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Aborto eugênico: alguns aspectos jurídicos.

Paralelo com os direitos fundamentais da vida, da liberdade e da autonomia da vontade privada e com os direitos da personalidade no novo Código Civil

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4. O "ABORTO TERAPÊUTICO" E O "ABORTO EUGÊNICO": DIFERENÇAS CRUCIAIS

Normalmente, o aborto é tratado de forma genérica, sem diferenciar as diversas finalidades clínicas envoltas em cada caso. Basta dizer que, em algumas circunstâncias abortivas não há crime algum, quando se tratar, por exemplo, dos tipificados no Código Penal, artigo 128, incisos I e II (para proteger a vida da mãe, em extremo caso, ou em decorrência de estupro, tendo sido previamente consentido o ato cirúrgico); ou do aborto espontâneo por causas naturais; ou, ainda, aqueles em que foi incompatível a gestação com tratamento médico para doença pré-existente. Em nenhum destes procedimentos há discordância jurídica sobre a validade do ato. Mas o aborto criminoso é tratado da mesma forma que o não criminoso, o que torna confuso para quem claudica ser contra ou a favor. Por esta razão é que os abortos por motivações diversas das citadas não podem ser admitidos como legais sem um amplo debate e esclarecimento da população. Cumpre-nos, portanto, nesta etapa do trabalho, diferenciar os efeitos jurídicos que provocam dois dos mais importantes procedimentos utilizados e que estão inseridos no presente debate: o aborto terapêutico e o eugênico.

A CNTS, beneficiária da decisão em referência, tentou e conseguiu passar uma imagem ao judiciário: de que o feto anencefálico pode provocar grande risco de vida à gestante; tentou e conseguiu provar que a não preservação do feto no corpo da mãe tinha finalidade terapêutica, em face do sofrimento psicológico que a situação enseja; tentou provar mais, e convenceu que, estatisticamente, 100% (cem por cento) dos casos de anencefalia levam ao óbito do bebê e em 50% (cinqüenta por cento) ao óbito da mãe; por fim, tentou e conseguiu convencer a egrégia Corte Constitucional de que o caso já se tornara um problema de saúde pública, com mais de 1000 (mil) registros por ano, devendo-se estirpar tal mal. Portanto, a tônica abordada na ADPF foi de aborto terapêutico.

Ora, malgrado não aparentar diferenças, o aborto tido como "terapêutico" tem aplicação técnica totalmente distinta do "eugênico", residindo aí a falseta jurídica ocultada para justificar o ato.

Diz-se terapêutico qualquer ato relacionado à recuperação ou preservação da vida de alguém, mas vem sendo tratado como se tivesse relação pura e simples com a saúde. Explica-se: com o novo conceito de "saúde" definido pela OMS (37), tida como "o mais completo bem estar físico, psíquico e social", tudo se torna motivo para justificar o tratamento terapêutico e, nos casos de aborto, ainda mais. A mãe que resolva alegar qualquer tipo de perturbação em seu estado anímico provocado pela gravidez (aparentemente) indesejada, pode ensejar um pedido judicial formal, o que é muito grave.

O fator "terapêutico" leva a pensar que o ato criminoso pretendido (aborto) é coisa benéfica e necessária, pois deflui de uma necessidade de tratar medicamentosamente a pessoa atingida (no caso, a mãe) para trazer-lhe o bem estar e a plena saúde física, psíquica ou mental. Mas, na realidade, esta não é a essência do tratamento terapêutico em caso de gestantes. Ao contrário, o objeto central, e que também é o de excludência de ilicitude, é o iminente perigo de vida da mãe, e não o seu estado de saúde, como bem assevera o criminalista Cézar Roberto Bitencourt (38):

"O aborto necessário, também conhecido como terapêutico (...) exige dois requisitos simultâneos: a) perigo de vida da gestante; b) inexistência de outro meio para salvá-la. O requisito básico e fundamental é o iminente perigo à vida da gestante, sendo insuficiente o perigo à saúde, ainda que muito grave. O aborto, ademais, deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso contrário o médico responderá pelo crime. Logo, a necessidade não se faz presente quando o fato é praticado para preservar a saúde da gestante ou para evitar a desonra pessoal ou familiar."

