Sumário: 1) Introdução. 2) O Sistema Jurídico Nacional em Biosegurança. I. Artigos Constitucionais, Lei 8974/95 e Decreto-Lei 1752/95. a. O Relatório de Impacto Ambiental e a Participação Pública. II. Convenções em Biosegurança: A Convenção em Biodiversidade – UN Agenda 21 e o Protocolo de Cartagena - O Princípio da Precaução. III. Convenção UPOV: Patentes e Proteção das Variedades de Plantas – Lei 9456/97, "A Lei de Cultivares". IV. A nova Lei em Biosegurança – Projeto de Lei 2401/2003. a) O Conselho Nacional de Biosegurança; b) A Comissão CNTbio; c) RIMA e Participação Pública na nova Lei. 3) Análise comparativa – O Princípio da Precaução e Biosegurança no regime da Comunidade Européia - Diretiva 18/2001. d) Exigência do RIMA, de acordo com a Diretiva 18/2001. e) Participação Pública – O processo democrático. 4) Realidades e Relatividades: O efeito da Política do Meio-Ambiente. 5) Conclusão.
1) Introdução:
O verde da bandeira brasileira simboliza a nossa riqueza biológica, representando a eterna primavera e os extraordinários recursos naturais do país. O Brasil abriga uma das mais ricas regiões em biodiversidade do planeta. Considerado um país de megadiversidade (1), o Brasil possui, no mínimo, cinco biomas distintos: a Floresta Equatorial Amazônica, a Floresta Tropical da Mata Atlântica, o Pantanal, o Cerrado e a Caatinga. Cientistas calculam que 20% (2) de todas as espécies conhecidas no mundo, não mencionando as espécies desconhecidas, vivem nesta parte do globo. Entretanto, essa riqueza biológica tem sido paulatinamente destruída em nome do desenvolvimento.
Devido a uma histórica ausência de consciência ambiental, a maioria dos brasileiros não concebe a idéia de que a nossa riqueza natural, se não preservada, irá desaparecer. O simples tamanho das áreas em risco trabalha contra a proteção ambiental e contribui para que uma enorme parcela dos brasileiros tenha a ilusão de que a Amazônia irá permanecer inalterada, a despeito do extenso volume de desflorestamento, do garimpo ou, ainda, da expansão da pecuária. Quando se ouvem notícias sobre a contaminação por lixo, no Pantanal, estas são relegadas a um segundo plano. Afinal de contas, com uma área do tamanho do Estado do Oregon, nos Estados Unidos, quanto plástico o Pantanal pode absorver? Que dano a simples introdução ilegal de umas poucas sementes geneticamente modificadas poderia causar às nossas férteis terras do sul? Ou melhor, por que não as introduzimos logo nas fazendas, já que pesticidas custam tão caro e tantos de nós passam fome?
O Brasil é também um país de contrastes. Apesar de tanta riqueza, a nação é o lar de um exército de famintos (3). A FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentos - estima que 44 milhões de pessoas - cerca de ¼ da população brasileira - passam fome diariamente. Por si só, esse número já é uma vergonha. Contudo, se considerarmos que o Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo - a safra de 2002/2003 alcançou um total de 122.4 milhões de toneladas (4) -, a realidade passa a ser absolutamente indecente. O pobre uso da terra, aliado a uma tradição de injustiça e desigualdade na distribuição de terras e riquezas, em especial pela perpetuação de oligarquias agrícolas, trabalham em conjunto para criar um dos mais perturbadores quadros sociais de que se tem notícia. Alguns poderão sugerir que ainda não somos o Haiti ou Zimbábue. Mas ninguém pode negar que estamos trabalhando duro para chegar lá.
