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O controle de convencionalidade sobre a extraterritorialidade da lei penal

12/03/2017 às 16:40
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O artigo aborda a perda de eficácia dos arts. 7º e 8º do Código Penal em razão da vigência do art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, na hipótese de o suposto criminoso já ter sido julgado definitivamente no estrangeiro.

A aplicação da lei penal no espaço é tema introdutório da maior relevância no estudo do Direito Penal. Nele aprendemos que a eficácia da lei penal ocorre precipuamente no território nacional, já que o art. 5º do Código Penal consagra como regra o critério da territorialidade. Verificamos, todavia, que situações excepcionais existem em que a lei penal brasileira vem a incidir sobre fatos ocorridos no estrangeiro, em fenômeno conhecido como extraterritorialidade. Essa, aliás, pode ser incondicionada, como nos casos mais graves previstos no art. 7º, I, do Código Penal[1], ou condicionada, nas hipóteses mencionadas no art. 7º, II, e § 3º, do citado diploma[2].

Mais adiante, na análise do art. 8º do Código Penal, vemos que o legislador brasileiro tentou evitar o famigerado bis in idem, ao determinar (i) a detração da pena cumprida no exterior daquela aplicada no Brasil pelo mesmo fato, quando ambas foram idênticas, ou, quando diversas, (ii) a atenuação da pena pátria.

Conforme exemplifica Cleber Masson, se

“o agente praticou um crime contra a vida do Presidente da República do Brasil em solo argentino, e lá foi condenado à pena de dez anos de reclusão, dos quais já cumpriu oito anos, e, posteriormente, fugiu para o Brasil, vindo aqui a ser condenado a doze anos de reclusão, não precisará cumprir toda a pena imposta em nosso país. Faltará o cumprimento de outros quatro anos, em consonância com a regra prevista no art. 8º do Código Penal[3]”.

Diversamente, se a pena aplicada no exterior foi de multa, haveria, nesse caso, apenas atenuação da pena de reclusão aqui imposta, já que multa e reclusão são penas diferentes. 

Essa regra, que impõe a detração ou a atenuação no Brasil em razão do cumprimento de pena no estrangeiro, não se aplica, porém, à extraterritorialidade condicionada, na medida em que o art. 7º, II, § 2º, “d”, do Código Penal exige como condição “não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena”. Logo, a aplicabilidade do citado art. 8º do Código Penal é restrita à extraterritorialidade incondicionada.

Todavia, tais regras, atinentes à possibilidade de extraterritorialidade incondicionada da lei penal brasileira e à consideração de pena cumprida no exterior para fins de detração ou atenuação na pena a ser executada no Brasil, encontram, na verdade, sério embaraço à sua eficácia no art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, incorporado à nossa ordem jurídica interna pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Com efeito, de acordo com esse preceptivo convencional, “ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”.

Consoante a clara redação do dispositivo citado, que não faz qualquer ressalva quanto à espécie de extraterritorialidade (se condicionada ou incondicionada), não se admite a punição ou sequer o processamento de alguém por delito já definitivamente apreciado no exterior, independentemente do mérito do julgamento, se pela condenação ou pela absolvição do agente.

Não há qualquer dúvida, portanto, de que o art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos está em rota de colisão com os arts. 7º e 8º do Código Penal, em especial com relação ao § 1º do mencionado art. 7º, segundo o qual, nos casos de extraterritorialidade incondicionada, “o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro”.

Diante disso, para a correta compreensão da eficácia dessas normas em conflito, é imprescindível que o penalista se valha das lições do Direito Internacional Público, notadamente no que diz respeito à hierarquia dos tratados internacionais na ordem jurídica nacional.

Nesse sentido, deve-se inicialmente mencionar que o Direito Internacional Público, de que os tratados são a fonte mais expressiva, ambiciona desde longa data ter primazia sobre o direito interno, como se constata a partir da simples leitura do art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009, pelo qual “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.

A despeito disso, o fato é que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal jamais reconheceu tamanha importância aos tratados, a ponto de admiti-los como superiores à própria Constituição Federal, como deseja o monismo universalista de origem kelseniana que inspirou a redação do art. 27 da Convenção de Viena de 1969.

De fato, de acordo com o escólio de Francisco Rezek[4], a Suprema Corte incialmente defendia a tese da supralegalidade dos tratados, segundo a qual estes estavam abaixo da Constituição, mas acima das leis.

