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Necessidade de justa causa para a instauração de processo administrativo disciplinar.

Impossibilidade do procedimento genérico para que no seu curso se apure se houve ou não falta funcional

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31/08/2004 às 00:00
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IV – PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E DA SEGURANÇA JURÍDICA RETIRAM DO ADMINISTRADOR PÚBLICO A FACULDADE DE INSTAURAR PROCEDIMENTO DISCIPLINAR SEM JUSTA-CAUSA

O processo disciplinar, segundo o art. 148, da Lei nº. 8.112/90, é o instrumento destinado a apurar a responsabilidade do servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre vinculado.

Assim, deverá haver falta administrativa, catalogada como tal no Estatuto, para que seja iniciado o procedimento disciplinar.

A boa-fé e a segurança jurídica retiram do administrador público a faculdade da instauração do procedimento administrativo genérico, sem que haja aparente transgressão aos princípios disciplinares que regem a vida funcional.

Não funciona o processo disciplinar como "uma caixa de surpresas" onde a ausência de materialidade de uma possível falta funcional poderia proporcionar a instauração de inquérito administrativo para devassar a vida do servidor, no afã de se encontrar algo que possa ser usado contra ele.

Não é assim que funciona.

O princípio da boa-fé no direito administrativo exige do agente público, no exercício de seu munus a lealdade, tanto com a sua repartição, como, sobretudo, com o administrado.

Tivemos a oportunidade de sublinhar em outra oportunidade:

"Assim, a idéia de uma conduta leal e confiável (treu und glauben) - substrato da boa-fé - incorpora-se na essência do direito, para viabilizar a Justiça e a segurança das relações intersubjetivas, figurando como verdadeiro dever do agente público manter aceso esse salutar princípio no cotidiano.

A conexão entre a idéia de direito e o conteúdo ético – necessário, que rege o Princípio da Boa-fé, faz parte de uma perspectiva moderna que busca a lealdade como forma de eficiência e confiança da Administração Pública no relacionamento com a sociedade.A boa-fé objetiva é reconhecida e consagrada tanto na doutrina nacional como pela jurisprudência, cujo posicionamento se finca na idéia de que os atos privados e os públicos devem ser efetuados dentro de um padrão de lealdade e de ética.

Nessa moldura, mesmo não existindo dispositivo legislativo direto, o princípio sub oculis é informativo dos atos públicos, não se admitindo, em hipótese alguma, que o servidor público paute seus atos funcionais descompassados com a boa-fé e a lealdade." [15]

Pois bem, nos processos administrativos, o art. 2º da Lei nº. 9.784/99 exigiu em seu inciso IV que o Poder Público atue segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, o que significa dizer, que o sentimento puro, descomprometido com pensamentos pessoais, deverá imperar quando da decisão de instauração de procedimento disciplinar. Ou seja, comprovada a má-fé ou a falta de justa causa para a instauração do procedimento disciplinar, é retirada a faculdade do Poder Público em promover a apuração através do aludido inquérito administrativo genérico, sem elementos ou substâncias:

"Antes de encerrar este tópico, não é despiciendo mencionar duas advertências. A primeira delas é a de que a obrigação de atuar de conformidade com a boa-fé não se dirige somente do servidor para com a Administração, atuando também na direção inversa. Repugna a ordem jurídica que a Administração leve a cabo deslealdade em detrimento de quem foi investido para agir." [16]

Deverá, portanto, a boa-fé estar presente nas decisões administrativas, inclusive a que concerne a da instauração de procedimento disciplinar.

Vê-se, assim, que faltará objeto para apurar-se denúncias ou fatos que não configurem evidentemente infração disciplinar ou ilícito penal.

Abra-se parênteses para registrar, mais uma vez, a posição de José Armando da Costa: [17]

"... sem esses conectivos pré-processuais, resta ilegítima a iniciativa da administração pública consistente na abertura desses expedientes apuratórios de faltas disciplinares, pois que tais elementos prévios indiciários (fumus boni iuris) não apenas constituem uma exigência jurídico-processual sinalizadora da plausibilidade de condenação do servidor imputado, como também configura uma garantia em favor deste, que não poderá, sem o mínimo de motivação, ser submetido a inquietadores procedimentos como tais. Não fosse a exigência do concurso inicial dos referidos adminículos indiciatórios (princípio de prova), a segurança jurídica dos servidores públicos desceria a patamares desprezíveis e instáveis, o que arrostaria de modo brutal e frontal o princípio constitucional do devido processo legal, uma vez que a instauração de tais procedimentos disciplinares se torna legítima e devida ante a existência desses indicadores pré-processuais."

