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Meio ambiente do trabalho: descrição jurídico-conceitual

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06/03/2017 às 10:22
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4. Meio ambiente do trabalho: proposta conceitual

Abordagens conceituais do meio ambiente do trabalho geralmente são marcadas pela tentativa de trilhar uma das seguintes alternativas: ou se empreende a construção de um conceito livre das amarras da referência normativa de meio ambiente ou se labuta com o conceito legal de meio ambiente buscando conferir-lhe termos passíveis de acomodar as nuanças da realidade labor-ambiental.

À luz da concepção conceitual clássica, quem envereda pela intenção de deixar de lado qualquer referência ao texto legal, de regra cai no erro de formar um arco conceitual com eixo fortemente preso à noção de local da prestação dos serviços. De outra mão, quem opta pelo segundo caminho peca, geralmente, ou por enclausurar a dimensão labor-ambiental aos específicos fatores de interação citados na lei (físicos, químicos e biológicos) – olvidando interações outras de relevantíssima incidência na ambiência laboral (como as psicossociais) – ou por não deixar claro se sua formulação é apta a também abranger trabalhadores não imersos em um liame empregatício. Tais linhas restritivas serão abordadas a seguir.

4.1. Primeira linha conceitual restritiva: meio ambiente do trabalho como local de trabalho

É relativamente comum nos depararmos com conceitos jurídicos de meio ambiente do trabalho construídos em torno da ideia de local onde se presta serviços. A grande maioria dos constitucionalistas e jusambientalistas, por exemplo, trabalha com essa categoria de pensamento. Também diversos juslaboralistas compartilham do mesmo enfoque.

Veja-se que, para José Afonso da Silva, meio ambiente do trabalho é “o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente”[19]. Para Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, meio ambiente do trabalho é “o espaço-meio de desenvolvimento da atividade laboral, como o local hígido, sem periculosidade, com harmonia para o desenvolvimento da produção e respeito à dignidade da pessoa humana”[20]. Celso Antonio Pacheco Fiorillo, a seu turno, afirma que meio ambiente do trabalho é “o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais relacionadas à sua saúde”[21].

Há de se reconhecer, todavia, que todas as construções conceituais de meio ambiente do trabalho alicerçadas na estática noção de local de trabalho incorrem em inaceitável reducionismo. Em primeiro lugar, porque se prestam a tratar como sinônimas duas figuras inconfundíveis: meio ambiente do trabalho e estabelecimento, compreendido estabelecimento como “cada uma das unidades da empresa”[22]. Sobre esse particular, registramos, desde logo, nossa respeitosa discordância com a assertiva de que, em determinadas situações, haveria inteira coincidência entre meio ambiente laboral e estabelecimento. É o que defende Guilherme José Purvin de Figueiredo, ao aduzir que:

É certo que a maioria dos trabalhadores se insere em aglomerados urbanos, labutando no interior de indústrias, escritórios, hospitais, supermercados, escolas, etc. Nestas situações, a fixação do trabalhador dá-se de forma tão localizada que não haveria necessidade de se distinguir a noção de meio ambiente de trabalho (local onde o trabalhador está desenvolvendo a sua atividade profissional) da noção de estabelecimento, por serem coincidentes, ao menos enquanto o estabelecimento for o palco da ação laboral.[23]

Nossa divergência reside no fato de que, seja em que contexto for e à luz do que expusemos anteriormente, o local da prestação dos serviços sempre representará apenas e tão somente uma parcela da realidade labor-ambiental – quiçá a sua expressão mais visível e tangível, mas que, certamente, a ela não se resume. Ora, se há convicção científica de que o meio ambiente é resultado de uma complexa interação de diversos fatores naturais e sociais, não haverá sentido restringir o conceito de meio ambiente do trabalho a um local ou espaço. Afinal, como destaca em outra obra o próprio autor citado, quando se fala em interação o que se pretende é justamente evitar fixações de limites geográficos ao conceito de meio ambiente, ou seja, “não se focaliza uma área rigidamente delimitada, mas uma dinâmica, isto é, a interação do conjunto de elementos diversos[24].

