VI – DESVIO DE PODER LEGISLATIVO
O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, composto da Câmara de Deputados e do Senado Federal (art. 44 da CF).
As funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar, sendo que na primeira hipótese, a Constituição prevê regras de processo legislativo a ser seguido pelo Congresso Nacional quando da elaboração de normas jurídicas e, na outra situação, fiscaliza a parte contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Executivo (art. 70 da CF).
Não resta dúvida que nestas situações, os órgãos legislativos são adotados de discricionariedade peculiar à função política que exercem.
Como já sublinhado no início do presente ensaio, a constitucionalização das normas da Administração Pública permite que o Poder Judiciário atribua dose de temperamentos à discricionarieade, incluindo-se neste contexto a pertinente a ato do Poder Legislativo, "ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido." [42]
Nessa vertente, é de se abrir parênteses para registrar as sempre oportunas palavras do mestre Caio Tácito: [43]
"O princípio geral de direito de toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação de legislar."
Ocorrendo desvio de poder legislativo, configurado pela inconstitucionalidade da norma, pode o próprio Legislativo anular seus atos, ou caso contrário, o Judiciário estará apto a desfazer a norma jurídica viciada. [44]
O excesso da norma jurídica se verifica quando é confrontada com a Constituição, ou quando não cumpre requisito formal para a sua validade.
O tema do desvio de poder legislativo, segundo Caio Tácito, foi amplamente estudado no direito italiano, e o insigne mestre trouxe a lume, dentre outras, as palavras de Livio Paladin: [45]
"A ilegitimidade de todo fim, diverso daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente a configurar-se, no pleno legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de poder."
Pois bem, o excesso de poder legislativo se afigura também quando a norma legal editada se distancia da finalidade constitucional que fundamenta e ampara o próprio exercício do legislativo.
É da pena inteligente de J.J. Canotilho [46] as seguintes observações sobre o "excesso de poder legislativo ou desvio de poder legislativo", quanto aos vícios de mérito:
"As hipóteses de vício de mérito conduzem-se, fundamentalmente, as duas categorias: (1) vícios de mérito porque o uso do poder legislativo no sentido de impor determinadas soluções é objectivamente inadmissível perante determinadas circunstâncias, violando-se regras e princípios constitucionais (princípio da igualdade, princípio da proibição do excesso de direitos, liberdades e garantias); (2) vícios de mérito por irrazoabilidade da lei captada através de um conjunto de manifestações (inconseqüência, incoerência, ilogicidade, completo afastamento do senso comum e da consciência ético-jurídica cominatória). Na primeira hipótese, há casos que se entrecruzam com dimensões presentes na segunda hipótese (ex: violação da proibição do excesso).
As hipóteses mais discutíveis são aquelas que os fins da lei ou dos meios utilizados são materialmente falsos. Nestes últimos casos, a falsidade material dos meios e dos fins poderá legitimar um controle mais intenso..."
O ilustre publicista lusitano traz aos seus estudos a incorporação de técnica atual sobre o controle dos excessos legislativos.
Isto porque, a doutrina e jurisprudência mais moderna enfatizam que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, abrigados no artigo inaugural da Constituição Federal, que consagrou nosso país ao status de Estado Democrático de Direito.
Assim, por essa nova orientação, é permitido converter o princípio da reserva legal (Gesetzezvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnisniössigen Gestzes), pressupondo não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a convicção dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização.
Dessa forma, pelo princípio da razoabilidade das lei, é possível sanar o problema da lei arbitrária, que permite excéss de pouvoir por parte da autoridade legislativa [47].
De forma pioneira em nosso cenário doutrinário, Suzana de Toledo Barros [48] advertiu que a lei tem que ser razoável para ser eficaz:
"De fato, a responsabilidade de exame da razoabilidade da lei por parte do judiciário constitui importante mecanismo de proteção aos direitos fundamentais, porquanto a total liberdade do legislador para regulamentá-los tornaria pouco eficaz a cláusula de eternidade a que estão submetidos estes direitos em diversas ordens jurídicas, como é o caso da nossa."
Nessa mesma trilha, Linares realça que o princípio da razoabilidade valoriza a lei justa, banindo a norma arbitrária e descompassada com a realidade da Constituição:
"En síntesis, lo que alli sostenemos es que la razoabilidad consiste en una valoración jurídica de justicia, por manera que cuando la constitución política del país impone a los cuerpos legislativos el deber de dictar leyes razonables los obliga a dictar leyes justas." [49]
Deve, portanto, o Poder Judiciário, no confronto com a razoabilidade, verificar os abusos ou excessos praticados pelo legislador, quando do seu exercício legal.
