O uso de algemas pela polícia e a presunção de inocência: uma análise constitucional do processo penal

Resumo:


  • O artigo analisa o uso de algemas sob a perspectiva da doutrina e jurisprudência, considerando os direitos fundamentais e a hermenêutica relacionada ao tema.

  • Aborda a origem e definição das algemas, o equilíbrio entre segurança social e dignidade do preso, e a presunção de inocência conforme o ordenamento jurídico brasileiro.

  • Discute a regulamentação do uso de algemas e como ela deve ser mitigada para respeitar a presunção de inocência, evitando abusos e mantendo a dignidade do detido.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Analisa-se o surgimento das algemas, bem como os fatores impulsionadores dos direitos fundamentais e o exame do princípio da presunção de inocência, sempre aliando os temas às normas constitucionais.

INTRODUÇÃO

O propósito do presente estudo é analisar os pontos favoráveis e desfavoráveis sob a ótica da doutrina e jurisprudência quanto ao uso das algemas no plano da teoria e da prática, mesclado a análise aos direitos fundamentais previstos em Lei Maior, bem como a hermenêutica enlaçada a esse tema, que não deixa de ser polêmico e ao mesmo tempo instigador.

Para o fortalecimento da compreensão quanto ao tema, que por sua vez, se mostra complexo e ao mesmo tempo amplo, justamente pelas divergências e abordagens criteriosas, se começará a estudar a questão histórica do uso das algemas, bem como a definição desse instrumento. O trabalho não se limitará a conceitos ou definições, mas ao binômio: segurança social e dignidade do preso, bem como a presunção de inocência integralizada no ordenamento jurídico brasileiro.

Feito isto, serão abordados os mais diversificados posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais vinculados aos preceitos constitucionais ligados ao tema. Não se trata somente de um ensinamento mitigado ao que está no plano teórico, mas ao que se vivencia na prática, e como toda moeda possui dois lados, esse tema também possui.

DESENVOLVIMENTO

  • Definição e surgimento das algemas:

Algema vem do Árabe: “Aljamaa”, que significa pulseira. Ainda dentro do significado, o dicionário Aurélio dispõe que algema é o instrumento de ferro para prender pelos pulsos.

O surgimento desses instrumentos, conforme estudo, possivelmente se deu com o início das guerras, pois era necessário manter os inimigos presos nos chamados grilhões, era um demonstrativo de força e poder. Existia um pequeno detalhe, as algemas eram fabricadas em tamanho único, e como não podiam ser ajustadas, ou ficavam largas demais, ou apertadas demais, dificilmente proporcional ao pulso dos prisioneiros.

Há quem diga que os verdadeiros modelos desses instrumentos surgiram com WV Adam, que foi o responsável por introduzir a princípio a catraca ajustável em 17 de junho de 1862. O desenho de Adam tinha entalhes e um arco quadrado, sendo que tempos depois, surgiria outra versão, em que os entalhes ficavam na parte interna do arco, cujo criador era Orson Phelps em 17 de julho de 1866.

Diante de todo um aperfeiçoamento das algemas, vale ressaltar que o grande sucesso veio com John J. Torre em 1865, sob licença da patente de Adam e Phelps, fez circular no mercado pelo menos três modelos distintos de algemas. John modificou algumas coisas, dentre elas, a forma do arco, agora redondo, e no lugar das correntes, usou três anéis na parte interior dos punhos, e mais uma patente, que por sua vez foram as algemas de duplo bloqueio. Esse foi um grande avanço.

Hodiernamente, vários modelos de algemas são fabricados, cada vez mais aperfeiçoados e aptos a coibir uma possível fuga. O uso desses instrumentos causaram e causam acirradas divergências, principalmente quando se mescla com direitos fundamentais, em especial o princípio da presunção de inocência.

  • Direitos fundamentais e o início do princípio da presunção de inocência:

  1. Os direitos fundamentais passaram por várias etapas de aperfeiçoamento, mas o período de grande destaque se deu com a Revolução Francesa, em que ideias iluministas ganhavam cada vez mais espaço. O iluminismo buscou uma explicação racional dos fatos ocorridos no mundo, trouxe uma visão esclarecedora sobre diversos dogmas impostos naquela época, mas o impulso decisivo para a consolidação dos direitos fundamentais se deu com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 10 de dezembro de 1948, e que vale mencionar o texto do seu artigo 1°, que dispõe:

 “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

Nota-se que, em um só artigo, existem os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e dignidade, preceitos basilares a um Estado Democrático de Direito, concretizando o plano dos direitos fundamentais. Vale ressaltar uma pequena diferença entre direitos fundamentais e direitos humanos nas lições de Ingo Wolfgang Sarlet(2005, p. 35 e 36)

“[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoca caráter supranacional.”

Não há muito que se comentar diante dessa brilhante exposição, a qual nos revela dois “universos” que se interligam e que apesar da pouca diferença, há um nítido vínculo direcionado a construir um Estado saudável, capaz de garantir e satisfazer os anseios sociais.