Dessarte, mesmo no trabalho prestado em locus fixo (v.g., em uma escola ou escritório), o meio ambiente do trabalho, além dos componentes materiais móveis e imóveis que circundam o obreiro, também englobará, como já acentuamos, componentes materiais e imateriais outros, relativos à organização do trabalho e à própria qualidade das interações interpessoais travadas no contexto laborativo, a exemplo das que sucedem entre colegas de trabalho, para com superiores hierárquicos e até frente a clientes.

Assim, se temos o meio ambiente de trabalho como uma realidade que resulta da interação de inúmeros fatores, a englobar, dinamicamente, componentes naturais, técnicos e psicológicos, o que disso resulta é que qualquer tentativa de identificação do meio ambiente do trabalho com o espaço físico ou mesmo com o estabelecimento empresarial onde o trabalho é exercitado decerto importará cometimento de incômodo deslize técnico, porque o campo de referência descrito expressará senão que apenas uma pequena parcela da intrincada realidade que se pretende compreender.

Esse viés de pensamento se revela igualmente inapropriado porque arrosta com a própria essência da conceituação legal de meio ambiente reconhecida na Lei nº 6.938/1981, retratada como “conjunto de condições, leis, influências e interações”, construção textual que, por si só, ao remeter naturalmente para as noções de interação e dinamicidade, desestimula a fixação de qualquer cerne compreensivo de meio ambiente que se pretenda enclausurar em dimensões físico-geográficas.

Além dessa linha de argumentação técnica, a própria lógica das coisas também impõe que se rejeite uma tal concepção restritiva de meio ambiente do trabalho. Com efeito, a se abraçar a ilação de que o meio ambiente laboral poderia se resumir, em alguma hipótese, ao espaço do estabelecimento, enfrentaríamos alguma dificuldade para assimilar a situação de uma miríade de trabalhadores que atua fora do estabelecimento da empresa.

O perigo, aqui, estaria em correr o risco de transmitir a falsa percepção jurídica de que o ente labor-ambiental não tocaria à realidade daqueles que, por exemplo, “prestam serviço sem definição de endereço, como os motoristas de ônibus, os carteiros, os vendedores externos, os entregadores de produtos etc.”[25], e que, exatamente por força dessa especial circunstância, estariam alheios ao maravilhoso plexo protetivo jusambiental que deflui de nossa Carta Constitucional. Nada estaria tão equivocado.

4.2. Segunda linha conceitual restritiva: meio ambiente do trabalho como foco de interações labor-ambientais exclusivamente naturais

Meio ambiente, segundo a legislação brasileira, é “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (Lei nº 6.938/1981, art. 3º, I[26]). Há inúmeras propostas conceituais de meio ambiente laboral que buscam trabalhar com esse conceito legal de meio ambiente. João José Sady, por exemplo, afirma que meio ambiente do trabalho “é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida das pessoas nas relações de trabalho”[27]. Entrementes, de pronto, tal proclamação doutrinária desafia forte crítica, mercê do restritivíssimo rol de fatores de interação ambiental que abraça.

De início, cumpre destacar que não só a biosfera, mas também a sociosfera, na qualidade de espectro humanamente construído, representa domínio fenomênico verdadeiramente integrado à dimensão ambiental, haja vista o seu enorme poder de influência e impacto, diretamente e por diversas maneiras, perante a qualidade da vida humana e o esperado equilíbrio ecológico. Por isso, a tendência hodierna tem seguido pelo reconhecimento de que o bem ambiental, juridicamente, é figura complexa, integrada por componentes naturais e culturais/humanos, com múltiplos fatores em intensa e mútua interação. Logo, não se tem como negar que tal dimensão venha a ser também reconhecida, em perspectiva jurídica, como um legítimo componente do plexo jusambiental[28].