VII – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O ABUSO DO PODER LEGISLATIVO
A interpretação conforme a Constituição permite que o STF corrija os abusos ou desvios legislativos, sem que seja taxado de legislador positivo.
Atento as questões declinadas, o E. Supremo Tribunal Federal tem evoluído seu entendimento, possibilitando a extensão de benefícios, quando se trata de regra constitucional auto-aplicável, que são rigorosamente os casos dos princípios expressos no caput do art. 37, consoante se verifica no Mandado de Segurança nº. 22307-7/DF, onde o Excelso Pretório estendeu a vantagem de 28,32% para todos os servidores públicos que não obtiveram o respectivo aumento estipendial, por ter sido afrontada a regra então vigente do inciso XV do citado art. 37: [50]
REVISÃO DE VENCIMENTOS – ISONOMIA.
"A revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data" – inciso X – sendo irredutíveis, sob o ângulo não simplesmente dos servidores públicos civis e militares – inciso XV, ambos no artigo 37 da Constituição Federal"
O princípio da igualdade, seja no enfoque específico dado ao regime jurídico dos servidores públicos, seja aos demais princípios expressos da CF, não deve ser entendido como um dever endereçado somente ao legislador de conceder o mesmo tratamento àqueles que se encontram na mesma situação, mas, também, um dever endereçado ao juiz para que aplique diretamente aos casos levados ao Judiciário a norma constitucional, que, conforme aduziu o STF nesse último e inovador precedente, é norma constitucional auto-aplicável diretamente pelo magistrado e, portanto, dispensa integração legislativa.
Dalmo de Abreu Dallari [51], citado pelo v. acórdão em tela, comunga da mesma hóstia, quando afirma que "quando o Poder Judiciário determina que se cumpra a Constituição, ele não está legislando, mas sim, cumprindo as suas funções específicas."
Na mesma balada, segue a lição de José Afonso da Silva: [52]
"Como, então, resolver a inconstitucionalidade da discriminação? Precisamente estendendo o benefício aos discriminados que o solicitarem ao Poder Judiciário, caso por tal caso tal ato é insuscetível de declaração genérica de inconstitucionalidade por via de ação direta."
Fazendo eco a citação anterior, seguem as legendárias palavras de Saavedra Fazardo, invocadas pelo Min. Maurício Corrêa, quando do julgamento do MS nº. 22.307/DF:
"Las leys no puedem darse a entender por si mismas y son cuerpos que reciben el alma y el entendimiento de los jueces, por cuya boca hablan y por cuya pluma se declaram y aplican a casos."
Em outro relevante julgado, o STF, [53] no AGRRE nº. 249.454-2/RS, relatado pelo Min. Celso de Mello, se coaduna com o que foi exposto alhures:
"(...) A interpretação, qualquer que seja o método hermenêutico utilizado, tem por objetivo definir o sentido e esclarecer o alcance de determinado preceito inscrito no ordenamento positivo do Estado, não se confundido, por isso mesmo, com o ato estatal de produção normativa. Em outras palavras: o exercício de interpretação da Constituição e dos textos legais – por caracterizar atividade típica dos Juizes e Tribunais – não importa em usurpação das atribuições normativas dos demais Poderes da República. Precedente."
O critério da interpretação conforme a Constituição que privilegia a interpretação extensiva da norma legal, em contraposição a interpretações mais restritas está limitado ao "sentido possível" da mesma (e, portanto, este é o limite que circunda a sua própria zona de aplicação, que é o campo da interpretação da norma legal – Larenz).
Com efeito, referido critério restará superado na medida em que se admitir a tutela jurisdicional positiva dos princípios constitucionais não só da igualdade, como e especialmente das normas expressas no caput do art. 37 da CF, pelo que se vislumbraria implícito nesses preceitos constitucionais um comando endereçado ao juiz para que estenda o privilégio àqueles que, inobstante a identidade de situação material, não foram contemplados pelo legislador, cuja hipótese de aplicação reside exatamente na existência de descriminação legal levada à apreciação do Poder Judiciário.
Em verdade, não fosse o transcrito julgado, o E. Supremo Tribunal Federal há muito já vem reconhecendo a possibilidade de outorgar benefícios e reconhecer direitos, in casu cita-se, como exemplo, a imunidade, inobstante a inexistência de lei, conforme se observa no julgado abaixo colacionado:
"MANDADO DE INJUNÇÃO 232-1/RJ
Mandado de Injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim se que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, § 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida." (54)
Deveras, o princípio é o mesmo, e como pode ser facilmente constatado pela clareza da ementa, a Corte Constitucional reconheceu o direito ao gozo da imunidade, inobstante a Carta Magna vinculá-la a existência de lei a ser editada, litteris:
"Art. 195 – A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
§ 7º - São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei."