Mas foi justamente o estado de saúde mental da gestante o princípio erroneamente invocado pelo MM ministro do STF, como justificativa de sua decisão, verbis:

"Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social."

Ademais, como decanta Dernival da Silva Brandão (39) :

"Criança doente necessita de cuidados médicos e não de ser eliminada. O diagnóstico pré-natal deve ser realizado enquanto possa servir ao bem da pessoa, e ser adequado à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento de enfermidades; e não para discriminar os portadores de genes patogênicos e defeitos congênitos. Senão aplicar-se-iam conhecimentos médicos não para tratar o doente, mas para eliminá-lo (...) Sempre há meios de tratar a gestante e, para isso, devem ser empregados todos os recursos atualmente disponíveis na proteção da vida de ambos: mãe e filho. Uma conduta médica atualizada, aliada à experiência clínica e ao progresso técnico científico levará, por certo, ao bom êxito a gravidez; e o insucesso, se houver, ficará restrito ao seu casualismo e à sua imprevisibilidade. Quando necessário, a gestante doente deve ser encaminhada para centro especializado em gestação de alto risco.O abortamento não é isento de riscos, e a experiência tem demonstrado que muitas vezes ele próprio é causa da morte para a gestante doente".

Assim, ao contrário do que aparenta, o que se operou na liminar concedida foi a autorização para o aborto eugênico, que é puro eufemismo para o racismo, o neo-nazismo e a pregação de uma técnica abominável de seleção artificial do ser humano. Para os desconhecedores, "eugenia", segundo Antônio Houaiss (40), é a "Ciência que se ocupa do aperfeiçoamento físico e mental da raça humana". Noutras palavras, é a busca pela raça pura, a mesma propagada pela Alemanha de Hitler.

Em nome da qualidade de vida, busca-se o pretexto da eutanásia, da alteração da carga genética (daqueles que querem escolher a cor dos olhos e do cabelo do filho) e do aborto de seres tidos como de menos relevância para sociedade. Mais uma vez trazemos à baila os esclarecimentos quase proféticos de Dernival da Silva Brandão (41) que em seus escritos de 1999 já alertava:

"É importante esclarecer que o aborto provocado para matar um nascituro doente não tem a conotação do denominado aborto terapêutico, e sim de aborto eugênico: como no caso da gestante que tenha contraído rubéola, mata-se a criança não nascida diante da possibilidade de que venha a nascer doente. No entanto estão a autorizar e a fazer abortos eugênicos, em casos de malformações, como por exemplo os anencefálicos, rotulando-os de ‘ terapêuticos’. Caso esta prática nefanda venha a se tornar rotineira com os anecéfalos e estendida a outras malformações, não é difícil concluir que servirá de argumento para legalização do aborto eugênico."

Em jogo está um trocadilho de palavras (terapêutico - eugênico) que faz com que a incauta população se sensibilize com o fato de a mãe de um anencéfalo concebido estar sofrendo psicologicamente (situação da qual não duvidamos, ao contrário) e, em razão disso, apóie a decisão de se estirpar o ser gerado.

Ora, a decisão do eminente ministro "constitucionalista" envereda por aprovar que toda e qualquer mãe que carregue em seu ventre tal criança mal formada possa fazer a opção do aborto, abrindo-se graves e irreversíveis precedentes, por exemplo: para as mães recém saídas da adolescência e que não têm o conhecimento necessário do peso desta decisão; também, para os casos de diagnóstico errôneo; bem como, para as situações de puro capricho daquelas infames mães que não queriam ter engravidado, enveredando por tentar o aborto medicamentoso sem sucesso, gerando assim a deficiência na formação, pois, desta forma, o primeiro ato criminoso ficaria acobertado pelo segundo, já que autorizado.

O fato é que a eugenia, essência maior contida no entendimento judicial proferido, é a porta de entrada para relativização da vida humana, doravante abordada.