Desse modo, a menção tão só a fatores físicos, químicos e biológicos traduz indesejado contingenciamento do objeto de estudo, porque parte de uma concepção ambiental exclusivamente ecológica. Não se tem espaço, em formulação desse jaez, para interações outras, como as psicossociais, fortemente presentes na seara labor-ambiental.

Ademais, é bem provável que a assimilação de uma linha restritiva quanto a fatores ambientais de interação, absorvendo-se, acriticamente, a literalidade do enunciado normativo que define meio ambiente, seja apenas o reflexo da restrição anterior: crer que o meio ambiente do trabalho é o preciso local da prestação dos serviços. Realmente, se partimos dessa ordem de pensamento, resulta como inevitável a ilação de que os fatores de interação identificados no labor-ambiente serão exclusivamente aqueles mais jungidos a uma dimensão físico-espacial, com notório prejuízo intelectivo.

4.3. Terceira linha conceitual restritiva: meio ambiente do trabalho como dado da realidade adstrito ao cenário laboral empregatício

Guilherme José Purvin de Figueiredo, por sua vez, conceitua meio ambiente do trabalho como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química, biológica e social que afetam o trabalhador no exercício de sua atividade laboral”[29]. Esse conceito avança sobremaneira quando leva em conta a dimensão social, proeminente do meio ambiente laboral, mas falha ao não deixar claro se, juridicamente, também se aplicaria a ambiências envolventes de obreiros sem vinculação hierárquico-empregatícia (v.g., abrangeria a realidade labor-ambiental de autônomos, estagiários ou servidores públicos estatutários?).

É que, como bem se sabe, tecnicamente, há distinção entre relação de emprego e relação de trabalho. Nesse particular, vigora a mesma lógica existente entre espécie e gênero, ou seja, a relação de emprego constitui espécie do gênero relação de trabalho, que, de sua parte, “refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano[30]. Já relação de emprego é o específico vínculo jurídico-laborativo em que o trabalhador se afigura como “pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário” (CLT, art. 3º[31]).

Assim, embora seja correto afirmar que toda relação de emprego expressa uma relação de trabalho, o contrário não é verdadeiro: nem toda relação de trabalho expressa uma relação de emprego. É o caso do liame jurídico firmado com o trabalhador autônomo, avulso, eventual, voluntário, bem assim com o estagiário, o representante comercial, além de outros, que, juridicamente, exercem atividade de trabalho, mas não atividade de emprego[32].

Não temos a menor dúvida em afirmar que toda essa estruturação jurídica do meio ambiente do trabalho, em especial no que tange à sua tríplice composição de fatores de risco (condições de trabalho, organização do trabalho e relações interpessoais), aplica-se, sem ressalvas, a qualquer cenário jurídico laborativo. Noutras palavras: qualquer relação jurídica cuja prestação essencial esteja centrada em obrigação de fazer consubstanciada em labor humano será sempre praticada frente a um específico meio ambiente de trabalho. É dizer: não existe prestação laboral sem correspondente meio ambiente laboral.

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Que consequências extraímos disso? Ora, se a todo labor humano corresponde uma ambiência laboral e se o meio ambiente de trabalho integra o plexo jurídico-ambiental, forçoso concluir que todo o majestoso estuário jurídico do Direito Ambiental há de incidir não apenas nas específicas relações de emprego, senão que, em verdade, perante toda e qualquer relação de trabalho.