Em meio a esse debate, o Congresso Nacional esta discutindo uma nova legislação em biosegurança (5). Com o texto final aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto de lei encontra-se agora em discussão no Senado (*). Supostamente, o que se espera é que a nova lei venha regularizar o assunto e, assim, evitar uma intensa batalha judicial em torno dos Organismos Geneticamente Modificados - OGMs. Contudo, encontram-se ausentes dois mecanismos essenciais, que sustentam todas as legislações ambientais democráticas: a Participação Pública e o efetivo Relatório de Impacto Ambiental - RIMA. Sofrendo intensa pressão por parte das multinacionais, o Congresso tem acelerado seus trabalhos, na tentativa de colocar em vigor um sistema legislativo definitivo. Porém, através de uma Medida Provisória, o governo federal pôs um freio nos últimos desdobramentos jurídicos (6) e, neste momento, a disputa entre proteção ambiental e desenvolvimento é extremamente desigual.
2) O Sistema Jurídico Nacional em Biosegurança
Recentemente, as disputas entre cidadãos e grupos de proteção ambiental de um lado, contra o Governo Federal e as indústrias agrícolas, de outro, têm alcançado proporções épicas. Com uma avalanche de ações judiciais, esses grupos têm forçado o Governo Federal a reconhecer o problema e, ao mesmo tempo, intervir no mercado-negro de sementes geneticamente modificadas, contrabandeadas através da fronteira com a Argentina. O uso indiscriminado de OGMs no sul do país, cuja economia é predominantemente agrícola, tem sido motivo de preocupação no mundo inteiro. E, de fato, o Brasil tem muito a perder. Os maiores consumidores da produção agrícola brasileira são os países que optaram pela proibição do uso (e consumo) de OGMs. Entre estes, encontram-se a China e vários países da Comunidade Européia. A recente inabilidade do governo brasileiro, em garantir a pureza da safra de 2003, causou grande inquietação nos parceiros comerciais brasileiros. Paradoxalmente, uma simples análise do sistema legal brasileiro revela a existência de um extenso corpo jurídico, o qual, em tese, teria condições de prevenir os eventos ocorridos durante a safra de 2003. Contudo, como também se observa em outros sistemas jurídicos, a duplicação de ordenamentos e a inconsistência nas obrigações e deveres das agências governamentais dão margem a uma pobre fiscalização das leis.
I – Provisões Constitucionais, Lei 8974/95, e Decreto-Lei 1752/95:
O sistema jurídico de proteção ambiental no Brasil inicia-se com o disposto no Art. 225, e seguintes (7), da Constituição Federal, que estabelecem os direitos e garantias ambientais do povo brasileiro, ao mesmo tempo em que criam os mecanismos de proteção a esses direitos. O caput do Art. 225 delega ao governo e à comunidade em geral a responsabilidade de assegurar e preservar os recursos naturais para as gerações presentes e futuras.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (grifo nosso).
Outras atribuições importantes encontram-se delineadas nos parágrafos subseqüentes: § 1, II - preservação da diversidade e a integridade do patrimônio genético [8], § 1, IV - a exigência de um estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente (9), e, finalmente, § 1, V - controle da produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (10).
Por decisão da Assembléia Nacional Constituinte, a maioria dos artigos que integraram a Constituição Federal de 1988 não são auto-executáveis. Coube então, às futuras legislaturas, a difícil tarefa de converter direitos constitucionais difusos em leis de aplicação imediata. Com efeito, passaram-se sete anos, antes de o Congresso aprovar a Lei de Biosegurança – Lei 8974/95, a qual implementou medidas de segurança e regulamentou as formas, usos e técnicas utilizadas pelo ramo de engenharia genética e de OGMs. Entretanto, uma breve análise da lei, demonstra a ausência dos dois mais importantes mecanismos de proteção ambiental: o RIMA e a Participação Pública.
Seguindo uma característica tradicional no Brasil, em lugar de delegar tarefas às agências já existentes, o Congresso optou por criar mais uma burocracia, ao estabelecer a legislação de Biosegurança Nacional. A nova agência, Comissão Nacional Técnica de Biosegurança - CNTbio, criada pelo Decreto 1752/95, pertence à Secretaria de Ciência e Tecnologia. A CNTbio possui inúmeras atribuições, incluindo a de propor a Política Nacional de Biosegurança, assim como um Código de Ética para Manipulação Genética. A criação dessa comissão efetivamente transferiu para a Secretaria de Ciência e Tecnologia o poder de regular todas as matérias relativas à introdução, uso e comercialização dos OGMs no país.