Desde 1977, porém, após o julgamento do RE 80.004, o Supremo consagrou a tese da legalidade dos tratados, ao conferir-lhes status de lei ordinária. Assim, eventual conflito entre uma lei ordinária e um tratado deveria ser solucionado pelos tradicionais critérios cronológico (lex posteriori derogat priori) e da especialidade (lex specialis derogat generalis).

Dadas apenas essas premissas, já seria possível afirmar que o art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos prevalece sobre os arts. 7º e 8º do Código Penal, na medida em que a vigência daquele tratado, ocorrida em 1992, é posterior à daqueles artigos de lei, verificada em 1984.

Não bastasse isso, deve-se ainda consignar que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos versa sobre direitos humanos. Nesse caso, apesar de a sua incorporação ao ordenamento jurídico pátrio não ter ocorrido nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal – o que não seria de resto possível, tendo em conta que a promulgação desse tratado ocorreu em 1992, enquanto a possibilidade de incorporação de tratados com natureza de emenda constitucional é inovação trazida apenas em 2004, pela EC 45 -, é também certo que o Supremo Tribunal Federal voltou a conferir aos tratados sobre direitos humanos não aprovados segundo o rito das emendas constitucionais o status da supralegalidade.

Com efeito, conforme a lição de Paulo Henrique Gonçalves Portela[5]:

Quanto aos tratados de direitos humanos aprovados antes da EC/45 ou fora de seus parâmetros, o STF abandonou a noção de que as normas oriundas de tais compromissos equivaleriam às leis ordinárias, substituída por dois novos entendimentos. O primeiro, por ora majoritário, é o da supralegalidade desses tratados, defendida, por exemplo, pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento do HC 90.172/SP. O segundo, atualmente minoritário, é o da constitucionalidade material das normas internacionais de direitos humanos, defendida pelo Ministro Celso de Mello em voto proferido no julgamento do HC 87.585/TO e, posteriormente, do HC 96.772/SP. Além disso, o Ministro Celso de Mello vem ultimamente defendendo também a aplicação do princípio da primazia da norma mais favorável ao menos como critério interpretativo a guiar o Judiciário na aplicação das normas de direitos humanos, internacionais ou internas.

Seja como for, a certeza é a de que os tratados internacionais sobre direitos humanos, segundo a posição mais recente da Suprema Corte, estão acima da lei ordinária. Logo, ante a antinomia entre os arts. 7º e 8º do Código Penal e o art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, deve prevalecer este último, não só em razão do critério cronológico, mas também em razão do critério da hierarquia.

Na verdade, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de enfrentar esse tema no julgamento da Ext 1223/República do Equador, ainda que em obiter dictum. Nesse caso, apreciado em 2011, quando se discutiu a possibilidade de brasileiro naturalizado já condenado no Equador por estupro lá praticado vir a ser processado também no Brasil (extraterritorialidade condicionada por ser o agente brasileiro), a resposta foi negativa. Confira-se o resumo do julgado, segundo o Informativo 649 da aludida Corte: 

Em obiter dictum, discutiu-se, também, a questão da possibilidade, ou não, de o brasileiro naturalizado, embora condenado pela Justiça estrangeira, vir a ser processado, criminalmente, pelo mesmo fato, no Brasil. O Min. Celso de Mello, relator, abordou a questão da eficácia extraterritorial da lei penal brasileira à luz do princípio “aut dedere, aut punire”. Teceu considerações de ordem doutrinária no sentido de que, em situações como a dos autos, viabilizar-se-ia a incidência da cláusula da extraterritorialidade da lei brasileira, condicionada, no entanto, ao atendimento dos requisitos dispostos no § 2º do art. 7º do CP [“Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável”]. Aduziu que essa sistemática objetivaria evitar a impunidade do nacional que delinquira alhures. Todavia, dessumiu do art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (“Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”), que este diploma — qualquer que fosse sua natureza, supralegal ou constitucional — estaria acima da legislação interna, de sorte a inibir a eficácia dela. Assim, mencionou que, aparentemente, estaria tolhida a possibilidade de o Brasil instaurar, contra quem já fora absolvido ou condenado definitivamente no exterior, nova persecução criminal motivada pelos mesmos fatos subjacentes à sentença penal estrangeira. Nesse ponto, o Min. Celso de Mello sustentou a existência, em nosso sistema jurídico, da garantia constitucional contra a dupla persecução penal fundada no mesmo fato delituoso. Por sua vez, o Min. Gilmar Mendes, tendo em conta a redação dos artigos 8º e 9º do CP, sinalizou que a legislação brasileira deveria ser atualizada para admitir a execução da pena no Brasil, o que seria condizente com a internacionalização do mundo, a fim de evitar a criação de verdadeiros paraísos penais. Nessa mesma linha, o Min. Ricardo Lewandowski vislumbrou que a aceitação de condenação imposta em outro país só poderia ocorrer em âmbito restrito de acordos bilaterais ou multilaterais, em que se reconhecesse que o Judiciário estrangeiro atuasse segundo as normas do due process of law. O Min. Ayres Britto observou que essas ponderações seriam resultado da “cosmopolitanização” do direito.