5. Meio ambiente do trabalho e atual estado da arte: análise crítica e proposta conceitual

Acreditamos que uma proposta conceitual adequada para o meio ambiente do trabalho deve ser capaz de, no mínimo, suplantar as três linhas restritivas supracitadas. Alguns já seguem por esse caminho. É o caso de Julio Cesar de Sá da Rocha, para quem:

[...] opta-se por um conceito de meio ambiente amplo, que inclua não somente os elementos naturais (água, flora, fauna, ar, ecossistemas, biosfera, recursos genéticos etc.), mas também os componentes ambientais humanos, em outras palavras, o ambiente construído pela ação antrópica. [...] o meio ambiente do trabalho representa todos os elementos, inter-relações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde física e mental, comportamento e valores reunidos no locus de trabalho. [...] o meio ambiente do trabalho constitui o pano de fundo das complexas relações biológicas, psicológicas e sociais a que o trabalhador está submetido. Claro que não pode ser compreendido como algo estático, pelo contrário, constitui locus dinâmico, formado por todos os componentes que integram as relações de trabalho e que tomam uma forma no dia a dia laboral, como a maquinaria, as matérias-primas, a clientela, os trabalhadores, os inspetores, a chefia. Todos constituem peças que podem ser encontradas no local de trabalho.[33]

Igualmente, Cláudio Brandão, ao referir que o meio ambiente do trabalho é:

[...] o conjunto de todos os fatores que, direta ou indiretamente, se relacionam com a execução da atividade do empregado, envolvendo os elementos materiais (local de trabalho em sentido amplo, máquinas, móveis, utensílios e ferramentas) e imateriais (rotinas, processos de produção e modo de exercício do poder de comando do empregador).[34]

Já para Adelson Silva dos Santos:

Meio ambiente do trabalho não é só as instalações físicas, mas todo um complexo relacional desde a forma de organização do trabalho até a satisfação dos trabalhadores, porquanto ambiência de desenvolvimento do trabalho humano, não se restringindo ao ambiente interno da fábrica ou da empresa, porém alcançando o próprio local de moradia ou ambiente urbano. O habitat laboral está interligado com o meio ambiente total.[35]

Mônica Maria Lauzid de Moraes, palmilhando pela mesma senda, define o meio ambiente do trabalho nos seguintes termos:

Meio ambiente laboral é onde o homem realiza a prestação objeto da relação jurídico-trabalhista, desenvolvendo atividade profissional em favor de uma atividade econômica. [...] No enfoque global, não só o posto de trabalho (local de prestação), mas todos os fatores que interferem no bem-estar do empregado (ambiente físico), e todo o complexo das relações humanas na empresa, a forma de organização do trabalho, sua duração, os ritmos, os turnos, os critérios de remuneração, a possibilidade de progresso etc., servem para caracterizar o meio ambiente do trabalho. [...] é a interação do local de trabalho, ou onde quer que o empregado esteja em função da atividade e/ou à disposição do empregador, com os elementos físicos, químicos e biológicos nele presentes, incluindo toda sua infraestrutura (instrumentos de trabalho), bem como o complexo de relações humanas na empresa e todo o processo produtivo que caracteriza a atividade econômica de fins lucrativos.[36]

Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo e Sandro Nahmias Melo também oferecem excelentes comentários a respeito desse assunto, em especial quanto à importância de se considerar as relações interpessoais como componentes do meio ambiente do trabalho. Seguem suas valiosas colocações:

O meio ambiente do trabalho não está, como se sabe, adstrito ao local, ao espaço, ao lugar onde o trabalhador exerce as suas atividades. Ele é definido por todos os elementos que compõem as condições (materiais e imateriais) de trabalho de uma pessoa. [...] O conceito de meio ambiente do trabalho deve abranger, sobretudo, as relações interpessoais (relações subjetivas), principalmente as hierárquicas e subordinativas, pois a defesa desse bem ambiental espraia-se, em primeiro plano, na totalidade de reflexos na saúde física e mental do trabalhador. Conclui-se, nesse sentido, que o meio ambiente de trabalho engloba o espaço e as condições físicas e psíquicas de trabalho, com ênfase nas relações pessoais. O conceito abrange a relação do homem com o meio (elemento espacial de viés objetivo) e a relação do homem com o homem (elemento social de viés subjetivo). Trata-se, assim, de uma dinâmica complexa de múltiplos fatores, não se restringindo, somente, a um espaço geográfico delimitado e estático.[37]

