Com o advento da Lei nº 10.628, de 24.12.2002, que alterou a redação do art. 84 do Código de Processo Penal implicando, entre outras inovações, no alargamento das hipóteses de foro privilegiado por prerrogativa de função, veio à tona a questão sobre a possibilidade, ou não, de reconhecimento e declaração de inconstitucionalidade de uma norma, conforme o caso, pelos magistrados e tribunais de primeira e segunda instâncias após a negativa da concessão de liminar nos mesmo sentido em pedido formulado em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, não resignado com a promulgação da indigitada norma, a CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público ajuizou em 27.12.2002 a Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido liminar, autuada sob o nº 2797, pleiteando o expurgo dos §§ 1º e 2º do art. 84 do Código de Processo Penal do ordenamento jurídico pátrio.
Recebida a ADIn, em 7.1.2003, o então Ministro responsável, Sr. Ilmar Galvão, negou a liminar por não vislumbrar o requisito periculum in mora – perigo da demora.
Desde então, principalmente em ações versando sobre a prática, em tese, de atos de improbidade administrativa por ex-funcionários públicos, os agentes do Ministério Público nacional vêm pleiteando junto ao Poder Judiciário, incidenter tantum, o reconhecimento e a declaração preliminar da inconstitucionalidade da pré-citada Lei nº 10.628/2002, obtendo êxito na quase totalidade dos pedidos.
Frente a esta realidade viva nos Tribunais distribuídos por todo o país, inúmeros juristas vêm formulando teses contrárias a essa postura, merecendo destaque no presente trabalho a já mencionada questão atinente à possibilidade, ou não, dos magistrados e Tribunais comuns adotarem essa conduta, julgando o pedido preliminar de reconhecimento e declaração da inconstitucionalidade da norma que expandiu a previsão anteriormente existente regulando o foro privilegiado por prerrogativa de função após a negativa da concessão da liminar pleiteada na ADIn 2797. [1]
Entre os possíveis argumentos hipoteticamente plausíveis em defesa daqueles que entendem que não cabe análise do tema pelos Tribunais comuns, está o reconhecimento da supremacia da decisão proferida pelo Pretório Excelso quando da negativa do pedido liminar. Isto porque, segundo essa exegese, aquela decisão, por si só, vincularia imediatamente os demais juízes e Tribunais, no que poderia ser chamado de efeito espelho – reflexo simétrico – do que ocorreria em caso da concessão do pedido liminar em sede de ADIn, que reconhecidamente tem efeito erga omnes e vinculante, limitando a atuação dos magistrados a quo. Nada obstante o impacto imediato decorrente desse entendimento, tal fundamento não merece prosperar.
Quando da análise da pertinência, ou não, do pedido liminar em ADIn, compete ao Ministro encarregado analisar: (i) a plausibilidade do pedido (fumus boni iuris); (ii) a existência de eventual risco decorrente da demora do julgamento (periculum in mora); (iii) a irreparabilidade ou insuportabilidade dos danos emergentes do próprio ato impugnado, e; (iv) a necessidade de garantia ulterior da eficácia das decisões, o que impõe uma decisão fundamentada. Logo, vê-se claramente que as hipóteses concessão/negativa da liminar são absolutamente diversas. A primeira se justifica jurídico-politicamente, residindo aí os motivos de seu efeito erga omnes e vinculante, ou seja, no próprio atendimento aos requisitos legais, ao passo que a segunda – negativa da concessão da liminar – carece de qualquer motivação positiva que justifique o alargamento de seu alcance, pelo que, o chamado efeito espelho é mero sofisma insuscetível de aplicação pelo Poder Judiciário.
Outro argumento utilizado contra a possibilidade de apreciação do pedido pelos magistrados de instâncias ordinárias é o de que a negativa do pedido de concessão liminar não admite recurso, razão pela qual a decisão tem efeito imediato-temporário (até decisão definitiva do mérito) contra a parte que invocou a atuação da Suprema Corte, razão pela qual qualquer pretensão da parte então vencida de atingir os efeitos negados por outro meio seria mera manipulação ardilosa do sistema jurídico, deflagrando atentado à dignidade da justiça.