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Deve-se reconhecer, porém, que o art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos não retira completamente a eficácia do art. 7º, I, do Código Penal, já que continua sendo possível a aplicação da lei penal fora do território nacional, contanto que o agente não tenha sido julgado definitivamente no estrangeiro. Por outros termos, ocorrido um crime sujeito à extraterritorialidade incondicionada, cabe às autoridades brasileiras agir rapidamente, de modo a conseguir processar, julgar e executar a pena aqui aplicada antes que haja sentença com trânsito em julgado no exterior.

Por outro lado, no atinente ao art. 8º do Código Penal, que permite a consideração de pena cumprida no estrangeiro para fins de detração ou atenuação de pena a ser infligida no Brasil, impende admitir sua ab-rogação pelo art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, já que não é possível cumprir pena no Brasil quando já houve condenação definitiva no estrangeiro.  

Esse cenário demonstra que o intérprete das leis ordinárias não pode mais ater-se apenas à Constituição Federal como parâmetro exclusivo para fins de controle da sua validade e eficácia no ordenamento jurídico; além disso, deve aquele realizar também verdadeiro controle de convencionalidade, especialmente para constatar se não há norma com status de supralegalidade a afastar a aplicação da lei ordinária analisada.

Por fim, não se pode negar que a primazia do art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos fortalece sobremaneira o princípio do ne bis in idem, ao reduzir substancialmente a possibilidade de que alguém venha a ser processado ou punido duplamente pelo mesmo fato, ainda que em países diversos.

Nos termos do ensinamento de Guilherme de Souza Nucci[6], esse princípio, sob o ponto de vista processual:

Demonstra que não se pode processar alguém duas vezes com base no mesmo fato, impingindo-lhe dupla punição (ne bis in idem). Seria ofensa direta ao princípio constitucional da legalidade penal (não há crime sem lei anterior que o defina, não há pena sem lei anterior que a comine), pois a aplicação de uma sanção penal exclui, como decorrência lógica, a possibilidade de novamente sancionar o agente pelo mesmo fato. Afinal, o tipo penal é um só, não existindo possibilidade de se duplicar a sanção.

Por outro lado, seria nitidamente lesivo à dignidade da pessoa humana ser ela punida duas vezes pela mesma conduta, o que evidenciaria não ter fim o poder estatal, firmando autêntico abuso de direito.

Ademais, se for absolvido, outro processo, com base no mesmo fato, firmaria igual abuso. Nesse ponto, cuida-se de previsão feita no art. 8º, 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (aprovada pelo Decreto 678/92): ‘O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos’. Logo, esse preceito deve ser considerado assimilado constitucionalmente pela via do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal.

Conecta-se com o princípio penal da vedação da dupla punição em relação ao mesmo fato.

Ao fim desse embate, o princípio do ne bis in idem sai revigorado, não apenas no âmbito penal, mas também no campo do processo penal, na medida em que o Brasil não pode mais processar nem punir o agente que já tenha sido julgado definitivamente no estrangeiro, quer tenha havido condenação ou absolvição, seja o caso de extraterritorialidade incondicionada ou condicionada. 


Notas

[1] Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: I - os crimes: a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;  b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço; d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil.

[2] Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:  II - os crimes: a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; b) praticados por brasileiro; c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. (...) § 3º - A lei brasileira aplica-se também ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as condições previstas no parágrafo anterior: a) não foi pedida ou foi negada a extradição; b) houve requisição do Ministro da Justiça

[3] MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado – Parte Geral. 9 ed. São Paulo: Método, 2015, p. 167.

[4] Apud PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves Portela. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. 8 ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 130.  

[5] Op. cit., p. 133.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 55-56.

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Sobre o autor
Edvanilson de Araújo Lima

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia, com início do curso na Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Público. Foi Professor de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Eleitoral da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina-PE (Facape). Foi professor de Direito Penal e Filosofia Jurídica e Geral da Faculdade Maurício de Nassau em Petrolina-PE. Ex-servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás e do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Edvanilson Araújo. O controle de convencionalidade sobre a extraterritorialidade da lei penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5002, 12 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56264. Acesso em: 24 abr. 2024.

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