Como bem compreendido, os direitos fundamentais são aqueles positivados na esfera do direito constitucional de um Estado. Portanto, é de salutar a menção de incisos constitucionais brasileiros presentes nos artigos 1° e 5°, que trazem a possibilidade de o Cidadão ter conhecimento de alguns direitos e garantias que lhes são inerentes.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

A Lei Maior de 1988 do Brasil dispõe dos preceitos garantidores à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, à dignidade da pessoa humana e à integridade física e moral do indivíduo, abrindo dessa forma, um leque de possibilidades de proteção ao ser humano.

  1. O início do princípio da presunção de inocência, ocorreu segundo pesquisas, em 26 de agosto de 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Dispõe o artigo 9° sobre a presunção de inocência:

  • Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.”

A Carta Magna de 1988 do Brasil também dispõe desse princípio, em seu artigo 5°:

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Apesar da boa sincronia entre os preceitos normativos, é bom mencionar o posicionamento da magistrada, a doutora Simone Schreiber:

Constata-se um pensamento altamente filosófico, que traz a necessidade de reflexão sobre o tema, mas que para efeitos práticos, acaba-se considerando como a presunção de inocência em lato sensu e não somente uma desconsideração prévia da culpabilidade.

O uso de algemas e a presunção de inocência

É sempre polêmico o desenvolvimento do tema supracitado, pois ao mesmo tempo que se abre um leque de possibilidades, há na mesma intensidade, as divergências, mas não deixa de ser gratificante o seu estudo.

Partindo de fundamentos históricos, o Código de Processo Criminal de 1832, já determinava a forma da ordem de prisão, é o que dispõe seu artigo 180:

O emprego da força necessária a prisão já estava positivado no ordenamento jurídico, mas a regulamentação da utilização de instrumentos para que essa prisão fosse efetuada surgiu com Decreto n° 4.824 de 22 de Setembro de 1871, conforme seu artigo 28:

“ Art. 28. Além do que está disposto nos arts. 12 e 13 da Lei, a autoridade que ordenar ou requisitar a prisão e o executor dela observarão o seguinte: O preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor; e quando não o justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de 10$000 a 50$000 pela autoridade a quem for apresentado o mesmo preso.”

Como se pode perceber, os instrumentos usados na prisão, não eram somente algemas, mas ferros e cordas, levando ao extremo a utilização desses objetos, para a proteção a segurança não somente do preso, mas de terceiros.

Hodiernamente, esse quadro sofreu algumas mudanças, justamente pela preocupação com a efetividade dos direitos fundamentais inerentes ao detido. O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante n° 11, que diz:

Verifica-se que não há uma abolição do uso das algemas, mas uma mitigação da utilização desse meio, que por sua vez, também se faz presente na Lei 11.689 de 9 de junho de 2008, em seu artigo 474, parágrafo 3°, se referindo ao tratamento aos indivíduos perante o Tribunal do Júri, que diz:

“§ 3o  Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.’ (NR)”

Também o precedente representativo versa sobre o mesmo assunto:

 "Em primeiro lugar, levem em conta o princípio da não culpabilidade. É certo que foi submetida ao veredicto dos jurados pessoa acusada da prática de crime doloso contra a vida, mas que merecia tratamento devido aos humanos, aos que vivem em um Estado Democrático de Direito. (...) Ora, estes preceitos - a configurarem garantias dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no país - repousam no inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade. Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante. O julgamento do Júri é procedido por pessoas leigas, que tiram as mais variadas ilações do quadro verificado. A permanência do réu algemado, indica, à primeira visão, cuidar-se de criminoso da mais alta periculosidade, desequilibrando o julgamento a ocorrer, ficando os jurados sugestionados." HC 91.952, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgamento em 7.8.2008, DJe de 19.12.2008.”

É clara a não proibição do uso das algemas, mas existem regras a serem obedecidas para que não se configure abuso de autoridade. O princípio da não culpabilidade se faz presente, visto que diante de um Tribunal, composto muitas vezes por pessoas leigas quanto ao direito, e quando se mantém o acusado algemado, se mitiga a possibilidade da ampla defesa e o contraditório. Para fechar essa etapa de estudo, vale ressaltar as lições de Mirabete:

Mesmo em época anterior a Beccaria, já se restringia o uso de algemas (ferros), permitido apenas na hipótese de constituírem a própria sanção penal ou serem necessárias à segurança pública”. No Brasil, o artigo 28 do Decreto nº. 4.824, de 22-11-1871, que regulamentou a Lei nº. 2.033, de 20-09-187, impunha sanção ao funcionário que conduzisse o preso ‘com ferros, algemas ou cordas’, salvo o caso extremo de segurança, justificado pelo condutor. Sem se referir especificamente às algemas, o Código de Processo Penal veda o emprego de força, salvo se indispensável no caso de resistência ou de tentativa e fuga do preso (art. 284). Por fim, a Lei de Execução Penal determina a regulamentação por decreto federal do uso de algemas (art. 199).