Razão não assiste também aos defensores dessa tese.
O que se busca com o ajuizamento de uma Ação direta de Inconstitucionalidade é a análise da norma em tese, in abstrato, independente de sua aplicação ao caso concreto. Paralelamente, em havendo prejuízo real de pessoa natural ou jurídica, desde que subsumida ao ordenamento jurídico pátrio, estão estes sempre autorizados a recorrerem ao Poder Judiciário, ainda que haja sido parte em uma ADIn, conforme consta claro no texto constitucional.
Feitas essas considerações ilustrativas temos que o fundamento para o cabimento da análise pelos magistrados e Tribunais de primeiro e segundo grau de um pedido de reconhecimento e declaração preliminar, conforme o caso, da inconstitucionalidade de uma norma, mesmo após a negativa da concessão de pedido liminar em ADIn, encontra-se na própria Constituição Federal e em normas infra-legais, tais quais a Lei nº 9.868/1999 e no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Para a surpresa a questão é superada não pela análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade, e sim pela análise da Ação Declaratória de Constitucionalidade, cujo critério de aplicabilidade é o mesmo previsto para o primeiro, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF – Pleno – Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 1-1/DF – questão de ordem – Relator Ministro Moreira Alves) e posteriormente corroborado à luz da edição da já mencionada Lei nº 9.868/1999.
Assim como ocorre na ADIn, a ADC admite o pedido liminar ou cautelar, com o acréscimo da exigência, como requisito de seu deferimento, da apresentação comprovada de divergência jurisprudencial entre os Tribunais existentes no país.
Nesse diapasão, a intenção com o pedido liminar em sede de Ação Declaratória de Constitucionalidade é justamente o de evitar-se o agravamento do estado de insegurança ou incerteza jurídica. O que significa, em última análise, que o pedido de liminar em uma ADC visa evitar que os Tribunais espalhados no território nacional decidam contraditoriamente alarmando os cidadãos e o Estado. Conseqüente e obviamente a não concessão pelo Supremo Tribunal do pedido liminar, seja pela pobre ou faltante demonstração da divergência jurisprudencial, seja pela inexistência do atendimento aos outros requisitos anteriormente elencados, ou a falta do pedido liminar por aqueles legitimados a fazê-lo, significa permitir que os magistrados e Tribunais comuns prossigam julgando os pedidos de reconhecimento ou declaração preliminar de inconstitucionalidade de uma norma, conforme o caso, afastando a aplicação de normas que entenderem inconstitucionais ou as aplicando como melhor em direito.
Nesta esteira, considerando que ambas as ações demandam tratamento idêntico, também por seu caráter dúplice/ambivalente, atingindo em qualquer hipótese o mesmo resultado – declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de uma norma -, seja pela decisão de procedência ou improcedência de qualquer delas, forçoso e inevitável ser absolutamente cabido aos Tribunais de segunda instância e aos magistrados em geral, uma vez devidamente provocados e existindo os motivos de seus convencimentos, reconhecerem e/ou declararem, conforme o caso, a inconstitucionalidade de uma norma, mesmo após a negativa, no mesmo sentido, pleiteado anterior e liminarmente em ADIn ajuizada no Supremo Tribunal Federal.
Admitir tese contrária equivale, em última instância, a privilegiar uma em detrimento da outra – Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade -, e ao assim proceder distorcer e macular a dupla função constitucional vislumbrada por Canotilho: (i) garantia do existente e; (ii) programa ou linha de direção para o futuro, considerando que ambos são instrumentos constitucionais gêmeos, criados a fim de assegurar o mínimo em um Estado Democrático de Direito, fincado em uma Constituição rígida e predominante.
Notas
1 Outra tese fortemente invocada e defendida contrária a adoção desse posicionamento pelos magistrados e Tribunais de primeira e segunda Instâncias é que eles estariam refutando uma norma em tese, o que é absolutamente ilegal no controle difuso de constitucionalidade. Essa tese é acompanhada pelo autor desse trabalho.