Tal delegação de poder tem sido bastante controvertida, em particular no que concerne ao risco ambiental de transformar OGMs em tendência dominante na produção agrícola do país. O Capítulo II, do Decreto 1752/95 (11), dispõe sobre as atribuições da CNTbio, conferindo à Comissão a atribuição de preparar uma opinião técnica conclusiva (12)(grifo nosso), o que lhe garante, entre outros, o poder de produzir, usar, comercializar, transportar e dispor de qualquer OGM no país (13). Este extensivo poder dado à Comissão abriu a porta para decisões arbitrárias, muitas das quais em flagrante violação à Constituição, gerando intensos litígios (14).
a. Relatório de Impacto Ambiental e Participação Pública
Não obstante o fato de que tanto a Constituição Federal quanto a Política Nacional de Meio-Ambiente exigem a produção de um Relatório Sobre Impacto Ambiental, nos projetos que possam causar significativa degradação ao ambiente, as regras da CNTbio apenas fazem uma breve menção ao processo de elaboração do RIMA, em seu Art. 2, XIV (15). De acordo com o previsto no Art. 2, o relatório deve ser requerido apenas quando a Comissão entenda ser necessário. Logo, o RIMA deixou de ser uma garantia constitucional, tornando-se um item opcional que pode ou não ser requerido, independentemente do impacto ambiental da atividade. Com efeito, esse dispositivo permite que a Comissão se sobreponha a todas as demais agências nacionais, incluindo o Conselho Nacional do Meio-Ambiente – CONAMA, agência responsável pela execução da Política Nacional do Meio-Ambiente. Essa troca de atribuições, aliada à ineficiência executiva e ao uso indiscriminado de sementes geneticamente modificadas, desencadearam um sem número de ações contra o governo (16), promovidas pelo Ministério Público Federal, pelo Instituto de Defesa do Consumidor, por entidades civis e por ONGs. Apesar de o sistema legal brasileiro não reconhecer as decisões dessas ações como precedentes jurídicos com força de lei (17), a maior parte delas obteve decisão favorável, ou seja, contra a CNTbio, por haver permitido o uso de OGMs sem o respaldo de um RIMA.
Outro dispositivo ausente no processo de licenciamento pela CNTbio é a garantia de uma participação pública significativa. O Decreto faz uma breve referência aos projetos em que se exclui a participação pública, por razões de segurança (18), mas queda-se em silêncio quanto à forma, prazos e extensão dos direitos do público de participar e de fazer comentários sobre o processo de tomada de decisão da Comissão.
II. Convenções sobre Biosegurança: A Convenção sobre Biodiversidade das Nações Unidas – Agenda 21 e o Protocolo de Cartagena – O Princípio da Precaução
Como Anfitrião da ECO-92, o Brasil tornou-se signatário da Convenção das Nações Unidas para Biodiversidade – Agenda 21, mais tarde incorporada à legislação nacional, através do Decreto-Legislativo 02/94 e do Decreto 2519/98. Adotado em plenário, em 14 de junho de 1992, o Capítulo 8 da Agenda 21 (19) enfatizava a necessidade de crescimento e de reestruturação do processo de tomada de decisão, incluindo entre outras, as questões da revisão da política nacional, visando a incorporação do debate sobre temas ambientais, e da participação pública em todos os níveis do processo de tomada de decisão (20). Infelizmente, uma breve análise da legislação nacional revela o fato de que o Brasil não vem cumprindo com os compromissos internacionais assumidos. Ao contrário, o que se verifica é uma forte resistência por parte de membros do executivo e do legislativo, quanto a permitir o acesso e a efetiva participação pública no processo de tomada de decisão, inteiramente delegado a um pequeno grupo de burocratas. Como resultado, coloca-se nos ombros do judiciário, já tão sobrecarregado, a imensa responsabilidade de garantir ao povo brasileiro a preservação de seus Direitos Constitucionais.