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Não há dúvidas sobre a necessidade de regulamentação, pois o uso desnecessário e abusivo de algemas fere não só o artigo 40 da Lei de Execução Penal, como o artigo 5º, XLIX, da Constituição Federal, que impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do preso. Constitui-se nessa hipótese injúria e castigo, tratamento degradante e desumano da pessoa sob guarda ou custódia. “Como já salientou Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, ‘o emprego de algemas não pode ser mostrar abusivo, visto que a força e o símbolo ferem o direito individual, a liberdade jurídica e o respeito à integridade física e moral do preso’.”

Conforme entendimento de Mirabete é de salutar importância a regulamentação do uso das algemas, objetivando a proteção aos direitos previstos em Lei Maior e lei infraconstitucional.

A existência de um leque de oportunidades para a discussão de tal tema, se torna cada vez mais instigante. De forma divergente, preleciona Ronaldo Rabello de Brito Poletti em uniformidade com o posicionamento Uélton Santos Silva:

“A verdadeira quebra de direito fundamental se dá com a restrição da liberdade. A algema não configura uso abusivo de força, mas, sim, um mecanismo legítimo para a prevenção do uso da força policial, o que pode colocar em risco desnecessário a integridade de terceiros e do preso. Nem todos os direitos fundamentais do preso são preservados, ao menos temporariamente, a começar pela sua liberdade de locomoção. Os direitos incompatíveis com a prisão são restringidos, como, por exemplo, o exercício do sufrágio.”

Nota-se que na visão do autor, a algema seria um mecanismo de prevenção do uso da força policial, ou seja, uma prevenção engloba o texto do artigo 284, do Código de Processo Penal, que diz:

“Art. 284.  Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.”

Sendo assim, o uso desse instrumento não seria uma verdadeira quebra dos direitos fundamentais, tendo em vista, que estes já foram rompidos no momento da restrição da liberdade, se restringindo também o exercício do sufrágio.

Diante de posicionamentos tão bem fundamentados, não se enseja ditar o que está certo ou errado, mas há de se deixar bem claro que o uso das algemas não é algo proibido no ordenamento jurídico brasileiro, mas a forma e quando se utilizará tal meio, é que sofre mitigações, visando justamente resguardar os direitos fundamentais supramencionados. É importante também se analisar o binômio: segurança social e a dignidade do preso e a presunção de sua inocência, que só poderá ser pesado da maneira mais correta, se vivenciado na prática.

O tema trabalhado não deixa de ser polêmico e ao mesmo tempo instigador. O artigo buscou desenvolver o uso das algemas, partindo de pressupostos históricos. Assim, também aconteceu com o desenvolvimento dos direitos fundamentais e o início da presunção de inocência, vinculado às normas constitucionais.

Buscou-se analisar o surgimento das algemas, bem como os fatores impulsionadores dos direitos fundamentais e o exame do princípio da presunção de inocência, sempre aliando os temas às normas constitucionais. Logo em seguida, foi desenvolvido o tema principal, em que se mostraram algumas das inúmeras argumentações quanto ao tema.

Um estudo, que por sua vez, é recheado de posicionamentos diferentes, contudo bem alicerçados em preceitos lógicos e coerentes. O propósito desde o início, além da historicidade de cada parte do tema, foi a abordagem de pensamentos diferentes quanto ao tema, e dessa maneira, desobstruindo o caminho para horizontes incríveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, Leandro. Evolução do uso da algema na história. Site: Policial por dentro.19, julho, 2013http://policialpordentro.blogspot.com.br/2013/07/evolucao-do-uso-da-algema-na-historia.html.

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Torre Algemas. Disponível em: http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR&sl=en&u=http://www.handcuffs.org/tower/&prev=search.

FERRARI, Rafael. Presunção de inocência: garantia processual penal Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17n. 324924maio 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21862>. Acesso em: 19 abr. 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SCHREIBER, Simone. O princípio da presunção de inocênciaRevista Jus Navigandi, Teresina, ano 10n. 7901 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7198>. Acesso em: 21 abr. 2015.

BARBOSA, Júnior Alves Braga. O uso de algemas. Disponível em:http://www.direitonet.com.br/ artigos/exibir/1949/O-uso-de-algemas . Acesso em: agosto 2009.

POLETTI, Ronaldo Rebello do Brito. As algemas e a inconsciência jurídica. Revista Jurídica Consulex - Ano X - nº 231 - 31 de agosto de 2006 e SILVA, Uélton Santos. Uso de algemas. Revista Jurídica Consulex - Ano XI - nº 241 - 31 de janeiro de 2007.

SOUZA, Mário César de. Uso de algemas: regra ou exceção. Juris Way. Disponível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=6295

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