Essa necessidade de ampliação de foco foi objeto de reflexão por parte de Guilherme Guimarães Feliciano, quando, fugindo daquela tríplice limitação antes gizada, abandona qualquer construção pautada na noção de local de trabalho, reconhece uma dimensão psicológica como própria e inerente ao habitat laboral, bem como estende sua visão para além do específico cenário jurídico empregatício. Partindo dessas sadias balizas e no escopo de aprimorar, doutrinariamente, o texto legal que conceitua meio ambiente, passa a assim conceituar o meio ambiente do trabalho: “é o conjunto (= sistema) de condições, leis, influência e interações de ordem física, química, biológica e psicológica que incidem sobre o homem em sua atividade laboral, esteja ou não submetido ao poder hierárquico de outrem[38].

Diante do quanto exposto, dessume-se que, na atual quadra do pensamento científico, é de total inadequação e insuficiência a clássica construção conceitual que vê o meio ambiente do trabalho como simples “local da prestação de serviço”, afigurando-se mesmo, hoje, tal linha, um constructo deveras obsoleto[39]. É que, ao se manter enlaçado ao plano do “chão de fábrica”, com forte ênfase em um matiz estático-espacial, o estudioso acaba propagando noção sobremodo restritiva de meio ambiente do trabalho, na medida em que centra foco apenas em aspectos atinentes às condições de trabalho, deixando muitas vezes ofuscados aspectos labor-ambientais outros igualmente relevantes para a saúde e segurança do trabalhador, tais como os relacionados à qualidade da organização do trabalho implementada e das relações interpessoais travadas na ambiência laboral.

Seguindo esse diapasão, o meio ambiente do trabalho deixa de ser, portanto, apenas uma estrutura estática e passa a ser encarado como um sistema dinâmico e genuinamente social. É dizer: a linha conceitual clássica de meio ambiente do trabalho sempre se confundiu com a ideia do local da prestação de serviço, com ênfase no aspecto físico da questão. Entretanto, a vereda que aqui propomos aponta para direção diversa: toma como referência a pessoa do prestador de serviço, com ênfase no aspecto humano da questão.

Com efeito, o clássico conceito de meio ambiente laboral, assentado no senso comum que o reduz à noção de local de trabalho, é uma construção cuja pedra angular é o trabalho. Isso só reforça nossa convicção de que o desafio atual está em erigir um conceito de labor-ambiente que, efetivamente, gire em torno do trabalhador e não do trabalho. Um conceito de meio ambiente laboral, para ser mais preciso, que esteja alicerçado na primorosa ideia de dignidade humana. Durante muito tempo, por exemplo, imperou a concepção de que cabe ao homem se adaptar ao trabalho. Todavia, à luz das regras da ergonomia[40], consagra-se, hoje, o pensamento inverso: é o trabalho que deve se adaptar ao homem. Esse é um bom exemplo do alvissareiro giro humanístico que se tem emprestado ao tema.

Com isso, deixaremos, enfim, de pôr ênfase na descrição física do específico local onde se presta serviço, para passar a realçar a complexa interação de fatores que, ao fim e ao cabo, beneficia ou prejudica a qualidade de vida do ser humano investido no papel de trabalhador. Urge, portanto, fazer com que esse autêntico giro humanístico também repercuta na conceituação jurídica do próprio meio ambiente do trabalho.

É preciso deixar bem vincado este ponto: o importante, para fins de elaboração de um conceito adequado de meio ambiente do trabalho, não está apenas em tentar alcançar toda a complexidade ínsita à ambiência laboral, visualizando e assimilando, de alguma maneira, a tríade condições de trabalho, organização do trabalho e relações interpessoais. A questão também está em se deixar conduzir, nessa delicada empreitada intelectiva, por um fio condutor eminentemente existencial, na medida em que permeado pela preocupação e observação de tudo quanto afeta ou ameaça afetar, mais diretamente, a saúde e a segurança do ser humano que trabalha, deixando de lado abordagens exclusivamente físico-naturais ou meramente patrimoniais/contratuais, pouco comprometidas com as prodigiosas diretrizes constitucionais.