Outra conseqüência da inércia governamental e legislativa quanto à implementação dos princípios firmados na Convenção de 92 é o repúdio, de fato, ao Princípio da Precaução do Art. 15 (21).
Agenda 21 – Princípio 15 - A fim de proteger o meio-ambiente, a atitude de precaução deve ser amplamente adotada pelos Estados, de acordo com suas possibilidades. Onde haja ameaça de sérios e irreversíveis danos, a falta de certeza científica não poderá ser usada como razão para o adiamento de medidas efetivas para prevenir a degradação ambienta.l (grifo nosso)
A outra relevante fonte de direito internacional adotada pelo Brasil é o Protocolo da Convenção Biológica sobre Biodiversidade, mais conhecido como o Protocolo de Cartagena (22). Os objetivos do Protocolo são a conservação da diversidade biológica, a sustentabilidade dos recursos terrestres e a distribuição eqüitativa dos benefícios provenientes de recursos genéticos (23). (grifos nossos) O Protocolo estabelece diretrizes para o movimento sem fronteiras dos OGMs, incluindo, entre outras, as que concernem ao manuseio, ao transporte, à rotulagem, aos acordos de comércio, à criação de uma câmara de compensação em biosegurança, e normas relativas a responsabilidades e indenizações. A aceitação internacional e a incorporação do Princípio de Precaução por várias Convenções, criaram uma ambiência singular, na qual, pela primeira vez, as preocupações ambientais se contrapõem aos acordos comerciais.
É importante salientar que o Princípio da Precaução não pretende restringir ou ignorar qualquer avanço científico. Mas, sim, exigir, de cada Estado, a incorporação de um nível de segurança razoável nas avaliações de riscos de novas tecnologias que possam drasticamente afetar o meio-ambiente. No Brasil, o Poder Executivo ignora este princípio, quando é de sua conveniência, mesmo em contradição à legislação nacional vigente. O não cumprimento do dever por parte do governo é mais bem exemplificado pela edição da Medida Provisória 113/03. A Medida Provisória - ou MP - é um mecanismo constitucional que permite ao Poder Executivo instituir normas temporárias, em casos de urgência. Esse mecanismo pressupõe dois requisitos básicos: primeiro, a existência de uma situação relevante e urgente, que exija uma ação imediata por parte do governo; e, segundo, a ausência de legislação prévia no assunto. Qualquer Medida Provisória não pode exceder sua vigência a 90 dias, após o que deverá convertida em lei. Em 2003, durante a crise gerada pelos OGMs, o Governo Federal editou a MP 113/03, visando restringir o uso abusivo da soja transgênica na safra daquele ano. Na verdade, a medida resultou numa semi-anistia, permitindo que os usuários das sementes geneticamente modificadas mantivessem a safra daquele ano, embora proibisse o consumo e o uso dessas mesmas sementes nas safras de 2004/2005 (24).
Apesar de o Congresso mais tarde haver convertido a MP 113/03 em lei – Lei 10.814/03, muitos consideraram o objeto da medida inconstitucional, ensejando nova enxurrada de ações. Em janeiro de 2004, o Supremo Tribunal Federal havia recebido inúmeras Ações Diretas de Inconstitucionalidade, as quais visavam trazer o processo legislativo de volta aos limites impostos pela Constituição.
III- Convenção da UPOV (União Internacional de Proteção a Novas Variedades de Plantas) – Patentes e Proteção das Variedades de Plantas – Lei 9456/97 – "A Lei de Cultivares".