Têm-se, portanto, que, em função da constitucionalização das normas de Administração Pública, o Poder Judiciário amplia, como já dito alhures, o seu leque de controle sobre os atos do Estado. [55]
Não se trata de legislar positivamente, pois compete ao Judiciário interpretar e aplicar as normas legais, em especial os que vêm contidos na Constituição.
Deixando de lado a superada discussão sobre legislador positivo, o STF, cumprindo o seu papel maior de controlador dos atos normativos, quer pelo controle abstrato ou não, vem acolhendo o cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade capaz de invalidá-lo ou corrigido o texto normativo defeituoso.
Desde o histórico RE nº 18.331, [56] onde o saudoso Min. Orosimbo Nonato, funcionando como Relator deixou registrado nos anais do STF que o poder de taxar não pode destruir o contribuinte, aniquilando o desvio de poder do legislativo:
"é um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir."
Seguindo esse posicionamento, pela Representação nº 1.077, [57] o excesso do poder de taxar foi igualmente repelido pelo STF, sob o mesmo fundamento declinado.
Comentado este último precedente, Seabra Fagundes teve a oportunidade de defender a idéia de que, "a extensão da teoria do desvio de poder originário é essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição regida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento Constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira." [58]
O princípio em voga voltou a merecer a atenção do STF em inúmeros casos, inclusive na representação nº 930, quando se discutiu a extensão da liberdade profissional e o sentido da expressão condições de capacidade, tal como encartado no então vigente Art. 153, § 23 da CF, de 1969, sendo que o relator, Min. Rodrigues Alckmin, enfatizou a necessidade de preservar-se o núcleo essencial do direito fundamental, ressaltando, contudo, que o legislador ao impor as condições de capacidade, haveria de atender ao "critério da razoabilidade".
E o Min. Moreira Alves, [59] alargando a configuração constitucional que alberga o princípio da proporcionalidade como um dos elementos robustos que mantém intactos os direitos fundamentais, extraído do princípio da reserva legal ou do princípio do Estado de Direito (Art. 1º da C.F.), fundamentou sua ótica no sentido do que o princípio sub-examem tem assento constitucional na cláusula do devido processo legal, como sua garantia material.
Por outro prisma, abordando o excesso cometido pelo Legislativo, foi invocado pelo Min. Aliomar Baleeiro, no RE 62.731, [60] julgado em 07 de abril de 1967, a inconstitucionalidade de Decreto-Lei que impedia que o locatário purgasse a mora do imóvel locado, ficando assim ementado o acórdão: "No conceito de segurança nacional não se inclui assunto miúdo de direito privado, tal como a purgação da mora nas locações (...)".
Na mesma trilha, o Ministro Themístocles Cavalcanti, [61] aderindo ao voto da maioria da Corte Suprema, vencido o Ministro Relator Thompson Flores, declarou inconstitucional as sanções administrativas contidas nos Decretos-Leis n. 5 e 42, de 1937, que impunham discriminação econômica entre os contribuintes, por permitir a admissão de recursos contra autuações fiscais somente daqueles que depositavam administrativamente a quantia devida, ao passo que impedia os recursos dos recorrentes que não caucionassem na esfera administrativa os respectivos valores cobrados.
Como visto, tanto a jurisprudência passada do STF, como a atual, fiscalizam a atuação do Legislativo e do Executivo, para que esses poderes não cometam atos revestidos de excessos, com flagrante desvio de poder. [62]
Por fim, enfrentando o tema de frente, o Min. Prado Kelly, [63] ao discorrer sobre lei de organização judiciária na qual era beneficiado determinado servidor, pinçado do contexto geral, não teve dúvida em advertir: "tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio de poder da própria legislatura."
Desse memorável julgamento, participou o Ministro Victor Nunes Leal [64], que aderiu ao voto âncora já citado, deixando sua posição nítida "de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da própria legislatura."
A matéria ficou tão sedimentada no Pretório Excelso que mereceu a confecção das Súmulas ns. 20 e 323, que baseiam a interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Assim, pelo princípio sub-examem, é ilegal ato emanado pelo Legislativo que viole preceito constitucional vigente, baixando comando normativo divorciado da finalidade erigida pelo constituinte na Norma Suprema.
Por esse princípio, a Lei 9.129/95 se afigura como fruto de um excesso de poder legislativo, contrariando a Constituição Federal [65] que não permite que a lei ordinária institua empréstimos compulsórios ou crie distinção de contribuintes, visto que nos casos de tributos federais não existe limitação de compensação, podendo o sujeito passivo fazê-la livremente.
Não existe razoabilidade no texto legislativo que limita determinados contribuintes, deixando os demais livres de restrições, discriminando-os quanto à espécie e natureza.