É essencialmente humanista, por exemplo, o conceito de meio ambiente laboral esposado pelo Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao afirmar que “meio ambiente do trabalho é o conjunto de condições existentes no local de trabalho, relativos à qualidade de vida do trabalhador”[41]. Perceba-se, nessa construção conceitual, que o centro de gravidade jurídica jaz acentuadamente no potencial de impacto na qualidade de vida do trabalhador, em detrimento de uma pálida descrição físico-ambiental do local onde se presta serviço.

Cremos que perspectiva desse quilate, dotada de contorno mais alargado, decerto contribuirá para o aprimoramento do conceito jurídico do meio ambiente em geral, blindando-o de concepções reducionistas, como essas referidas, de ordem ecológica e mecanicista. Serve, igualmente, para a melhor compreensão do meio ambiente do trabalho, na medida em que passa a considerar grande parte do denso caldo socioeconômico e técnico-produtivo subjacente à ambiência laboral e que, de algum modo, direta ou indiretamente, também é capaz de influir na qualidade de vida do trabalhador. Afinada está, também, com os ditames constitucionais, que solenemente consideram como típica questão ambiental a conflituosa dinâmica humana travada no meio ambiente de trabalho (CF, art. 200, VIII).

Outra questão importantíssima para bem se compreender a pertinência desse citado viés existencial reside na constatação de que se estabeleceu, expressamente, em nosso ordenamento jurídico, o conceito contemporâneo de saúde alinhavado pela Organização Mundial de Saúde – OMS, consistente no “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”[42]. É que tal definição inspirou o teor do art. 3º, alínea “e”, da Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (1983), ao dispor que “o termo saúde, com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho”[43], sendo que tal Convenção foi expressamente incorporada ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto nº 1.254/1994[44].

Ora, se, hodiernamente, saúde significa não mais mera ausência de doenças, mas, sim, a presença de “completo bem-estar físico, mental e social”, ou seja, efetiva qualidade de vida, e estabelecendo a Constituição Federal de 1988 que é direito fundamental dos trabalhadores a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XII), bem assim consignando o Texto Constitucional que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225, caput), compreendendo-se na ideia de meio ambiente também o meio ambiente laboral (art. 200, VIII)[45], outra conclusão não se pode chegar: a escorreita noção de meio ambiente do trabalho, para fins de tutela jurídica plena com vistas à sadia qualidade de vida do ser humano que trabalha, deve levar em conta não apenas os clássicos riscos físicos, químicos e biológicos, mas também deve considerar aqueles riscos mais consentâneos à realidade da ambiência laboral: os riscos ergonômicos e os riscos psicossociais

De se perceber, pelo quanto exposto, que o presente texto parte da ideia de que a compreensão adequada do meio ambiente laboral pressupõe tomar como linha de reflexão não apenas a interação homem/natureza, mas também as interações homem/técnica e homem/homem[46]. Em resumo: erigir um conceito científico apropriado de meio ambiente do trabalho demanda que, a um só tempo, empreenda-se um avanço quantitativo, consistente no englobamento de todas as dimensões da realidade labor-ambiental, e um avanço qualitativo, impondo ênfase forte no parâmetro ético-jurídico da dignidade. Em nossa modesta forma de pensar, só assim o resultado poderá ser, de fato, não apenas mais fenomenicamente realístico, como também mais juridicamente satisfatório.

