis pela operacionalização dessa política de extermínio, o qual mobilizou milhares de agentes estatais para a prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias, torturas, sequestros, homicídios e ocultações de cadáveres.

Com a condenação do país pela Corte Interamericana no caso “Guerrilha do Araguaia” e a entrega do relatório no final de 2014 pela Comissão Nacional da Verdade, um importante passo já foi dado na direção do reconhecimento do direito à verdade, à memória e à justiça para as vítimas e seus familiares. Mas ainda não é o suficiente! O Supremo Tribunal Federal tem uma nova oportunidade de revisar seu posicionamento em relação à extensão da anistia aos militares no julgamento da ADPF 320/DF, cujo objeto é o arquivamento ou prosseguimento do processo em que cinco militares são acusados de envolvimento na morte e desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971. A depender da decisão adotada, os ministros dessa Colenda Corte podem não só recuperar a credibilidade do Brasil no cenário internacional, mas também contribuir para a consolidação de um Estado Democrático de Direito realmente preocupado com a efetivação dos direitos humanos. Caso contrário, a não investigação e eventual responsabilização dos agentes estatais perpetuará esse cenário de prática de prisões ilegais e arbitrárias, torturas, homicídios, sequestros e ocultação de cadáveres por agentes estatais ligados às forças de Segurança Pública. Para finalizar, cito as palavras de Vladimir Safatle, em artigo intitulado “A verdade enjaulada”:

A mais brutal de todas as violências é, sem dúvida, a violência da inexistência. Esta é uma forma muito pior de extermínio, pois não se trata apenas da eliminação física. Ela é uma eliminação simbólica, desta que afirma que nada existiu, que a violência não deixou traços e indignação. Neste exato momento, o Brasil é vítima, mais uma vez, dessa forma mais brutal de violência171.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Jorge Antônio Cheim Pires

Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC, Universidade Livre de Ciências e Artes – ULCA e Centro Universitário Internacional – UNINTER. Especialista em Direito Processual Civil (Unisul – IBDP – Rede LFG). Delegado da Polícia Civil do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Jorge Antônio Cheim. A autoria mediata por domínio do fato mediante um aparato organizado de poder e sua aplicação no Direito Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7943, 31 mar. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55938. Acesso em: 5 dez. 2025.

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