4.1 Relativização da vida humana

A malfadada apreciação do ministro Marco Aurélio de Mello esconde dos olhos mais ingênuos da população outra questão, não menos grave e importante: a relativização da vida humana, com reflexo direto no artigo 5º da CF/88 e no Direito Civil, quando tratada sob a ótica dos artigos 1º e 2º do NCC.

No entendimento do magistrado (que de forma alguma deve refletir o entendimento do judiciário brasileiro), o que valerá mais? A vida do bebê ou a saúde da mãe? A vida do bebê ou a vida da mãe? A vida de um ser normal ou a de um anencefálico? Sob estes três prismas discorre-se, um a um, a malfadada pretensão de aquilatar os valores estabelecidos nestas afirmações.

A sentença lingüística de sua excelência não deixa dúvidas: "(...) diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia a dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar". Noutras palavras, entre um feto mal formado e um sentimento de repulsa humana, mate-se o feto, tranqüilize-se a pessoa! Têm-se aí a mais pura expressão da eugenia, da qual falávamos anteriormente. Se não for um ser socialmente aceito, porque deformado, nem útil para sociedade, por que permitir que nasça? Jaques de Camargo Penteado (42) relata que, em 1920, o psiquiatra Alfred Hoche e o jurista Karl Binding publicaram o livro "A destruição da vida carente de valor" no qual se referiam à prática de destruição de pessoas nascidas ou em fase de gestação consideradas deficientes ou menos úteis para a sociedade. Esta obra constituiu-se no marco inicial de uma mentalidade humana abominável que se espalhou pela época e mais tarde influenciou Hitler a idealizar o movimento de supremacia ariana, provocando o desfecho que todos nós conhecemos. É inadmissível a equiparação de um sofrimento mental com o valor que possa ter uma vida humana, por mais deficiente que seja. Aliás, se estamos falando de colisão de direitos, o valor a ser subordinado aqui é do primeiro em relação ao segundo e, não, o contrário.

Também inconcebível, permissa vênia, é qualquer suposta equiparação entre a vida de um bebê normal com a de um anencefálico. Da exposição do augusto ministro não se deduz outra lição, senão a de que o mal formado deve ser ceifado para que se alivie os traumas de uma gestação desta natureza, coisa que o bem formado não produziria? A Constituição Federal é latente: "TODOS SÃO IGUAIS PERANTE A LEI, SEM DISTINÇÃO DE QUALQUER NATUREZA (...)" Como é possível então a Corte constitucional brasileira (leia-se, o ministro) tentar convencer que, por ser defeituoso e ter menos chances de sobrevivência extra-uterina, não seja merecedor de vir ao mundo? Seria a maior expressão de contra-senso já registrada nos anais do STF.

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Por fim, de igual forma, não se pode aceitar a idéia do aborto pela alegativa de que a mãe correria risco de vida se mantivesse o ciclo gestacional, vez que o risco não é necessariamente fato consumado, nem em consumação e, sim, de suposta eventualidade. Lembremos sempre que a excludência capitulada no artigo 128 do Código Penal pátrio é o de iminente perigo de vida e não de uma estatística possível de acontecer. Fosse assim, matar-se-iam todos os pacientes internados em estado grave na UTI de um hospital. O apelo sentimental de que a vida da mãe corre risco é mais uma tentativa dos abortistas de sensibilizar a opinião pública, mas por trás de tudo está uma disfarçada equiparação de vidas humanas (a do bebê e a da mãe), inadmissível como pré-falado.

Uma última vez, Dernival da Silva Brandão (43), analisa:

"O valor da vida humana é imponderável. Não há vidas humanas ‘carentes de valor’, como foi preconizado tempos atrás no ‘nacional-socialismo alemão’. Não é a vida do mendigo de menor valor que a do rico, do súdito que a do rei, do cidadão comum que a do presidente, do nascituro que a da mãe. A mãe tem direito à sua vida e o nascituro à sua também. Ambas devem ser respeitadas e merecem o empenho para salvá-las."