Busca-se, desse modo, um conceito de meio ambiente do trabalho essencialmente dinâmico. Por isso, tem razão Julio Cesar de Sá da Rocha quando afirma que:

 [...] há que se perceber o caráter relativo e profundamente diferenciado de prestação da relação de trabalho e do espaço onde se estabelecem essas relações. Com efeito, a tamanha diversidade das atividades implica uma variedade de ambientes de trabalho. A referência acerca do meio ambiente de trabalho assume, assim, conteúdo poliforme, dependendo de que atividade está a ser prestada, e como os ‘componentes’ e o ‘pano de fundo’ reagem efetivamente. [...] a noção de meio ambiente do trabalho não pode ser imutável, pelo contrário, necessita refletir as evoluções sociais e técnicas que constantemente se aprimoram.[47]

Aliás, não se olvide que, tratando-se de espectro ambiental que mantém as características do todo, também o meio ambiente do trabalho precisa ser assimilado de modo gestáltico e avaliado em perspectiva sistêmica[48]. Nessa perspectiva, fica mais fácil assimilar as profundas correlações existentes entre as condições de trabalho, a organização do trabalho e as relações socioprofissionais havidas em sede labor-ambiental.

Por sinal, o próprio Christophe Dejours nos fornece um bom exemplo de como a organização do trabalho pode contribuir diretamente para a dilaceração das relações interpessoais havidas em um determinado contexto laborativo, com patente prejuízo à saúde mental dos trabalhadores. Confira-se:

Um exemplo caricatural dessa desestruturação da linha de montagem é dado por certas fábricas automobilísticas da região parisiense, onde se constrói uma linha segundo a sequência seguinte: um operário árabe, depois um iugoslavo, um francês, um turco, um espanhol, um italiano, um português etc., de modo a impedir toda e qualquer comunicação durante o trabalho. Assim, frustração e a ansiedade serão vivenciadas no isolamento e na solidão afetiva, aumentando-se ainda mais. [...] A desorganização dos investimentos afetivos provocada pela organização do trabalho pode colocar em perigo o equilíbrio mental dos trabalhadores.[49]

Karl H. E. Kroemer e Etienne Grandjean também tratam da importância de uma organização do trabalho que favoreça interações entre os trabalhadores. Seguem suas sugestões:

A oportunidade de conversar com colegas de trabalho é uma maneira efetiva de evitar o tédio. Ao contrário, o isolamento social traz a monotonia e aumenta a tendência ao tédio com o trabalho. Sentar ao longo de uma linha de montagem é ruim: é melhor se a linha tem a forma de semicírculo ou é sinuosa. Qualquer arranjo é bom, se aproxima vários trabalhadores dentro de uma distância de conversação. Outras maneiras de reduzir a incidência do tédio incluem: pausas mais frequentes e curtas; oportunidade de movimentação durante essas pausas; um leiaute de entorno estimulante, usando luz, cor e música.[50]

Todavia, muito mais que um espectro inarredavelmente dinâmico, almeja-se um conceito de meio ambiente do trabalho que seja também essencialmente humanista, na exata medida em que sensível com a preocupação de dar efetiva salvaguarda à sadia qualidade de vida de todos quantos imersos na relação laboral ou que com ela, de algum modo, interagem, direta ou indiretamente, a exemplo de clientes, fornecedores e a própria comunidade circunvizinha.

À vista do que até aqui se expôs, ousamos então registrar que, a nosso sentir, juridicamente, meio ambiente do trabalho é a resultante da interação sistêmica de fatores naturais, técnicos e psicológicos ligados às condições de trabalho, à organização do trabalho e às relações interpessoais que condiciona a segurança e a saúde física e mental do ser humano exposto a qualquer contexto jurídico-laborativo.

Colocada em tais termos, nossa proposta visa a se alinhar com os alicerces teóricos até aqui firmados, em especial porque: (i) descreve não o ambiente, mas o meio ambiente, desconectando-se de qualquer viés físico-geográfico[51]; (ii) expressa um foco sistêmico do ente ambiental, incorporando a dinamicidade que lhe é inerente; (iii) conjuga fatores naturais e humanos, apartando-se de tônicas exclusivamente ecológicas; (iv) expõe com clareza todos os fatores de risco labor-ambientais (condições de trabalho, organização do trabalho e relações interpessoais), viabilizando maior amplitude na avaliação jusambiental da higidez do meio ambiente de trabalho; (v) centra sua estruturação em perspectiva humanista, na medida em que construída em torno da qualidade de vida do ser humano que dá cumprimento ao seu mister laboral, inclusive no que respeita à sua saúde mental; (vi) alcança o ser humano em qualquer condição jurídico-laborativa, ou seja, independentemente da existência do fenômeno hierárquico-subordinativo; (vii) açambarca a legítima proteção jurídica da qualidade da vida humana situada no entorno do ambiente de trabalho, também exposta, ainda que indiretamente, à agressiva propagação sistêmica de possíveis nocividades labor-ambientais.