Portanto, sem indícios ou provas, tanto o princípio da boa-fé como o da segurança jurídica, retiram do administrador público a possibilidade de instaurar procedimento disciplinar contra o servidor público.

A segurança jurídica funciona in casu como o dever/poder do Estado em proteger a sociedade, sem exceção, da inviabilidade da honra e da devida privacidade dos indivíduos, não podendo ser rompida por atos administrativos desarrazoados ou que guardam em seu núcleo o sentimento pessoal de vingança.


CONCLUSÃO

Sem justa causa para a instauração de processo administrativo disciplinar, não estará legitimado o poder público em promover procedimento genérico ou com falsa motivação, para apurar inexistente falta funcional.

A evolução do direito administrativo traz a segurança jurídica como um dos traços marcantes dos dias atuais. Não se admitindo mais que a força do arbítrio prevaleça a qualquer modo.

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A presunção de inocência [18] milita em favor de todos, não podendo ser descartada no procedimento disciplinar, pois compete à Administração provar a irregularidade ou a culpa do servidor. [19]

Sendo assim, necessário se faz que haja justa causa na instauração do processo disciplinar, pois senão o mesmo será natimorto, pronto para ser fulminado pelo Poder Judiciário.


NOTAS

1 Cf. art. 123, da Lei nº. 8.112/90.

2 "Encontra-se a segurança jurídica toda vez que se observa a legalidade, a impessoalidade, a finalidade, a moralidade administrativa. Dessa maneira, podemos dizer que a grande segurança da Administração e Administrado no processo administrativo consiste na observância do devido processo legal, vale dizer, no respeito às linhas traçadas pela lei reguladora, bem como no cumprimento dos postulados básicos que já examinamos." (José dos Santos Carvalho Filho, Processo Administrativo Federal, Lumen Juris, 2001, p. 57)

3 "Necessária é, para a aplicação do poder disciplinar, a ocorrência de ‘irregularidade no serviço’, quer dizer, explicitamente ‘falta aos deveres da função’ e não, portanto, mera insuficiência profissional genérica." (J. Guimarães Menegale, O Estatuto dos Funcionários, vol. II, Forense, 1962, p. 637.

4 J. Guimarães Mengale, O Estatuto dos Funcionários, volume II, Forense, 1962, p. 638.

5 José Armando da Costa, Controle Judicial do Ato Disciplinar, Brasília Jurídica, ps. 202/203.

6 Adilson Abreu Dallari, Limitações à Atuação do Ministério Público, Malheiros, 2001, p. 38.

7 "O jornalista transforma, de bom grado, o inquérito judiciário num duelo simbólico entre o juiz de instrução e o acusado, no qual o arbitro não é mais o juiz, mas sim o jornalista." (Antoine Garapon, O Juiz e a Democracia, Editora Revan, 1996, p. 80).

8 Luis Roberto Barroso, Temas de Direito Constitucional, tomo II, Renovar, 2002, p. 553.

9STF, HC nº. 67.039/RS, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 24/11/89.

10 STF, HC nº. 71.466/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 19/12/94.

11 Luiz Fabião Guasque e Denise Freitas Fabião Guasque, O Ministério Público e a Sociedade, Freitas Bastos, p. 19.

12 Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, 2002, Atlas, p. 224.

13 José Armando da Costa, Controle Judicial e Ato Disciplinar, Ed. Brasília Jurídica, 2002, p. 203.

14 Caio Tácito, O Abuso de Poder Administrativo no Brasil, 1959, Departamento Administrativo do Serviço Público e Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, p. 17.

15 Mauro Roberto Gomes de Mattos, O Contrato Administrativo, 2ª ed., Ed. América Jurídica, 2002, p. 160.

16 Edílson Pereira Nobre Junior, O Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Sérgio Antônio Fabris, Editor, 2000, p. 261.

17 José Armando da Costa, ob. cit. ant., p. 203/204.

18 "Uma das garantias mais expressivas do processo penal vigente nos países democráticos é a de que não pode haver processo sem um princípio de prova, sem um fumus boni iuris." (Weber Martins Batista, Liberdade Provisória, Forense, 2ª ed., 1985, p. 27).

19 "(...) II – No Processo Administrativo Disciplinar o ônus da prova incumbe à Administração." (AGU – Parecer nº. AGU/MF – 04/98 (Processo 10168.001291/95-93, de 23 de abril de 1998.)

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Necessidade de justa causa para a instauração de processo administrativo disciplinar.: Impossibilidade do procedimento genérico para que no seu curso se apure se houve ou não falta funcional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 420, 31 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5607. Acesso em: 18 nov. 2024.

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