4.2 – Insubordinação de direitos fundamentais: eficácia horizontal imediata

Outra questão é saber se existe qualquer relação de subordinação entre os direitos aqui elencados: vida, liberdade e autonomia de vontade. À guisa do que comentamos no item 3.3, a liberdade é direito fundamental, assim como a vida, mas que no cenário jurídico montado, não se afrontam. A liberdade concedida à gestante será sempre prévia ao ato da concepção, ou seja, decidir ou não pela gravidez, pois o momento posterior é reservado a outro direito fundamental: o da vida, e, este último, como visto, é idêntico para mãe e filho.

Os constitucionalistas costumam discutir sobre a relação de aplicabilidade de direitos fundamentais quando há uma aparente colisão entre si. Abre-se aqui um parêntese (pequeno, para não se tornar enfadonha a discussão, mas suficiente para clarear nossa posição), para abordarmos a verticalidade e a horizontalidade, mediatidade e imediatidade de tais direitos perante os indivíduos sociais.

Sustentam alguns, em detrimento de respeitáveis posicionamentos contrários (44), que os direitos fundamentais têm aplicabilidade e eficácia imediata, porquanto não dependem da ordem jurídica privada para se verem realizados, com o que concordamos, justificando-se assim a indiferença de nossa postura à autonomia da vontade privada, tão reluzida pelo eminente ministro Marco Aurélio de Melo em seu voto. As relações entre os particulares (entendidas como de eficácia horizontal), quando feridas, são postas perante o Estado-Juiz para que este emoldure a relação desavençada à lei estabelecida, porque este é um dever seu, inarredável. Neste mister, outra não pode ser a atitude do magistrado senão a de afastar qualquer hipótese de contrariedade aos princípios modulares do direito, quando mais, se tratar, como no caso debatido, de direitos fundamentais insubordináveis. Assim, data vênia, aos entendimentos contrários, entendemos que, em causa, estão direitos de mesmo patamar que não se sobrepõem, que são fundamentais e, portanto, de eficácia imediata. Não poderia, pois, o arguto STF ter proferido decisão contrária privilegiando direito da mãe em detrimento do nascituro.

Luiz Guilherme Marinoni (45), em profundo estudo do tema, assim abordou:

"O problema que se coloca diante da eficácia horizontal é o de que nas relações entre particulares há dois (ou mais) titulares de direitos fundamentais, e por isso nelas é impossível afirmar uma vinculação (eficácia) semelhante àquela que incide sobre o Poder Público. (...) Assim, além da incidência das normas, como valores objetivos, sobre as relações entre particulares, um particular pode afirmar o seu direito em relação a outro, consideradas as particularidades da situação concreta e eventual colisão de direitos (...)Há grande discussão sobre a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Há quem sustente que os direitos fundamentais possuem eficácia imediata sobre as relações entre os particulares, e outros apenas mediata (...) Como já foi dito, o direito de proteção tem como destinatário o Estado, que fica obrigado a editar normas para proteger o direito do particular em relação a outros particulares. Quando uma dessas normas de proteção não é cumprida, surge ao particular o direito de se voltar contra o particular que não a observou (...) Nessa hipótese, embora a eficácia do direito fundamental suponha a participação da lei infraconstitucional, o verdadeiro problema é o da harmonização entre o direito fundamental protegido pela norma e a autonomia privada."

De tudo se conclui que o Estado-Juiz, representado na decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio, afastou-se do entendimento consagrado e inflexível de direitos fundamentais para se aventurar, concessa vênia, em uma vereda sem volta, pois por mais que não seja sufragada, a decisão proferida já está incutida no seio social abortista e gerou esperanças em corações maternos pouco compromissados com a vida.

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Sobre o autor
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale. Aborto eugênico: alguns aspectos jurídicos.: Paralelo com os direitos fundamentais da vida, da liberdade e da autonomia da vontade privada e com os direitos da personalidade no novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5622. Acesso em: 5 nov. 2024.

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