Neutralizando excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público, que configura o caráter confiscatório de determinado tributo, o STF [66] afastou o aumento da contribuição de seguridade social para os servidores ativos:
"CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL - SERVIDORES EM ATIVIDADE - ESTRUTURA PROGRESSIVA DAS ALÍQUOTAS: A PROGRESSIVIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA SUPÕE EXPRESSA AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL. RELEVO JURÍDICO DA TESE.
- Relevo jurídico da tese segundo a qual o legislador comum, fora das hipóteses taxativamente indicadas no texto da Carta Política, não pode valer-se da progressividade na definição das alíquotas pertinentes à contribuição de seguridade social devida por servidores públicos em atividade. Tratando-se de matéria sujeita a estrita previsão constitucional - CF, art. 153, § 2º, I; art. 153, § 4º; art. 156, § 1º; art. 182, § 4º, II; art. 195, § 9º (contribuição social devida pelo empregador) - inexiste espaço de liberdade decisória para o Congresso Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição. Inaplicabilidade, aos servidores estatais, da norma inscrita no art. 195, § 9º, da Constituição, introduzida pela EC 20/98. A inovação do quadro normativo resultante da promulgação da EC 20/98 - que introduziu, na Carta Política, a regra consubstanciada no art. 195, § 9º (contribuição patronal)
- parece tornar insuscetível de invocação o precedente firmado na ADI 790/DF (RTJ 147/921). A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende cabível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de a Corte examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não-confiscatoriedade, consagrado no art. 150, IV, da Constituição. Precedente: ADI 2.010-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO. - A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte - considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo - resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte.
- O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. A CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL POSSUI DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL ESPECÍFICA. - A contribuição de seguridade social não só se qualifica como modalidade autônoma de tributo (RTJ 143/684), como também representa espécie tributária essencialmente vinculada ao financiamento da seguridade social, em função de específica destinação constitucional. A vigência temporária das alíquotas progressivas (art. 2º da Lei nº 9.783/99), além de não implicar concessão adicional de outras vantagens, benefícios ou serviços - rompendo, em conseqüência, a necessária vinculação causal que deve existir entre contribuições e benefícios (RTJ 147/921) - constitui expressiva evidência de que se buscou, unicamente, com a arrecadação desse plus, o aumento da receita da União, em ordem a viabilizar o pagamento de encargos (despesas de pessoal) cuja satisfação deve resultar, ordinariamente, da arrecadação de impostos. Precedente: ADI 2.010-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO."
O poder de tributar, necessariamente, deverá guardar estrito respeito às normas Constitucionais. [67]
Nesse sentido foram construídas as Súmulas de nos 70 e 323 do STF, litteris:
"Súmula70/STF – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributo."
"Súmula 323/STF – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos."
Os tributos, nas suas diversas espécies, compõem o Sistema Constitucional tributário, que a Constituição estabelece nos seus arts. 145 a 162. Sua definição vem albergada no art. 3º do CTN, definição que se resume, em termos jurídicos, em uma obrigação que a lei impõe às pessoas de pagar, em dinheiro, certa importância ao Estado. Assim, o exercício arbitrário e excessivo do legislador têm gerado repúdio por parte de inúmeros julgadores do Colendo STF.
Exemplo claro do afirmado, além dos que foram citados anteriormente, consiste na impossibilidade de fixação de alíquotas progressivas do IPTU:
"IPTU – Progressividade – No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocamente um imposto real – Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer como base exclusivamente no seu art. 145, parágrafo 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo Constitucional (genérico) com o artigo 156, parágrafo 1º (específico). A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente a conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do artigo 182 é a explicação especificadada, inclusive com a limitação temporal do IPTU com a finalidade extrafiscal aludida no art. 156, I, parágrafo 1º. Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando do IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, parágrafo 1º, aplicando com as limitações expressamente constantes dos parágrafos 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconstitucional o sub-item 2.2.3 do setor II da tabela III da Lei nº 5.641, de 22/12/1989, no Município de Belo Horizonte." [68]
O abuso do poder do órgão legislativo também se configura pela omissão, como observado pelo nosso ilustre Min. Aldir Passarinho: [69]
"A Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão, de que trata o § 2º do art. 103 da nova CF, não é de ser proposta par que seja praticado determinado ato administrativo em caso concreto, mas visa a que seja expedido o ato normativo que se torne necessário para o cumprimento de preceito constitucional que, sem ele, não poderia ser aplicado."
Inúmeros são os desmandos que o STF vem combatendo, fiel ao seu sagrado mandamento de fiscalizar os Poderes Executivo e Legislativo, confrontando seus atos com o que vem estabelecido na Constituição Federal, quando, no exercício de suas prerrogativas, os referidos poderes rompem a legalidade ou outros princípios da Carta Política.