Muito embora o Brasil tenha adotado a Convenção de Paris, de 1883, as leis brasileiras de propriedade intelectual tradicionalmente proibiam a patente ou a proteção de qualquer organismo vivo. Em 1995, cedendo à pressão internacional dos Acordos Multilaterais de Propriedade Intelectual (25) - ou TRIPs - da WTO (Organização Mundial de Comércio), o Brasil levou a cabo um criterioso exame de sua legislação de propriedade intelectual (26). A Lei de Propriedade Intelectual foi alterada para incluir, entre outras, três áreas que antes não eram cobertas pela estrutura legal nacional: a farmacêutica, a de substâncias químicas, e a de certos tipos de alimentos (organismos transgênicos). Contudo, as mudanças na Lei de Propriedade Industrial não abrangiam as plantas e outros organismos vivos – Art. 10, IX, e Art. 18 da Lei 9.279/96 (27).
Para preencher o vácuo criado pela Lei de Propriedade Industrial, em 1997 o Congresso apresentou projeto, depois convertido em lei, de Proteção aos Cultivares – Lei 9.456/97. Baseada na Convenção da UPOV, de 1998 (28), a Lei de Proteção de Cultivares garante ao criador nacional ou internacional o direito à licença e ao comércio de certos tipos de plantas - cultivares, desde que o criador possa provar que a variedade vegetal foi obtida a partir de avanços em seus próprios métodos. As licenças temporárias são dadas por períodos de quinze e de dezoito anos, para plantas e plantações, respectivamente.
Desde sua criação, em 1961, a UPOV lançou várias versões da convenção original. A convenção de 1978, adotada pelo Brasil, seguiu o modelo legal sui generis (29), que permite a cada país definir o nível de proteção dado à reserva vegetal nacional, inclusive precavendo-se em relação a parceiros internacionais. Ainda com o intuito de evitar excessos ou entraves por parte de qualquer detentor de licença, a lei criou o mecanismo da licença compulsória (30) que, efetivamente, dá ao governo brasileiro o direito de usar a planta protegida e arbitrar a compensação devida ao detentor da licença pelo período de três anos. Desde o advento da lei, a Secretaria de Agricultura do Brasil emitiu centenas de certificados, em particular para os grandes agros-negócios.
Enquanto a nova legislação protege os direitos comerciais e patrimoniais de criadores e negociantes, a lei em nada previne os danos que podem ser causados ao meio-ambiente nativo pela introdução de novas plantas. Com um novo mercado e os direitos de licença garantidos, o comércio internacional de plantas deve crescer exponencialmente nas próximas décadas. Mesmo diante da evidência de que a introdução de plantas e animais não nativos já provocou o desaparecimento de ecossistemas inteiros, em várias partes do mundo, a lei não exige qualquer tipo de estudo sobre o impacto ambiental, seja por parte do detentor da licença, seja por parte das autoridades ambientais.
III – A Nova Proposta em Biosegurança – Projeto de Lei 2401/2003
Devido à controvérsia que ronda o uso de OGMs pelo Brasil e à demora da CNTbio em desenvolver uma Política Nacional de Biosegurança, o Congresso propôs uma nova norma que, em tese, viria criar um abrangente suporte legal em biosegurança. Numa primeira análise, a nova proposta em biosegurança – Projeto de Lei 2401/2003 (31), aprovada pela Câmara dos Deputados (*), segue o ciclo de vida próprio do modelo legislativo. Ao pretender controlar todos os aspectos da vida de um OGM, os principais objetivos do projeto são a regulação dos dispositivos constitucionais sobre o meio-ambiente e a criação do Conselho Nacional de Biosegurança a quem, em última análise, caberá estabelecer a Política Nacional de Biosegurança.
A mais substancial mudança na política ambiental encontrada na proposta é a incorporação do Princípio da Precaução ao texto da lei. O princípio encontra-se inserido no caput do Art.1, que define a necessidade de avanços científicos da nação, e o uso seguro de biotecnologias, desde que seja preservada a saúde humana, animal e vegetal, protegendo o meio-ambiente e seguindo o Princípio da Precaução (32) (grifo nosso).