Trata-se de construção que reputamos inteiramente consentânea com os vetores existenciais que presidem a ordem constitucional do país e as recentes conclusões científicas nos mais variados campos do conhecimento humano, retratando, ainda, com maior fidelidade, as circunstâncias e fatores ínsitos a uma dimensão ambiental especialmente humana e cuja realização prática sempre se dá na cadência de um ritmo profundamente complexo e dinâmico, aspectos que, como tentamos mostrar, decerto também devem ser levados em conta na conformação do conceito jurídico de meio ambiente do trabalho.

Perfilhamos, assim, o grupo dos que pretendem sedimentar um conceito de meio ambiente do trabalho que vá muito além de sua tradicional roupagem jurídica excessivamente físico-espacial-empregatícia. Cremos que esse é um pressuposto teórico que possibilitará considerável avanço na compreensão jurídica e no enfrentamento eficaz dos episódios de degradação labor-ambiental.

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Sobre o autor
Ney Maranhão

Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-graduação). Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo - Largo São Francisco, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma/La Sapienza (Itália). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista CAPES. Professor convidado do IPOG, do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA) (Pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª (SP), 4ª (RS), 7ª (CE), 8ª (PA/AP), 10ª (DF/TO), 11ª (AM/RR), 12ª (SC), 14ª (RO/AC), 15ª (Campinas/SP), 18ª (GO), 19ª (AL), 21ª (RN), 22ª (PI), 23ª (MT) e 24 ª (MS) Regiões. Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA). Membro fundador do Conselho de Jovens Juristas/Instituto Silvio Meira (Titular da Cadeira de nº 11). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Trabalho – RDT (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais). Ex-Membro da Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista (TST/CSJT). Membro do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro (TST/CSJT). Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Macapá/AP (TRT da 8ª Região/PA-AP). Autor de diversos artigos em periódicos especializados. Autor, coautor e coordenador de diversas obras jurídicas. Subscritor de capítulos de livros publicados no Brasil, Espanha e Itália. Palestrante em eventos jurídicos. Tem experiência nas seguintes áreas: Teoria Geral do Direito do Trabalho, Direito Individual do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Internacional do Trabalho. Facebook: Ney Maranhão / Ney Maranhão II. Email: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARANHÃO, Ney. Meio ambiente do trabalho: descrição jurídico-conceitual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4996, 6 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56263. Acesso em: 18 nov. 2024.

Mais informações

Este texto materializa parte das reflexões que compõem o capítulo 2 da tese de doutoramento do autor, intitulada “Poluição labor-ambiental: abordagem conceitual”, defendida com êxito em 15 de fevereiro de 2016 junto à Universidade de São Paulo – Largo São Francisco. A banca examinadora foi composta pelos seguintes membros: Professor Guilherme Guimarães Feliciano (USP/Orientador), Professor Antônio Rodrigues de Freitas Junior (USP), Professora Ana Maria Nusdeo (USP), Professor Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho (FGV) e Professora Rosita de Nazaré Sidrim Nassar (UFPA). Foi coorientador o Professor Carlos Eduardo Gomes Siqueira (Universidade de Massachusetts – Boston/EUA). A versão comercial da tese está materializada na seguinte obra: MARANHÃO, Ney. Poluição labor-ambiental: abordagem conceitual da degradação das condições de trabalho, da organização do trabalho e das relações interpessoais travadas no contexto laborativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

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