Art. 1 – Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de inspeção na construção, cultura, produção, manipulação, transporte, transferência, importação, exportação, estocagem, pesquisa, comercialização, consumo, liberação no meio-ambiente e descarte de organismos geneticamente modificados – OGMs - e seus derivados, com os objetivos de estimular o avanço científico nas áreas de biosegurança e biotecnologia; de proteger a vida e a saúde de seres humanos, de animais e vegetais; e de proteger o meio-ambiente, em atendimento ao Princípio da Precaução. (grifo nosso).
Essa extraordinária mudança na política ambiental poderia levar à conclusão de que a controvérsia em torno dos OGMs chegou ao fim. Contudo, uma análise mais profunda nos mostra que a proposta ainda peca por não atender aos requisitos constitucionais, em especial àqueles do Art. 225, que estabelecem a elaboração do Relatório de Impacto Ambiental e a efetiva Participação Pública.
Como já mencionado, uma importante mudança proposta pelo novo projeto é a criação de um Conselho Nacional de Biosegurança (33). Responsável pelo planejamento da Política Nacional de Biosegurança, o Conselho deve ser composto por membros indicados por várias áreas do governo, dentre elas: Ciência, Agricultura, Desenvolvimento, Relações Exteriores, Meio-Ambiente, Indústria, Fazenda e Defesa. A proposta tem um dispositivo que autoriza o Conselho a, em circunstâncias excepcionais, convidar membros da sociedade civil e representantes do setor público a participarem de suas reuniões (34).Ignorando a garantia constitucional de participação pública, a proposta não oferece nenhuma luz sobre a definição de circunstâncias excepcionais. Portanto, caberá ao Conselho decidir sobre as circunstâncias que entenda serem excepcionais. Acrescente-se que, ainda que o largo leque de participantes no Conselho sugira um esforço do Congresso para promover um amplo compromisso entre todas as áreas do governo que possam vir a ser afetadas por assuntos de biosegurança, o Conselho, por si só, não será capaz de atingir as metas de proteção ambiental estabelecidas pela Constituição. Como se vê no disposto do Art. 7, apenas duas agências ambientais terão representantes ajudando a desenvolver a Política Nacional de Biosegurança: o Ministério do Meio-Ambiente e a Secretaria Especial da Presidência para a Pesca (35). Desta forma, a política de biosegurança a ser adotada pelo Congresso, e que poderá acarretar sérios efeitos ambientais, será estabelecida sem a voz forte dos ambientalistas. Por último, o Conselho terá a função de árbitro, sempre que haja uma disputa entre agências governamentais e a CNTbio.
b. A Comissão CNTbio:
Permanecendo sob a direção do Ministério de Ciência e Tecnologia, a CNTbio irá manter suas atribuições originais, incluindo o processo normativo para o ciclo de vida dos OGMs, assim como a produção das controvertidas e exaustivamente disputadas opiniões técnicas conclusivas, previamente discutidas no item I. Uma vez mais, evadindo-se das metas do Art. 1, do Projeto de Lei 2401/2003, o Congresso restringiu e diminuiu o processo adjudicatório em ações contra a liberalização de OGMs. O Art. 10, § 2, que faz parte do Capítulo III – Atribuições da Comissão (36), efetivamente evita a revisão dos padrões e métodos usados pela Comissão em licenças previamente aprovadas. Essa evasão poderá suscitar conflitos com várias outras legislações nacionais, tais como o Código do Consumidor, a Lei dos Cultivares e a ainda mais importante Política Nacional do Meio-Ambiente. A Comissão será composta por nove membros de diferentes setores da administração, e seis membros da sociedade civil, representando áreas como as de saúde, meio-ambiente, direitos do consumidor, agricultura e agroindústria.
Apesar da reestruturação da CNTbio, o projeto de lei, uma vez mais, não esclarece adequadamente os limites da autoridade regulatória da Comissão. Numa clara repetição das controversas disposições do Art. 2, do Decreto 1752/95, o Art. 11, XV, do Projeto de Lei, permite à Comissão decidir sobre o requerimento de Relatórios Sobre o Impacto Ambiental. Outro aspecto controvertido pode ser visto nos Arts. 13 e seguintes (37), os quais exigem a participação dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e, acima de tudo, do Meio-Ambiente no processo de implementação e inspeção dos OGMs, ao mesmo tempo em que limitam a participação desses órgãos nas decisões das opiniões técnicas conclusivas da Comissão. A Comissão, sob o manto de sua autoridade estatutária, terá o poder de escolher ou de reduzir o nível de proteção ambiental garantido pela lei. Ora, como já mencionamos aqui, este tipo de mecanismo circular de participação deficiente não apenas põe por terra o propósito do projeto, mas também autoriza a Comissão a produzir as mesmas decisões arbitrárias que hoje são objeto de numerosas ações judiciais. Ressalte-se, contudo, que a participação, deficiente ou não, de outras agências governamentais representantes de um largo segmento de interesses, irá restringir significativamente a capacidade do judiciário para rever as decisões da Comissão.
c. O Relatório Sobre o Impacto Ambiental e a Participação Pública sob a nova lei
Outra marcante ausência no Projeto de Lei refere-se ao direito, ou à falta deste, de participação pública no processo de tomada de decisão. O Art. 12 confere à Comissão o poder de escolha quanto ao nível de acesso e de participação pública (38). Mesmo que se requeiram reuniões públicas antes da comercialização de OGMs, tal requerimento não pode ser de imediato entendido como significativa participação pública, uma vez que o processo de tomada de decisão ainda estará firmemente restrito à Comissão e ao Conselho. A não ser que o Congresso redefina a substância e as formas de acesso público, este direito constitucional ficará reduzido a um mero abstracionismo da lei. De todo modo, ainda que a o processo de participação pública seja modificado, uma vez ausente o Relatório Sobre o Impacto Ambiental, a possibilidade do público vir a tomar uma decisão inteligente e fundamentada diminui consideravelmente. O risco calculado, preconizado pelo Princípio da Precaução, ficará restrito à análise de alguns poucos e, mais uma vez, a única via para o público será a Judiciária.
O Projeto de Lei traça uma linha divisória entre pesquisa e atividades comerciais e projetos (39). De um lado, a pesquisa experimental em laboratório (40), incluindo-se a pesquisa de campo - voltada para o cálculo do nível de risco de um OGM; e, do outro, qualquer tipo de comercialização dos OGMs (41). O projeto de lei também estabelece um processo de licença baseado na qualidade de biosegurança (42), cria um fundo de incentivo para pequenos agricultores (43) e institui sanções civis, administrativas e penais (44).
Diferentemente de outros sistemas jurídicos, a Lei Civil Brasileira não adota o mecanismo legal de danos puníveis com severas multas, capazes de desencorajar o comportamento irresponsável das empresas. A despeito da extensa lista de penalidades criminais (45), que podem ir de dois a vinte anos de detenção, o montante máximo de penalidade civil previsto no Projeto de Lei seria o equivalente a apenas US$ 500.000 (quinhentos mil dólares) (46). Mesmo nos casos em que a autoridade legal ou administrativa aplique sanções cumulativas, nem de longe se alcançaria o montante que qualquer grande corporação nacional ou multinacional teria que pagar, pelos mesmos riscos, nos Estados Unidos ou na União Européia. A aplicação de danos puníveis tem sido utilizada por vários países com indiscutível sucesso, em particular com corporações engajadas em atividades de alto risco, que podem causar danos extensos em casos de desastre ambiental (47). Tal estratégia legal encoraja o comportamento correto das corporações, não apenas em matéria de submissão às regras, mas também porque promove uma forçosa implementação de mecanismos de cálculo, administração, notificações e mitigação dos riscos ambientais.
A reparação de danos ambientais só pode ser efetivamente alcançada através de um forte mecanismo. Ainda que a mitigação e a reparação fossem suficientes, no mundo atual, riscos mais elevados devem exigir padrões mais altos de responsabilidade.